segunda-feira, 8 de junho de 2009

Saramago contra a "coisa Berlusconi"

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Por Redação Revista Fórum

“Uma coisa perigosamente parecida com um ser humano, uma coisa que dá festas, organiza orgias e manda num país chamado Itália.” Assim arranca o artigo de Saramago, que é um apelo à revolta dos italianos contra o líder do governo e se intitula "A coisa Berlusconi". “Esta coisa, esta enfermidade, este vírus ameaça ser a morte moral do país de Verdi se um vômito profundo não o conseguir arrancar da consciência dos italianos, antes que o veneno acabe corroendo as veias e acabe destroçando o coração de uma das mais ricas culturas europeias”, alerta o Nobel da Literatura português que há poucas semanas viu a sua editora italiana, propriedade do grupo mediático de Berlusconi, recusar publicar O Caderno, o livro que reúne textos publicados no seu blogue.

"Na terra da Máfia e da Camorra, que importância pode ter o fato provado de que o primeiro-ministro seja um delinquente?", perguntava o escritor, numa passagem do livro que no fim de maio lhe valeu o fim de uma relação editorial com vinte anos. Saramago disse então estar "aliviado" por deixar de contribuir para a fortuna de Berlusconi. No artigo deste domingo, Saramago diz que "pior do que desobedecer às leis, é mandar fabricá-las para salvaguardar os seus interesses públicos e privados, de político, empresário e acompanhante de menores".

O escândalo da publicação no El País de algumas fotos das alegadas orgias de Berlusconi sucede poucas semanas depois de se ter revelado a sua ligação a uma menor, o que deu origem ao pedido de divórcio por parte da sua segunda mulher. Veronica Lario disse que não ia ficar casada com um homem "que frequenta menores".

As fotos de Antonello Zappadu foram apreendidas pela Justiça italiana, alegando violação da privacidade, e apenas sete foram publicadas até ao momento em Espanha. Mas a imprensa diz que há 300 fotos das festas de verão e outras tantas do fim do ano, altura em que modelos e apresentadoras de televisão se juntaram a políticos e homens de negócios italianos e estrangeiros na Villa Certosa, em Porto Rotondo. Apesar do fotógrafo ter apagado as faces dos convidados, há pelo menos um que já assumiu a identidade: o antigo primeiro-ministro checo Mirek Topolanek, que foi fotografado completamente nu junto à piscina, mas diz que se trata de uma "montagem".

Berlusconi já avisou que vai processar o El País, que por sua vez se defendeu em editorial. "O que Berlusconi põe em jogo é o futuro da Itália como Estado de direito. E uma Itália que deslize pelo caminho pelo qual está a ser arrastada por Berlusconi não é só um motivo de preocupação para os italianos, mas para todos os europeus", diz a direcção do principal diário espanhol.

Por Esquerda.net.

Fonte: Revista Fórum

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A coisa Berlusconi

por José Saramago

Este artigo, com este mesmo título, foi publicado ontem no jornal espanhol “El País”, que expressamente mo havia encomendado. Considerando que neste blogue fiz alguns comentários sobre as façanhas do primeiro-ministro italiano, estranho seria não recolher aqui este texto. Outros haverá no futuro, seguramente, uma vez que Berlusconi não renunciará ao que é e ao que faz. Eu também não.

A Coisa Berlusconi

Não vejo que outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente parecida a um ser humano, uma coisa que dá festas, organiza orgias e manda num país chamado Itália. Esta coisa, esta doença, este vírus ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vómito profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o coração de uma das mais ricas culturas europeias. Os valores básicos da convivência humana são espezinhados todos os dias pelas patas viscosas da coisa Berlusconi que, entre os seus múltiplos talentos, tem uma habilidade funambulesca para abusar das palavras, pervertendo-lhes a intenção e o sentido, como é o caso do Pólo da Liberdade, que assim se chama o partido com que assaltou o poder. Chamei delinquente a esta coisa e não me arrependo. Por razões de natureza semântica e social que outros poderão explicar melhor que eu, o termo delinquente tem em Itália uma carga negativa muito mais forte que em qualquer outro idioma falado na Europa. Foi para traduzir de forma clara e contundente o que penso da coisa Berlusconi que utilizei o termo na acepção que a língua de Dante lhe vem dando habitualmente, embora seja mais do que duvidoso que Dante o tenha utilizado alguma vez. Delinquência, no meu português, significa, de acordo com os dicionários e a prática corrente da comunicação, “acto de cometer delitos, desobedecer a leis ou a padrões morais”. A definição assenta na coisa Berlusconi sem uma prega, sem uma ruga, a ponto de se parecer mais a uma segunda pele que à roupa que se põe em cima. Desde há anos que a coisa Berlusconi tem vindo a cometer delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. Além disso, não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado fabricar para salvaguarda dos seus interesses públicos e particulares, de político, empresário e acompanhante de menores, e quanto aos padrões morais, nem vale a pena falar, não há quem não saiba em Itália e no mundo que a coisa Berlusconi há muito tempo que caiu na mais completa abjecção. Este é o primeiro-ministro italiano, esta é a coisa que o povo italiano por duas vezes elegeu para que lhe servisse de modelo, este é o caminho da ruína para onde estão a ser levados por arrastamento os valores que liberdade e dignidade impregnaram a música de Verdi e a acção política de Garibaldi, esses que fizeram da Itália do século XIX, durante a luta pela unificação, um guia espiritual da Europa e dos europeus. É isso que a coisa Berlusconi quer lançar para o caixote do lixo da História. Vão os italianos permiti-lo?

Fonte: Caderno de Saramago

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Leia mais: Editora de Berlusconi recusa livro de Saramago.

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