por Leandro Fortes
Como sabem meus amigos, sou de Salvador, embora meus detratores façam questão de lembrar que nasci no Rio de Janeiro, na verdade, em um estado que não existe mais, se é que realmente já existiu, a Guanabara. Para que se entenda essa transcendência e as raízes da minha naturalidade, digo que essas coisas do Rio, corcovado, pão de açúcar, maracanã e malandragem me dizem tanto respeito como a torre Eiffel a um catador de cana de Catanduva. No Rio, sou, como de regra, um turista assustado. Em Salvador, estou em casa, sou abraçado por todas as minhas memórias de infância, caminho entre o povo, na avenida sete, como um igual, ainda mais nesses dias de chuva, quando as pragas de turistas não assolam e devoram as lavouras culturais da Bahia. No canto de esquina suja entre a rua Araújo Pinho e o Campo Grande, nas bordas do Teatro Castro Alves, eu paro por cinco minutos e interpreto todos os cheiros, sorriso nos lábios, olhos fechados, um por um: jenipapo, dendê, amendoim torrado e o agridoce das amêndoas molhadas e apodrecidas na lama preta que fazem, aqui e acolá, um ou outro transeunte escorregar.
Vim a convite do professor Albino Rubim, de quem fui aluno na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde me formei em jornalismo e alegria, esse sentimento que, assim como a palavra “porra”, forma o amálgama do mito da baianidade, um estado de espírito e de coisas que não pode ser simplesmente traduzido, uma vez que é uma complexa convergência de atos, vocábulos, posturas, temperos e, principalmente, inflexões corporais múltiplas e combinadas. Daí a perplexidade de muitos diante da fala aparentemente ilusória de Gilberto Gil, que para nós, baianos, é clara, claríssima e clarividente. Quando Gil nos exorta às maquinações do ser e do não ser, este último, ao contrário do primeiro, sintonizado na desarmonia harmoniosa das conjecturas holísticas, a mensagem nos chega pura e cristalina: o ser humano é complicado que só a porra!
Albino é um dos mestres da Comunicação Social do Brasil. Pelas mãos dele e de outros teóricos de categoria da Bahia, a UFBA tornou-se um centro de excelência de pesquisa e produção cultural, mas não abriu mão das identidades locais, que são muitas e variáveis, de forma a contribuir sem se mutilar. Nessa semana, ele levou a cabo o V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Enecult), que trouxe para a capital baiana estudiosos de vários estados brasileiros, da América Latina e da Europa. Foram apresentados 250 trabalhos selecionados entre 450, sinal de que o interesse pelo evento está extrapolando as melhores expectativas do grupo liderado pelo professor Albino, o Cult, ponta de lança de uma novíssima estrutura de guerrilha cultural na Bahia. Leram isso nos jornalões? Pois é.
A folclorização permanente dessa “baianidade”, assim mesmo, entre aspas, reforçada pelas caricaturas de mau gosto encenadas nas novelas e na publicidade brasileiras, termina por neutralizar o verdadeiro discurso cultural da Bahia, uma poderosa união de intelectuais e artistas populares que se confundem e se misturam. Nesses dias de chuva, libertos da pressão do carnaval e do turismo, os baianos se voltam para dentro de si e libertam-se do estereotipo nauseabundo do negro de trancinhas falando “ó meu rei”, que, aliás, nada tem a ver com o sotaque e expressão verbal verdadeira de Salvador; ou da baiana de saia rodada colocada, sob total constrangimento cultural, em portas de hotéis e shoppings, a banalizar o mito da hospitalidade e da informalidade de relações, como se coisa assim fosse possível de se reproduzir fora do seu ambiente estritamente natural.
Sobre o tema, comecei a ler um livro ótimo, que comprei para dar a um amigo baiano, Jailton de Carvalho, mas baianamente me apropriei do que ainda não dei. Chama-se “A invenção da baianidade” (Editora Annablume), uma obra de narrativa espontânea e divertida, recheada de músicas e referências literárias, com informações deliciosamente posicionadas nas muitas ondas de costumes de Salvador. Comecei a ler e não consegui parar, porque o livro parece ter sido feito para mim, tanto e de tal forma que quase consigo imaginar a seqüência de fatos e tempos usados pela autora, a jornalista Agnes Mariano, para compor o encadeamento do livro. Assim como eu, Agnes, embora tenha nascido fora da Bahia (é paulista), foi criada por aqui. Por isso mesmo, tem, creio eu, essa relação apurada com a baianidade, uma identidade escolhida, porque é sabido de todos, principalmente aqui, na Cidade da Bahia, que só se pertence ao lugar que se ama.
Fonte: Brasília, eu vi
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