sexta-feira, 17 de abril de 2009

"Esquerda precisa recuperar Linkterreno perdido e acumular força"

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Nos anos 70 as forças populares sofreram uma tremenda derrota que ainda não foi revertida na maior parte do mundo, e sem dúvida não o foi na Europa e nos EUA. Essas derrotas vieram acompanhadas do ataque direto a realidades como o direito de filiação sindical e o direito dos governos democráticos controlarem os movimentos de capitais. Reconhecer isso quer dizer reconhecer a necessidade de acumular forças, de dar tempo à reorganização. A análise é de Antoni Domènech, editor da revista Sin Permiso, em entrevista à jornalista Comba Campoy.

Em dezembro de 2008, a jornalista Comba Campoy entrevistou Antoni Domènech, professor catedrático de Filosofia Moral na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Barcelona e editor da revista SinPermiso, para a revista galega Tempos Novos, durante a celebração do Foro Social Galego, em Santiago de Compostela. Na entrevista, o rigoroso pensador catalão analisa o papel do intelectual de esquerda e da potência de acumulação de força política nas “pequenas” vitórias dos trabalhadores dentro das restrições institucionais, sobretudo diante do quadro de despreparo e fragilidade da esquerda, frente à crise atual. A entrevista guarda não apenas atualidade, como urgência de mérito. Assim aceitamos oferecê-la aos leitores de Carta Maior.

Tenho interesse especial na análise de certos conceitos em que você se deteve em algumas intervenções no Foro. E por isso estou pensando em dar à entrevista a forma de um glossário, de um “glossário para o ativista político”. O que lhe parece?

Domènech: Pois, vamos lá....

Em primeiro lugar, a conceitualização de cidadania me parece básica. Falamos de movimentos cidadãos, da assunção de uma série de direitos e de deveres, do sentimento de pertinência a um grupo humano...O certo é que as instituições públicas galegas vulgarizaram o termo e o utilizam de forma um tanto gratuita. Busca-se a participação teatral do público ou dos usuários de transporte público...Mas se busca através de campanhas de direção única e muitas vezes sem um destinatário claro. Entendo que para que possamos falar de cidadania (e estou pensando na sociedade galega, mas suponho que podemos generalizar esta visão para o resto do estado espanhol) é necessário que exista uma consciência e um certo grau de organização. Ou se pode pensar numa cidadania passiva e conformista?

Domènech: O conceito de “cidadania” desapareceu praticamente do vocabulário político, notadamente da filosofia política acadêmica, nos anos 50, 60 e 70. Era entendido como algo trivial, como o “direito a ter direitos”. Por um lado, digamos, desde a esquerda, num sentido amplo do termo, na medida que esse direito mãe de todos os direitos se via plenamente assegurado depois da II Guerra Mundial, quando não somente se consolidou o direito do sufrágio universal conquistado pelo movimento operário socialista europeu depois do desmonte das grandes monarquias continentais entre 1918 e 1931 (a conquista, precisamente, que os fascismos dos anos 30 tentaram destruir), senão, ademais, ofereceram elementos de cidadania social, blindados constitucionalmente (como nas constituições republicanas alemã, austríaca, francesa e italiana de 1949, ou muito tardiamente, na constituição de 1978 atualmente vigente no Reino de Espanha).

Por outro lado, desde a direita, particularmente desde a direita acadêmica dominada pelo utilitarismo, nunca se levou a sério os direitos, e menos ainda o pretenso “direito a ter direitos”: o que contava era a “utilidade”, quer dizer, o grau de satisfação dos desejos e preferências das pessoas. Foi Bentham que, em começos do século XIX, inaugurando essa tradição de filosofia política e social dissera que os direitos eram um “non sense”, e os “direitos humanos um non sense ao quadrado”. Os neo-utilitaristas do século XX – particularmente os economistas neoclássicos - podiam ser a favor do aumento do “bem-estar” das populações, mas separavam isso de qualquer categorização em termos de “direitos” constitutivos de cidadania.

Quando, no final da década de 70, começou o processo de contrarreforma do capitalismo que se conhece com o horroroso neologismo de “globalização”, começou também um assalto às próprias idéias (procedentes do antifascismo) de cidadania democrática (lembra a posição de Huntigton na época? – esse velho cabrón sempre está nas piores trincheiras; agora, na guerra de civilizações! - todos os problemas do mundo se deviam a uma “crise de governança”, e a crise de governança se devia a um excesso de democracia, de participação popular nos processos políticos e nos Estados) e de cidadania social: com a chegada da senhora Thatcher ao poder em 1979 começou um ataque decidido ao amplo conjunto de medidas que desde o fim da II Guerra Mundial vinham garantindo alguma proteção social aos trabalhadores, desde direitos sindicais elementares até direitos de co-gestão dos trabalhadores nas empresas privadas (a célebre Mitbestimmung alemã), passando pela instituição de robustas áreas de propriedade econômica pública e pela implantação de amplos serviços públicos de saúde e educação que configuraram o que na Europa Ocidental se chamou “Estado Social” e nos países anglossaxões, “Estado de Bem-Estar”.

Por todos esses motivos, a “cidadania” voltou ao centro do debate público, reingressando também nas elaborações acadêmicas de economistas, cientistas políticos e filósofos. E, claro, uma forma de eludir o debate e tirar o corpo fora é, como tu sugeres, fingir que se está muito preocupado com a “cidadania”, mas atuar na prática com um conceito de “cidadania” ou vazio ou rígido.

Ou vazio ou rígido?

Domènech: Vazio é o conceito de cidadania concebido por alguns intelectuais neoliberais, empenhados em nos fazer crer, contra uma tradição jurídica milenar (que tem raízes no direito civil republicano romano) que um cidadão verdadeiramente “livre” seria o que quisesse e, sem os atuais impedimentos do estado democrático de direito, poderia vender-se “livremente” como escravo a outro (pense no debate da semana de trabalho de 65 horas - “livremente” negociadas entre o trabalhador individual e seu patrão -, escandalosamente proposta pela Comissão Européia), ou o “cidadão” que poderia firmar – contra as normas vigentes do atual direito penal – um contrato “livre” e voluntário de assassinato (ou mais moderadamente, de venda de órgãos anatômicos) com outro; ou, um último exemplo, o que estaria habilitado a pôr “livremente” em leilão seu direito ao sufrágio.

Numa palavra: a cidadania vazia nasce da idéia de destruir os direitos constitutivos – não meramente instrumentais – que, precisamente, definem nossa personalidade jurídica cidadã e, com ela, nossa liberdade; direitos que, do mesmo modo, são considerados inalienáveis em qualquer ordem jurídica de caráter republicana.

Rígido é, em troca, o conceito de cidadania manipulatoriamente passivo, propagandístico que, reconhecendo retoricamente (parte) do que foi exposto acima, trata de converter os cidadãos em meros expectadores passivos de um jogo de esgrima mais ou menos cruéis entre elites. Entre elites, ademais, tampouco inteligentes e tão inseguras de si mesmas que, em cima, mendigam o aplauso de um público desarmado. E quando os cidadãos se negam (como fizeram com o grotesco projeto da “Constituição” européia), fazem ouvidos moucos e buscam outras saídas.

Minha primeira pergunta vinha de uma preocupação minha e que suponho saia de minha experiência de trabalho nos meios de comunicação. Parece óbvio que os grandes poderes midiáticos, cuja influência na conformação de opiniões é incontestável, não têm qualquer interesse em que os cidadãos e cidadãs adquiram mecanismos de pensamento crítico. O Fórum do fim de semana passado em Santiago, apesar de reunir mais de quatrocentas pessoas em suas atividades distintas, não apareceu nos meios de maior difusão da Galícia. Como o pensamento crítico pode contrapor-se ao domínio aplastante do pensamento oficial (faz uns anos se falou em “pensamento único”, não sei se segue sendo pertinente). Creio que, neste caso, o vocábulo a ser debulhado seria conscientização ou, quiçá, educação.

Domènech: É um problema muito grave. Tenha em conta que são menos de duas dezenas as grandes empresas de meios de comunicação que dominam hoje mais de 95% da informação que circula pelo mundo. A concentração da propriedade a que temos assistido nas últimas décadas nesse setor, que em boa medida veio junto com a privatização dos bens públicos escritos e audiovisuais, constituem ameaça para o nada alheio a isso “pensamento único”, que não é outra coisa que a paulatina conversão de um ideário extremista, raivosamente hostil ao público – quer dizer, às soluções políticas e democráticas dos problemas da vida social e econômica -, numa doxa pretensamente “moderada” e “centrista”, conformadora do senso comum, também acadêmico. Nunca o senso comum, forjado e “professoral” agora composto por um medíocre doxariado de tertulianos, colunistas e acadêmicos exibicionistas e bem financiados por interesses sinistros esteve tão longe do bom sentido.

A esquerda deve opor-se a isso em diversos planos: de imediato, criando meios alternativos (coisa facilitada em certo modo pela Internet, mas sabendo que pela internet se pode chegar, no máximo, a menos de 10% da população); insistindo, por mais difícil e ingrato que resulte, na necessidade de introduzir mais pluralidade nos meios existentes, quer dizer, denunciando – tão educadamente como se queira – o monopólio do doxariado nesses meios. E, em outro plano, mais de fundo, mais radical, fixando muito claramente nos programas políticos das esquerdas a necessidade de reconstruir o caráter democrático, quer dizer, público, e publicamente dotado, de boa parte dos meios de comunicação e informação.

Isso não passa necessária ou exclusivamente por sua nacionalização; também é concebível, paralelamente, um fundo de ajudas públicas que rebaixasse drasticamente as barreiras de entrada no mercado dos meios de comunicação e que atuasse em favor da liberdade desse mercado, combatendo com os mais variados instrumentos que as políticas públicas oferecem (inclusive uma severa disciplina fiscal sobre as rendas dos monopólios e a limitação ou mesmo a proibição da publicidade comercial) uma atroz deriva oligopólica carregada de consequências políticas gravemente nocivas para a qualidade da vida democrática. Na medida em que vários grandes grupos de comunicação se vêem afetados pela crise financeira galopante (pensem no grupo Chicago Tribune, do qual fazem parte o Los Angeles Times e o New York Times), é possível que a idéia de reconstruir um grande espaço público, democraticamente controlável, para a comunicação volte, direta ou indiretamente, à ordem do dia, inclusive por motivos grosseiramente econômicos.

Assim como a alternativa à nacionalização democrática do grosso da banca é hoje processo ulterior e delirante de concentração oligopólica do setor financeiro, a alternativa à renacionalização democrática de boa parte dos meios de comunicação (e/ou a severa regulação pública do mercado dos meios de comunicação num sentido antimonopolista) é hoje um ulterior e delirante processo de concentração oligopólica da propriedade privada desses meios de conformação e manipulação da opinião pública.

É ingênua a aspiração de que movimentos minoritários como o são os dos Fóruns Sociais, empreenderem iniciativas transformadoras que dêem uma virada neste sistema injusto, e em crise?

Domènech: Isso depende de qual seja essa aspiração. Os Fóruns Sociais desempenharam um papel muito interessante em uma época de euforia “globalizadora” e domínio praticamente incontestado de um ideário extremista surgido da derrota mundial do movimento proletário e popular mundial no final dos anos 70 do século passado. Essa euforia se acabou como consequência do suicídio do capitalismo financeirizado de estilo norte-americano. O que há que se ver agora é se os Fóruns Sociais podem jogar também um papel importante na reconstrução dos movimentos populares.

Esta será a maior, mais profunda e duradoura crise, que terá consequências devastadoras sobre as populações trabalhadoras e sobre os pobres de todo o mundo. O que ainda não se sabe é se a imensa maioria da humanidade conseguirá organizar-se de forma tal que consiga gravitar politicamente de maneira decisiva sobre o modo de sair desta crise, uma crise que, em cima, solapa com outras cargas de desafios: uma crise energética (a necessidade de sair da era dos combustíveis fósseis) e uma crise ecológica sem paralelo na história da humanidade (mudança climática, entrada do Planeta Terra na era do antropoceno). A mim parece que, na medida em que os Fóruns Sociais se ponham modesta e de maneira realista a serviço dessa tarefa reorganizadora das forças populares, suas aspirações não têm por que serem ingênuas.

Projetos como o da Revista SinPermiso estão proporcionando ferramentas muito úteis de reflexão para reforçar os argumentos dos movimentos cidadãos. Mas sua difusão é limitada, as pessoas que não têm acesso a internet terão dificuldade para lê-la, e em todo caso sua leitura requer um certo grau de preparação. Durante a plenária do Foro [Galego] uma intervenção criticou “a Academia”, ou os “especialistas”, que sempre estariam do lado do poder e os intelectuais das esquerdas que tinham traído os movimentos de base. Foi uma intervenção um tanto apaixonada, mas em todo caso pode ser sintomática de um sentimento habitual em determinadas organizações. Respondendo a essa intervenção, em que acreditas que possa trazer o pensamento acadêmico para o lado dos movimentos sociais?

Domènech: Esse debate já ocorreu outras vezes na história dos movimentos sociais e particularmente na história do movimento operário socialista. Os movimentos sociais transformadores precisam de “especialistas”? O velho Engels e o velho Marx pensavam que sim, sobretudo Engels, que morreu (em 1895) obcecado pela idéia de atrair engenheiros, médicos, economistas, sanitaristas, estadistas, naturalistas e juristas para o movimento operário e particularmente para a socialdemocracia alemã, de modo que pudessem ajudar na gestão de uma economia de transição democrática em direção ao socialismo. Ele queria evitar a todo custo que os socialistas passassem pelo mesmo que aconteceu aos jacobinos franceses de 1793, que tiveram de depender de “especialistas” reacionários que sabotaram a política republicana revolucionária, o que levou ao Terror.

Agora bem, tanto Marx como Engels estavam muito conscientes de que muitos dos intelectuais que cercavam o movimento operário eram mais “ideólogos” que especialistas técnica ou cientificamente competentes. E os velhos foram extremamente hostis a esse tipo de “intelectual” diletante, nada sólido cientificamente e sempre orientado segundo a direção dos ventos. Na minha opinião, o século XX deu razão aos velhos.

Marx chegou a dizer que essas pessoas “constroem uma ciência privada” com o objetivo trapaceiro de ter um lugar para si no mundo (também no mundo acadêmico), em flagrante violação de todos os códigos éticos mais elementares da investigação científica, que pertencem ao âmbito da razão pública. Essas pessoas, dizia Marx, não servem para nada: o que o movimento precisa é de especialistas de verdade, não personagenszinhos que se refugiam no assylum ignorantiae (asilo da ignorância) de uma “ciência privada” construído pro domo sua, em vez de participar, como mais um, da ciência normal e corrente, que é sempre o exercício público da razão (em parte por isso Marx foi hostil à idéia de que se pudesse falar de uma concepção “marxista” da história ou da economia, mas isso é outro assunto).

Boa parte dos intelectuais “marxistas” do século XX foram – ironias da história! - pessoas que construíram “ciências privadas” para si: desde os stalinistas da “ciência proletária” e da “lógica dialética”, até os pós-modernos “desconstrucionistas” e “relativistas”. Eu penso como os velhos: politicamente falando, essas pessoas não servem para nada e, além do mais, é estúpido tentar atraí-los, porque são birutas que se orientam e operam segundo os ventos. Há que se ter isso em conta, agora que a biruta parece começar a girar num sentido mais favorável para a esquerda.

O que necessitamos são especialistas competentes, não picaretas nem falsários especuladores a três por quatro (mesmo que estejam enganados por um “pensamento débil”), nem arbitrários cultivadores de “ciências privadas” arcanas. Ademais, sempre será mais fácil para um leigo controlar democraticamente um experto especialista de verdade, obrigado a falar na linguagem da razão e da deliberação públicas, que ao ideólogo da vez (o perito em “paz”, em “socialismo do século XXI”, em “desconstrução”, em “discursos de gênero”, em “biopolítica”, em pretensas “ontologias do social”, em “sociedade da informação” ou em “alterglobalização”) que, buscando fascinar a si mesmos e a estranhos com um jargão privado esotérico e apenas inteligível, termina por cultivar o que os franceses – que disso entendem muito! - chamam de bluff à l'expertise.

Outro termo que se presta a abusos e limitações é o de liberdade. E por isso me parece muito oportuna a definição que, desde um enfoque republicano, que tu e Daniel Raventós deram na mesa sobre a Renda Básica. Qual é a liberdade a que os movimentos cidadãos integrados no movimento altermundista aspiram, frente ao conceito “roubado” pelos defensores do modelo neoliberal?

Domènech: É o conceito de liberdade como capacidade para não ter de pedir permissão a ninguém em particular para poder viver. Esse é o velho conceito de liberdade republicana. Não é livre quem precisa pedir permissão a outro particular para viver, que não é materialmente independente de outro particular: não é livre o escravo, não é livre o trabalhador assalariado (“escravo em tempo parcial”, segundo a genial definição de Aristóteles, depois retomada por Adam Smith e por Marx), não é livre a mulher submetida ao pater familias. A democracia republicana revolucionária e o socialismo industrial trataram de universalizar esse conceito, foi isso o que fizeram: a democracia revolucionária, mediante a distribuição da terra a todos e a fundação de uma “república de pequenos proprietários agrários” (Jefferson), ou mediante garantia republicana de um direito universal e incondicional de existência material (Robespierre, Tom Paine), a democracia socialista posterior à revolução industrial, mediante uma associação republicana de produtores livres e iguais que se apropriam em comum dos meios e instrumentos de produção (Marx).

A idéia era que não só uns poucos tivessem a liberdade para viver sem necessidade de ter que pedir permissão a outros; a idéia era que todos tivessem essa liberdade. A luta pela universalização da liberdade republicana, tão antiga, segue sendo nossa luta e é o núcleo valorativo do socialismo democrático-republicano contemporâneo, entendido como um programa político de luta por uma cultura econômica, política e social capaz de realizar esse ideal nas condições de uma economia tecnológica e industrialmente desenvolvida.

Globalização/Mundialização: O lema principal dos Fóruns Sociais é o de que outro mundo é possível, ou a famosa consigna de trabalhar localmente para mudar globalmente. Mas segue tendo sentido pensar numa “boa mundialização”?

Domènech: Não, não tem o menor sentido. A chamada globalização foi um processo, em todos os aspectos político, de remundialização do capitalismo. Um processo paralelo à sua contra-reforma. O capitalismo posterior a Segunda Guerra Mundial pôde se reformar mais ou menos timidamente num sentido social, pela via de fixar e instituir internacionalmente o direito dos governos democráticos – segundo expressou Keynes, o que considerava o principal resultado de Bretton Woods - “a controlar os movimentos de capitais”, quer dizer, a desmundializar uma economia capitalista sem bridão nem freio que tinha levado a humanidade à catástrofe das duas Guerras Mundiais mais cruentas e terríveis que a história universal registra.

Qualquer alternativa razoável à catástrofe econômica e ecológica onde veio parar essa “globalização” passa, hoje, na minha opinião, por uma nova desmundialização, começando pela reinstauração do direito dos governos democráticos a controlarem os movimentos de capitais e pela devolução aos povos de sua soberania plena. O cosmopolitismo republicano de Kant e de Robespierre, e seu herdeiro direto, o internacionalismo socialista do movimento operário aspiraram à união fraternal dos distintos povos soberana e democrático-republicanamente constituídos, e isso nada tem a ver com a utopia pseudocosmopolita universal, que é tem sido sempre, desde os tempos de Diógenes, o cínico e Antístenes até o neoliberalismo de nossos dias, uma construção intelectual a serviço de causas imperiais inconfessáveis; a outra face, se queres dizer assim, dos nacionalismos belicosos etnicistas e antidemocráticos.

Entre outros efeitos do capitalismo, creio eu, há um que afeta diretamente as pessoas: a generalização do egoísmo. Eu tenho muitas discussões com amigos meus, muito céticos, que defendem que somos egoístas e malvados por natureza. Eu talvez seja um pouco ingênua e discordo, e me paro a pensar nos meus avós que viviam no campo e que se juntavam com os vizinhos para repartirem as tarefas, ou que tinham sistemas de ajuda mútua em caso de colheitas ruins. Sei que este comunitarismo era simplesmente uma característica da economia tradicional agrária que existiu até há muito poucos anos, e que tinha aspectos muito negativos, como o da posição da mulher, etc. Em todo caso, porém, tinha um elemento mais interessante como o do sentimento de comunidade. A ti parece que sou uma ingênua, realmente, ou tem sentido defender os valores da solidariedade na hora de propor uma transformação social?

Domènech: Esse é um assunto bastante complexo, e me é impossível tratar disso com uma resposta rápida. Mas, pergunta a teus amigos “egoístas” o que eles acham, egoistamente falando, da defesa da tese panegoísta, segundo a qual o único motivo da ação humana é o interesse próprio, indiferente aos demais. Porque se essa tese for verdadeira, não se vê, em todo caso, por que teriam de andar defendendo, por amor à verdade, o panegoísmo, uma tese que, aparentemente, não parece favorecer à promoção do seu interesse próprio (o interesse próprio estaria sempre melhor servido por alguma hipocrisia buenista): e em todo caso, perder tempo defendendo algo – seja o que for – por mero amor à verdade já é um tipo de conduta que não condiz nada bem com o “egoísmo” calculador e economizador de energia.

Diga-lhes que não odeiem tanto a si mesmos, que a contradição performativa em que foram pegos revela que eles mesmos não são tão egoístas como acreditam. Diz-lhes que são vítimas da propaganda do “senso comum” construído pelo doxariado de nosso tempo – essa coleção de pusilânimes! -, tão alijado do bom sentido da magnanimidade humana. Recruta-os para a tua causa, oferece-lhes o velho conselho aristotélico que está no coração axiológico do laicismo republicano e socialista: “Deixa de pensar mal de ti mesmo, e sê teu melhor amigo sempre”.

Na Mesa “O neoliberalismo em crise, para onde vai o sistema?” tu defendeste que a crise atual evidencia também o fracasso do intento de superar o choque de 1973, através da financeirização, do neoliberalismo e da remundialização do capitalismo. Muitas vozes durante o Fórum convocaram para aproveitar o fracasso do capitalismo para orientar o movimento altermundista em direção a ações políticas que nos levem a um sistema mais justo. Se acreditas que há alguma possibilidade disso acontecer, em que direção acreditas que poderia ser encaminhada essa ação política? Quais seriam os erros a serem evitados pela esquerda atual? Propostas como a da Renda Básica são apresentadas como reformas dentro do sistema porque, ainda que sejam conflitivas, como afirmas, não parecem diretamente dirigidas para acabar com o sistema, com o capitalismo. Agora que o sistema (o capitalismo e talvez o próprio Estado) parece desmoronar, haverá que se reformular propostas desse tipo, ou há nelas mais sentido do que nunca?

Domènech: Pode-se ver a crise atual como uma crise da economia real induzida por processos insensatos de desregulação, financeirização e remundialização das últimas décadas. Mas também se pode pensar que o neoliberalismo (como conjunto de políticas de despossessão dos direitos conquistados pelos trabalhadores e de despojo e privatização dos patrimônios comuns dos povos do mundo – incluído aí o patrimônio natural), a remundialização (sobretudo a reintrodução da plena “liberdade” de movimento de capitais) e a financeirização (a automação sem precedentes do setor financeiro e sua crescente conversão numa espécie de “esquema ponzi” fraudulento em escala mundial) têm sido estratégias distintas destinadas a superarem a crise clássica de “superprodução capitalista” (para citar Marx) ou de desmonte da “eficácia marginal do capital” (para citar Keynes) do final da Idade de Ouro do capitalismo socialmente reformado nos anos 70.

Neste segundo caso, estaríamos diante de uma crise não só do grosso das políticas contrarreformistas postas em prática pelas elites capitalistas nas últimas três décadas, senão diante de uma crise sistêmica do próprio capitalismo como forma histórica de civilização.

Seja como for, tanto num como noutro diagnóstico o essencial é, imediatamente, concentrar o grosso da força política contra as políticas agora manifestamente fracassadas (contra o neoliberalismo, contra a “liberdade” de movimentos dos capitais e contra o predomínio do setor financeiro). E concentrar essa força, sabendo que as forças próprias são bastante mais débeis – não é muito insistir nisso -; sabendo que nos anos 70 as forças populares sofreram, em escala mundial, uma tremenda derrota que ainda não foi revertida na maior parte do mundo, e sem dúvida não o foi na Europa e nos EUA. Reconhecer isso quer dizer reconhecer a necessidade de acumular forças, de dar tempo à reorganização, o que passa por encadear conjuntos de pequenas vitórias que vão devolvendo a confiança nas próprias forças às classes subalternas.

Os maximalismos do tudo ou nada sempre são perigosos, mas nas circunstâncias de debilidade própria como as atuais são ainda mais. Aqui, no Fórum Social Galego, escutamos pessoas que pensam como se da crise sistêmica do capitalismo se pudesse passar imediatamente ao socialismo, sem maiores mediações que não as oferecidas pelo tremular de uma bandeira de quatro consignas estremecidas. E isso é perfeitamente compreensível: durante anos e anos se disse às pessoas não só que “não há alternativa! (a TINA da senhora Thatcher)”, senão que o que existe é boníssimo; e, de repente, o existente se desmonta a olhos vistos, e todo mundo começa a falar, como se se tratasse da coisa mais natural do mundo, de grandes alternativas (até Sarkozy quer “refundar eticamente o capitalismo”; só os mais desavisados, como o presidente das Cortes espanholas, o ínclito “socialista” senhor Bono, atuam como se nada estivesse acontecendo, e seguem despachando a seu bel prazer, com declarações – certamente inconstitucionais – como as de que a liberdade do mercado e da empresa “estão acima dos direitos dos governos democráticos”). É natural que uma esquerda que teve de morder a língua por décadas salte agora, com a força da rolha de uma garrafa de espumante previamente agitada.

Um dos signos inconfundíveis da derrota de um movimento popular é a quantidade de possibilidades de pequenas reformas institucionalmente possíveis desperdiçadas. O “sistema”, ou o “capitalismo”, não é uma espécie de máquina de uma só peça, nem sequer de várias peças com engrenagens perfeitamente ajustadas. Essa visão, bastante comum entre as pessoas formadas no marxismo estruturalista e no pósestruturalismo franceses, é filha de uma ignorante concepção ahistórica e apolítica do capitalismo, que é, em troca, uma realidade histórica e política, e por isso mesmo, uma realidade que evoluiu para formas complexas e contraditórias: parte dessa evolução são as lutas sociais inflamadas que foram provocadas, lutas que cristalizaram secularmente numa multidão de costumes, leis, instituições e práticas tendencialmente anticapitalistas ou, ao menos, incongruentes com a cultura econômica e moral básicas do capitalismo: desde as grandes realidades institucionais, como os Estados sociais, os grandes sindicatos operários e ainda a própria instituição do sufrágio universal democrático – uma conquista do movimento operário do século XX -, até os pequenos “laços e lacinhos” criticados por Berlusconi como travas intoleráveis ao funcionamento cotidiano do que os neoliberais chamam de mercados “livres” (na realidade, mercados cativos da competição oligopólica, em que os grandes podem extrair a seu bel prazer, “livremente” e sem travas públicas, as rendas monopólicas mais escandalosas).

A derrota do movimento popular em finais dos anos 70 propiciou o progressivo desuso ou o abandono de muitas dessas potencialidades existentes (por exemplo, a filiação sindical), e depois, em parte por consequência, o ataque direto das elites às realidades institucionais e legais potencialmente anticapitalistas, entre elas o direito de filiação sindical ou o direito dos governos democráticos controlarem os movimentos de capitais. A mim parece que, dada a situação de partida, com forças notoriamente débeis e desorganizadas, trata-se também de começar recuperando o terreno perdido.

Por exemplo, um mero exemplo, mas de um país com muito menos tradição que a Europa ocidental em matéria de instituições decantadas historicamente como resultado de grandes lutas populares do passado: nos EUA, muitos proprietários de casas que caíram em inadimplência e estão a ponto de perder suas casas, descobriram agora que podem lutar legalmente contra seus bancos credores, amparando-se nas leis centenárias que obrigam a perdoar dívidas injustamente contraídas. As reformas, por menores que sejam, têm um sentido democrático e anticapitalista – a instituição de uma renda universal e incondicional de cidadania indubitavelmente tem esse sentido, porque subtrai uma área da vida social ao imperativo de trabalhar assalariadamente -, não só não são o contrário de uma mudança social e política radicais, senão que – como advertiu certeiramente Rosa Luxemburgo há mais de 100 anos – o complementam e ainda o orientam: permitem acumular forças progressivamente, dar confiança a quem luta por essas mudanças, e ampliar progressivamente a base social do quem não está disposto a tolerar que 10% da população viva tão inconsciente como abundantemente ao custo do resto da humanidade num planeta esgotado e cada vez mais parecido com uma estrumeira química, bacteriológico e radioativo.

Antoni Doménech é professor de Filosofia das Ciências Sociais e Morais na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Barcelona. Professor convidado do Instituto de Filosofia e Ciências do Espírito da Phillips – Universität de Margburg (2003-2004) e do Centro para Análise Econômico-social da École des Ponts et Chaussées de Paris (1990-1991). Autor de "De la ética a la política. De la razón erótica a la razón inerte" (Crítica, 1989), e "El eclipse de la fraternidad. Una revisión republicana de la tradición socialista" (Crítica, 2004). É editor da revista internacional Sin Permiso (2005-) e membro da secção espanhola do Basic Income Earth Network (Rede de Renda Básica).

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Carta Maior

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