por José Paulo Cavalcanti Filho
Do Recife (PE)
Se o leitor amigo estiver devendo ao governo, vai ter que pagar. Sempre. E nem adianta dizer que os negócios vão mal; ou que não está conseguindo honrar a prestação da casa; ou que seus poucos proventos são insuficientes para pagar os remédios. Assim que atrasar vem multa, SELIC, CADIN, processo judicial, o próprio inferno de Dante. Mas se for o contrário, se o governo estiver devendo ao amigo leitor, então a coisa muda. São dois pesos e duas medidas. Tem que penar em julgamentos que se arrastam no judiciário; e, depois, na fila dos precatórios, para receber em 10 anos (salvo os alimentares).
Agora o Senado aprovou, em 3 sessões no mesmo dia, uma PEC 12/06 do governo sobre o tema. Não para dar o mesmo tratamento a débitos entre si iguais, o que seria uma solução decente. Mas só, Deus nos proteja!, para institucionalizar o calote. União, Estados e Municípios vão pagar quando quiserem, e se quiserem, o que não negam dever. E como maldade nem sempre é pouca, ainda escalou, para defender esse equívoco lamentável, muita gente boa. Entre esses, o ex-prefeito e querido amigo João Paulo, que defendeu a PEC, em artigo agora publicado na Folha de São Paulo, sustentando argumento insutentável - o de que os pagamentos dos débitos públicos vão "comprometer os investimentos nas áreas prioritárias para a população". Como se toda a verdade estivesse circunscrita nessas poucas palavras doces. É pena.
Não ocorre, a João Paulo e outros defensores do Governo, que melhor seria racionalizar a administração pública. Talvez porque medidas assim não sensibilizem elites políticas já secularmente acostumadas a uma constrangedora apropriação econômica do Estado. Tome-se o exemplo de uma Prefeitura qualquer - pode ser a do Recife, em que vários casos iguais se deram, inclusive na sua gestão. A fórmula é simples. O prefeito desapropria um imóvel e arbitra valor que sabe ser 10, até 20 vezes menor que o do mercado. Deposita esse preço ínfimo na Justiça, entra na posse do bem e constrói ali o que quiser. Inclusive com recursos do PAC. E o dono do terreno passa anos em um processo que terá montante final fixado após avaliação. Sem que o prefeito desapropriante sofra com isso, bom lembrar; que, dado o largo tempo do processo, sabe que essa conta vai ser paga por outro prefeito. Eu faço, tu pagas - assim é fácil, senhores. Mas não está certo.
Com a PEC 12/06, pior ainda, o risco é que nada seja pago, por instituir um volume limitado de recursos para esses pagamentos e um sistema de leilões onde, quem quiser receber, vai ter que abrir mão de parte do valor justo que lhe caberia. Sem contar que àqueles que não queiram dar descontos, que aspirem apenas receber os valores certos que lhe cabem, nada será pago. Um fato sem paralelo, nos países culturalmente maduros. O eminente juiz Mozart Valadares, presidente da AMB, tem toda razão; posto que o desrespeito às decisões judiciais, efetivamente, "traz injusto descrédito à imagem do Poder Judiciário". Reduzindo o uso de argumentos ternos, oportunamente usados na desculpa de proteger as parcelas mais carentes da população, a só uma farsa.
Agora cabe apenas sonhar que a Câmara dos Deputados, destino dessa PEC, demonstre níveis maiores de responsabilidade e recuse esse monstrengo jurídico. Ou rezar. Muito. Que, por traz de iniciativas assim, está o risco da fachistização do Estado. Como se estivéssemos construindo um novo modelo de relação em que, de um lado, está o Estado Leviatã de Hobbes - que tudo pode e tudo provê; e, do outro lado, cidadãos indefesos que não têm como exercer seus direitos. Um escândalo que assinala o roteiro na direção de outro tipo de autoritarismo já em curso, talvez menos ostensivo, mas igualmente inaceitável.
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