sexta-feira, 10 de abril de 2009

De Nuremberg a Roma: a neutralidade do direito internacional em questão

::

O Tribunal Penal Internacional é, em grande parte, um tribunal político criado para acolher no banco dos réus criminosos oriundos da periferia planetária. Ao contrário do que fez com o líder do Sudão, o TPI não expediu mandados de prisão contra George W. Bush, nem contra os reponsáveis israelenses pelos crimes em Gaza.

O Direito Internacional protetivo da pessoa humana tem provocado sentimentos contraditórios e de difícil posicionamento quando a análise inclui os mecanismos dos órgãos no plano internacional. A expectativa de construção de um conjunto de normas supranacionais dedicadas a proteger direitos humanos contra as arbitrariedades estatais e a criação de organismos legitimados esbarra em contextos históricos impregnados de relações de poder político e econômico, resultantes do concerto do pós-Segunda Guerra Mundial.

O Tribunal de Nuremberg, ao qual faltou legitimidade por ter sido constituído pelos vencedores da Segunda Guerra para julgar os crimes cometidos pelos vencidos, semeou as premissas para a introdução dos indivíduos nas questões penais internacionais. Mitigaram-se os argumentos da razão do Estado e da submissão a ordens superiores, uma vez que a consciência do indivíduo deveria prevalecer sobre a sua obediência ao Estado.

Quase meio século mais tarde, em 2002, entrava em vigor o Estatuto de Roma, que instituía o Tribunal Penal Internacional, responsável por julgar indivíduos acusados de crimes considerados internacionais. Há alguns dias, o TPI expediu uma ordem de prisão contra o líder do Sudão Omar al-Bashir, por crimes de guerra e contra a humanidade no conflito étnico de Darfur. O Brasil não se pronunciou.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou, em 26 de março, uma resolução impregnada de motivações políticas condenando a Coréia do Norte por “graves violações dos direitos humanos”, num momento em que os EUA estão tentando entravar o programa nuclear daquele país. Apesar de ser pública a perversidade daquele regime, o Brasil absteve-se na votação, mantendo essa mesma atitude a respeito da situação no Congo e das resoluções condenando o Sudão no mesmo Conselho.

Embora muitas críticas estejam sendo endereçadas ao Itamaraty em virtude dessa postura, não se pode dizer que o Brasil esteja cortejando ditadores e facínoras. Ao contrário, essa opção da diplomacia brasileira em nada compromete as tradições pacíficas do país.

Violações tão graves quanto aquelas mencionadas foram cometidas pelos EUA na agressão contra o Iraque de 2003 que, além de atropelar o sistema preventivo da guerra previsto na Carta da ONU, matou muito mais civis do que militares; na prisão de Guantánamo, que instituiu uma categoria de suspeitos de terrorismo não sujeita a regime jurídico algum, e onde a tortura era promovida a título oficial; por Israel em Gaza no início de 2009, onde atrocidades inimagináveis foram promovidas aos olhos incrédulos da comunidade internacional. E o quê dizer do papel criminoso da França como financiadora do genocídio de 1994 em Ruanda?

Naturalmente, o TPI não expediu mandados de prisão contra George W. Bush, patrono da divisão maniqueísta do conflito entre segurança e valores da pessoa humana, e nem contra os responsáveis israelenses ou franceses. Por quê? Porque o Direito Internacional não é aplicável isonomicamente a todos, sendo o TPI em grande parte um tribunal político criado para acolher no banco dos réus criminosos oriundos da periferia planetária.

Nessa seara, a opção do Brasil demonstra compreensão e desacordo com essa premissa. Não se trata de atitude de defesa ao regime sudanês responsável pela morte de 300 mil pessoas, pelo deslocamento de outras 2 milhões, e pela expulsão de 13 organizações humanitárias do país. Na mesma sessão do Conselho em que a Coréia do Norte foi condenada, foram votadas outras cinco resoluções relativas ao conflito israelo-palestino, com fortes críticas a Israel. O Brasil votou a favor de todas elas.

O que o Brasil está rechaçando é a visão dos direitos humanos como uma perseverante ideologia ocidental, aplicável paradoxalmente apenas ao mundo oriental. Não se trata de proteger regimes transgressores e de promover a impunidade, mas de protestar contra a seletividade da justiça internacional e a impossibilidade de realização de uma verdadeira justiça universal, capaz de combater a impunidade também no mundo ocidental e seus aliados.

*Larissa Ramina, Doutora em Direito Internacional pela USP e Professora da UniBrasil. Carol Proner, Professora do Mestrado da UniBrasil e do Doutorado em Derechos Humanos y Desarrollo da Universidad Pablo de Olavide, Sevilha.

Fonte: Carta Maior

::


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: