sábado, 4 de abril de 2009

Argentina debate nova lei sobre meios de comunicação

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Os conteúdos de uma nova sociedade

A Argentina prepara-se para um importante debate que deve envolver toda a sociedade. Trata-se de uma lei sobre o funcionamento dos meios de comunicação. A Carta Maior começa a publicar uma série de artigos sobre o tema que interessa diretamente ao Brasil, no ano em que será realizada a primeira Conferência Nacional de Comunicação. No primeiro texto, o sociólogo Horacio González destaca o caráter estratégico deste debate que envolve um setor que se julga "diretor de consciência" da vida geral da população.

Lei dos Meios de Comunicação. Bem! Uma vez aprovada, será difícil imaginar cabalmente todas as mudanças que ocorrerão na vida coletiva. Seu debate parlamentar poderá ser uma das grandes jornadas de ativismo democrático e fervor cívico no país. Em resumo, implica a renascida vontade de discutir os conteúdos de uma nova sociedade. Seu equivalente histórico, pelo dramatismo pedagógico que tem a questão, evoca a sempre lembrada lei 1420 de Educação Comum.

Mas...os meios de comunicação importam tanto assim? Hoje ocupam uma posição que poderíamos considerar como a de “diretores de consciência” da vida geral da população. Jogo e cadafalso, circo e vademecum moral. Talvez tenha sido com o peronismo que se afirmou a vinculação da vida popular com o teatro da imaginação audiovisual. Mas, neste caso, o vínculo emanava da radiofonia. O peronismo foi o rádio, não a televisão. Mas manteve como equivalentes duas esferas: a estatal política e a comunicacional cultural. O balcão e o rádio. Sem absorção de uma pela outra, eram duas linguagens claramente diferenciadas. No entanto, sabe-se que no dia 17 de outubro de 1951, inaugurou-se a televisão argentina com uma imagem de Evita. Daí que os aniversários da televisão argentina coincidam com os do peronismo.

É preciso compreender esse fato – por sua importância – e, ao mesmo tempo, desconstruí-lo em nome da necessidade de ver a sociedade como uma relação de esferas autônomas, mas mutuamente concernentes e não corporativas. Instituição social e tecnologias comunicacionais são diferentes, fatos de enraizamentos culturalmente heterogêneos. Todos eles devem ser percorridos pelos símbolos genéricos de uma cidadania que esporeia e reconstitui as práticas coletivas.

A intervinculação de atos técnicos, discursivos e econômicos – que, em conjunto, fazem a essência do político – deverá tornar possível vislumbrar um novo Estado militante e produtivo. Nada disso seria possível sem um pensar crítico e uma razão comunicativa em constante revisão de si mesma. Uma grande reforma estatal democrática é um fato necessariamente paralelo a uma nova lei dos meios audiovisuais. E esta, um fato equivalente a uma autoconsciência nova sobre os planos de linguagem que constituem todo contrato social. Por isso, algo parecido com um imaginativo e inovador Congresso da Língua, convocado pelas instâncias universitárias, intelectuais, comunicacionais, culturais e sindicais argentinas, deveria ocorrer juntamente com o debate sobre a esfera midiática.

As sociedades comunicacionais universalmente ramificadas, as instituições do trabalho e da memória, a esfera tecnológica liberada de ingênuos fetichismos não devem possuir ânimo confiscatório em suas relações mútuas. Mas o trabalho material e imaterial, transformador da natureza e dos símbolos, segue sendo o valor criador que funda o vínculo intersubjetivo. Apesar disso, os meios de comunicação possuem intrinsecamente tendências substitutivas da experiência genérica humana pela via de seu poderoso interesse na unificação “técnica” da linguagem, do espaço e do tempo.

São conhecidas suas restritas hipóteses de inteligibilidade, suas armações temporais pré-moldadas, o ilusionismo com que imagina que não tem suas raízes no trabalho produtivo. Isso deve ser motivo de novas considerações que revelem que é preciso que, de seu próprio interior, surjam reformuladas alianças entre legados culturais e tecnologias. Desde logo, em seu sentido profundo, as tecnologias são também fatos artísticos e retóricos de segundo grau. Quando recobram essa dimensão, condensam um novo tecido universal de caráter liberador. Uma grande revolução contemporânea consistiria em que os meios de comunicação massivos assumissem que as formas de vida são experiências autônomas não sujeitas a servidões voluntárias e imersões cegas em um indiferenciado magma comunicacional.

Esse horizonte deve ser o sujeito filosófico de uma nova lei sobre o exercício do poder audiovisual das sociedades. Nem é preciso que isso seja escrito. São os “considerandos” implícitos de toda lei, que equivalem a indagar sobre as condições de produção material, intelectual e moral de todo fato cognitivo. Os meios de comunicação se assemelham a um estouro em puro presente, a uma lâmina translúcida sem o peso da memória. Mas seu “arquivo” está articulado como uma potencial ameaça de controle social. Dupla des-historização! Parecem não ter história, estruturas de domínio, interesses econômicos, economias reprodutivas, linhas de comando, decisões políticas, autoconsciência hegemônica e operativos ideológicos! Mas esta época nos revela a anomalia de acreditar que é etéreo ou evanescente o que, na verdade, é uma materialidade espessa e de caráter examinatório sobre o conjunto das práticas sociais. A pressuposição genérica da lei dos meios deve implicar que esta revelação – a essência de uma grande debate – é democraticamente possível.

Um caso conhecido pelos historiadores argentinos é a opinião absorta de Sarmiento logo ao saber que os capitais ingleses estavam construindo a ferrovia do Ganges, da mesma maneira que, na remota Argentina, se construía o trecho Buenos Aires-Rosário. Como? Então os governantes “progressistas” não incidiam em nada? Era tudo uma manifestação inevitável das forças produtivas da época? Esta profunda anedota (e uma anedota profunda é já uma teoria) nos leva novamente à questão das tecnologias. A necessária intimidade com elas anda de mãos dadas com a necessidade de que não se convertam na “antropologia filosófica” de uma época, nem no governo invisível das culturas que devem ser livres em sua singularidade.

A técnica não é algo neutro. Quando acreditamos que é neutra, somos capturados por ela. Em troca, uma relação livre com as tecnologias implica decidir sobre elas, a cada passo, no interior mesmo da linguagem que utilizamos. Um mero jargão tecnicista sem raízes nem sustentação material impede a liberdade do sujeito. Aprisiona-o no ressentimento de não poder ser nunca imediatamente moderno, o que o banaliza socialmente. O moderno é um bem que implica mediações, múltiplos sintetizadores culturais, nunca é súbito nem esquecido. Uma lei de meios de comunicação socialmente inovadora deve legislar sobre novos direitos sociais de gestão nesta área. Mas são igualmente imprescindíveis duas coisas: que não se descubra que reproduziu meramente a “ferrovia do Ganges” e que não se omita em rediscutir a língua como o veio permanente da autoconsciência produtiva de uma nação.

O Estado que propõe esta lei deve ser, ao mesmo tempo, um âmbito que se transforme juntamente com as mudanças essenciais que propõe. Não deve converter-se em uma região subordinada superficialmente à última novidade técnica. Deve ser um Estado renovado, não coercitivo, capaz de propiciar esferas heterogêneas de justiça. Por isso, deve assumir as tecnologias como acontecimentos também culturais e inovadores no plano artístico e científico. E, no plano da língua comum, deve atuar como se estivesse diante das grandes forças produtivas que originaram os inesquecíveis tratados de economia política do século XIX. Os “contratos” que estabelecem os meios com suas audiências herdam antigas fórmulas sociais e comunitárias. Em um sentido amplo, herdam o selo do circo, do jogo e da magia. Mas, ao mesmo tempo, os decompõem em uma nova trama volátil, em pontuais momentos de consumo de línguas pré-fabricadas onde somente de tanto em tanto pulsa o destino real das existências. É difícil para os meios de comunicação escapar de um mercado de sentimentalidades já pressuposto.

Talvez as cíclicas proposições a favor da pena de morte surjam do sentimento de uma sociedade corroída, como é hoje a nossa. Trata-se de uma sociedade que busca recompor-se através de meios drásticos, próprios de uma obscura justiça substitutiva, teatralmente lúgubre e punitiva. E esse drama é contado especialmente pela televisão massiva! Faz isso, muitas vezes, retomando o edifício mental das direitas, e outras com pavorosos provérbios que parecem sair quase casualmente da boca de seus mais conhecidos menestréis. Porque seguidamente uma voz intencionada dispara: “Pena de morte!”. A proclamação provém do ventre mitológico da grande baleia, mas não deixa de ser um pobre artesanato da restauração conservadora. Aí se organizam as imagens públicas ao redor de confessores morais e proclamadores áulicos. São os chefes não declarados dos espasmos massivos e do pavor organizado, ainda que falem contando piadas. São os comissários sentenciosos de uma justiça em primeira e última instância, que provém de um neolítico moral que convive bem com uma ética satélite. Eles pregam, severos, o castigo e reclamam que os amemos. Como não lamentar que alguns notáveis artistas populares tenham se submetido a esses servilismos!

Se a pena de morte se converte em um odioso sintoma de organização social, o mundo terá esgotado definitivamente sua liberdade associativa. Por isso, muitos segmentos da televisão de massas vivem da satisfação primitiva de um Estado expiatório, espectral e inquisidor. Prometem o espetáculo domiciliar do réu no patíbulo com último refúgio do vínculo social. As intuições sombrias de um setor não majoritário, mas muito ativo da televisão emanam do caráter imediato do castigo. Dessas penumbras surgem muitos porta-vozes do chamado à pena capital, pois imaginam que há uma “vontade geral” que só os meios de comunicação podem representar. Adivinham, talvez sem equivocar-se, que ao pedir o castigo máximo juntam cenicamente um sentimento viscoso e profundo com uma oculta torrente de consciências que marcham desde um justo pranto até a obtusa vingança. Tudo imediatamente. Repentinamente. Um novo direito, o direito ao repentino, é a essência mesma deste tipo de ato comunicacional. Rápido transporte das consciências. É o deslizamento vil por uma lógica de um mercado. Qual? O mercado dos sentimentos massivos como parte de uma insondável indústria cultural. É o fim da urbe como espaço comum. As paixões ficam reguladas. Governo eletrônico por scoring, rating e target.

Certamente, uma nova lei dos meios audiovisuais não contém explicitamente esses temas, mas sua essência deve ser, por um lado, a pluralidade social de gestão e, por outro, a compreensão social de como se produzem as linguagens coletivas. Mas a sociedade e o Parlamento que debatam e aprovem este crucial ordenamento devem saber que se encontram, em última instância, diante da reverberação de seu destino democrático e latinoamericano.

*Sociólogo, ensaísta, diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.

Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Agência Carta Maior

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