Ao tentar atender a interesses opostos e remendar a política externa neocon, o novo governo enreda-se.
Obama em seu labirinto
Por Antonio Luiz M.C Costa
"Obama sem Drama" foi um slogan de campanha sobre o enfoque frio e tranquilo do candidato ao discutir questões polêmicas. Mas o blog da Casa Branca e os recados de seus porta-vozes sugerem que a paciência do presidente com o bombardeio da mídia de oposição está chegando ao limite.
Não sem motivo. Quem apostou na sociedade “pós-racial” choca-se com os cartazes que insultam Barack Obama como “africano mentiroso” e mandam que “volte para o Quênia” e em advogados que instigam militares a recusar ordens, alegando que o presidente não tem legitimidade para dá-las por “não ser cidadão”. Quem, nos anos 90, previu o fim do nacionalismo se surpreende com a muralha que Sarah Palin e companhia querem erguer entre os rednecks evangélicos do interior, “verdadeiros americanos” e as massas liberais, multiétnicas e multiculturais “antiamericanas” das cidades.
Quem acreditou que os conceitos de direita e esquerda estavam obsoletos deve surpreender-se com o entusiasmo da direita em se identificar como tal e desqualificar o governo liberal como “socialista”. O site conservador Newsmax.com chegou a publicar um artigo (depois deletado) que antecipava um golpe militar para deter o avanço do “Estado marxista”, ecoando o radialista Rush Limbaugh, que descreveu a quartelada em Honduras como “o golpe que muitos de vocês (ouvintes) gostariam que acontecesse aqui”. Na verdade, para atrair o apoio de uns poucos republicanos para seu projeto, Obama abre mão de pontos essenciais de uma reforma da saúde, que, desde o início, seria tímida e insuficiente pelos padrões dos demais países desenvolvidos.
A Casa Branca tem razão ao dizer que a Fox News não é uma rede de notícias comparável à CNN e sim um órgão do Partido Republicano. Dito isso, John Nichols, colunista da revista progressista The Nation, também tem certa razão em chamar Obama de “Choramingão em Chefe”. Lida mal com o desafio conservador, queixa-se de injustiça, cobra racionalidade de quem não a tem, em vez de reconhecer a necessidade do enfrentamento ideológico e reclama até dos blogs progressistas. Embora tenham muito menos influência que a Fox News, também foram atacados por intermédio de um assessor para o qual esses blogueiros “precisam tirar os pijamas, vestir-se e perceber que governar um país tão dividido é complicado e difícil”.
Entretanto, ao contrário dos conservadores e suas acusações delirantes, eles representam críticas racionais, fundadas no que Obama realmente faz – ou mais frequentemente deixa de fazer – e que partem de setores que, de maneira geral, apoiaram sua candidatura e compartilham dos ideais que alardeou. Ridicularizá-los para exigir que se enquadrem na “linha justa” equivale a dar um tiro no pé, alienando potenciais aliados de que Obama necessita para fazer frente a seus reais adversários.
O Nobel da Paz, conferido às vésperas de a Casa Branca anunciar o envio de mais 13 mil soldados ao Afeganistão, tornou-se oportunidade para críticos de ambos os lados. Enquanto os conservadores o interpretaram como um prêmio por entregar o país aos inimigos, os progressistas o criticaram por premiar discursos ainda não traduzidos em atos.
Infelizmente, foi de fato uma das decisões mais discutíveis da história do prêmio. Mesmo comparado com os conferidos em 1973 a Henry Kissinger e Le Duc Tho (que, honradamente, o recusou, reconhecendo que não tinha sido feita a paz em seu país) e em 1994 a Shimon Peres, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat (que não tiveram esses escrúpulos). Nos dois casos, havia uma folha de parreira: acordos de paz redigidos e assinados, embora as partes soubessem que tinham pouco valor e nenhum futuro.
Desta vez, a interpretação mais caridosa para com a atitude da comissão do Nobel é que esta, por meio do presidente, quis premiar o povo dos EUA por não eleger outro militarista obcecado em impor o Império Americano ao mundo, mas um presidente “normal” com o qual se pode negociar. Nove meses depois de eleito, Obama ainda não pode mostrar nenhuma realização concreta e relevante pela paz, além de se fazer eleger.
A decisão diplomaticamente mais importante foi, provavelmente, a de não seguir adiante com o projeto bushiano de instalar sistemas antimísseis na Polônia e República Tcheca. Isso significou, em termos práticos, abandonar uma provocação tola à Rússia para retornar à realpolitik. Com sorte, será possível negociar outro corte do arsenal nuclear das duas potências, ambas com dificuldades econômicas que tornam recomendável enxugar despesas supérfluas. Mas esse seria apenas mais um na série de acordos para a redução de armas nucleares, que começou em 1991 com o tratado Start I entre Bush pai e Mikhail Gorbachev, continuou com o Start II entre o mesmo Bush e Boris Yeltsin, e prosseguiu com o tratado Sort entre Bush filho e Vladimir Putin em 2002 – que nem por isso mereceram um Nobel.
No Oriente Médio, onde o envolvimento militar dos EUA é hoje mais sério e patente, o progresso dos últimos meses em direção à paz foi nulo, se não negativo. Até uma decisão relativamente simples como o fechamento de Guantánamo, no prazo de um ano a partir da posse, está sendo adiada enquanto o governo hesita quanto ao destino dos prisioneiros.
O Iraque parece menos violento do que nos piores momentos de 2007 e 2008, em parte porque a “limpeza étnica” de áreas predominantemente sunitas, xiitas ou curdas reduziu o confronto expulsando as minorias como refugiados, em parte porque os soldados dos EUA estão mais recolhidos a suas bases e participam menos de patrulhas. Mas os atentados violentos continuam a ser rotina, inclusive no coração da capital. E a muito gradual retirada do Iraque – de 149 mil soldados no início do ano para 120 mil hoje – foi mais que compensada pelo reforço no Afeganistão, de 26 mil para (até agora) 68 mil. O número de soldados dos EUA nas guerras do Oriente Médio é hoje superior ao pico do envolvimento de Bush júnior. E continua não funcionando.
Se a situação no Iraque é ruim, no Afeganistão é desesperadora. O Taleban, embora não conte hoje com mais de 7 mil combatentes, recuperou terreno e está presente em 90% do país. O comandante Stanley McChrystal, designado por Obama, admite que não pode garantir a vitória mesmo que receba os reforços solicitados e eleve seu contingente para 95 mil a 115 mil (sem contar as tropas auxiliares de outros países da Otan). Pesa sobre Obama e os EUA os ônus de oito anos de promessas não cumpridas, corrupção, tratamento arrogante, tolerância das arbitrariedades de senhores da guerra e do narcotráfico e conivência com suas fraudes eleitorais – renovadas em grande escala, conforme os observadores da ONU, na reeleição de Hamid Karzai.
Que a situação tenha se deteriorado a esse ponto deve-se em boa parte à decisão de Bush júnior de usar o pretexto da “guerra contra o terror” para apoderar-se do petróleo do Iraque, em vez de enfrentar o terrorismo. Um investimento sério para derrotar o Taleban e a Al-Qaeda – enfatizando,- obviamente, um esforço sincero para reconstruir o Afeganistão e melhorar o padrão de vida de seu povo, em vez de simplesmente oferecer oportunidades de lucro para empreiteiras e mercenários –, poderia ter sido vitorioso custando apenas uma fração dos trilhões de dólares comprometidos em Bagdá. Mas Obama limita-se a rever ênfases e prioridades, sem mudar drasticamente as concepções e metas que levaram o Pentágono à beira da derrota.
Não só o Afeganistão está quase perdido, como o vizinho Paquistão, mais importante, está ameaçado pela escalada do fundamentalismo. De aliados do Taleban, os militares paquistaneses foram forçados, da noite para o dia, a combater os fundamentalistas, mas o fazem com visível má vontade e parte deles continua a simpatizar com sua causa. Tudo indica que o mulá Omar, líder da organização, opera na cidade paquistanesa de Quetta sem ser incomodado. Antes restrito à fronteira afegã, o Taleban chegou a ameaçar Islamabad em abril deste ano e comete atentados por todo o Paquistão. Na segunda semana de outubro, atacou vários alvos na província mais importante, Punjab, incluindo Lahore, na fronteira da Índia e a antiga capital, Rawalpindi.
Combater o Taleban seria mais viável com a cooperação do Irã. Mas conter o regime iraniano é uma prioridade alta e conflitante na agenda de Obama, também sem mudanças radicais em relação ao que Bush júnior fez no segundo mandato, quando convenceu-se de que não conseguiria ocupar mais um país e abriu mão do unilateralismo para engajar a União Europeia na questão. O que a mudança de governo conseguiu de novo foi a tentativa de trazer a Rússia para esse multilateralismo, em troca do recuo quanto aos antimísseis. A julgar pela recente visita de Hillary Clinton à Rússia, com sucesso parcial, embora os EUA tivessem de aceitar não propor novas sanções neste momento.
Na outra ponta da estratégia para o Oriente Médio, em Israel, a mudança de comando na Casa Branca fez mais impressão, por uma questão de movimento relativo. Quando os EUA elegeram um presidente e um Congresso centristas, o povo israelense escolheu um governo ultraconservador, afinado com a direita republicana e cada vez mais nervoso em relação à possibilidade de uma mudança drástica da política de Washington em relação a Tel-Aviv.
Até mesmo o Nobel da Paz foi visto como uma ameaça. O presidente do Parlamento israelense, Reuven Rivlin, disse que “teme que o prêmio tenha sido dado para que ele possa tomar passos contra os interesses do Estado de Israel” e que “está preocupado em que dar o prêmio a Obama force Israel a dar certos passos”. Preocupa-se também com a possibilidade de o Nobel inibir os EUA quanto a atacar o Irã ou permitir que Israel o bombardeie.
O maior problema de Tel-Aviv está, porém, em casa. O bombardeio de Gaza foi um ponto de inflexão negativa nas suas relações internacionais e o novo governo agravou a questão com arrogância e intransigência, em vez de reconhecê-lo. O neofascista Avigdor Lieberman, agora chanceler, proclama aos quatro ventos que Israel não cogita um acordo de paz abrangente com os palestinos. Benjamin Netanyahu foge do assunto com catilinárias sobre o Holocausto e o Irã. Agora resiste histericamente a discutir o relatório da ONU sobre os crimes de guerra em Gaza, apesar das pressões dos aliados ocidentais para que permita uma investigação imparcial dos fatos.
Várias entidades europeias aderiram a um boicote a produtos israelenses, inclusive o Trades Union Congress, principal central sindical do Reino Unido. O governo britânico embargou a exportação de peças para canhoneiras israelenses que participaram do bombardeio a Gaza. O fundo de pensão do governo norueguês liquidou suas ações da indústria bélica israelense Elbit Systems, por participar da construção do “muro da vergonha” e da apropriação de terras palestinas. Em 5 de outubro, o ministro de Assuntos Estratégicos, Moshe Yaalom, cancelou uma visita a Londres depois de advertido de que poderia ser detido por crimes de guerra em Gaza.
A Turquia, tradicional aliada de Israel no Oriente Médio, veta manobras conjuntas da Otan com Israel, deixa de comprar armas e satélites israelenses e aproxima-se da Síria e do Irã. E Mahmud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, depois de inicialmente rejeitar o relatório da ONU para tentar agradar Israel e enfraquecer o Hamas, foi forçado pela opinião pública palestina a voltar atrás e fazer um acordo com a organização rival, marcando eleições gerais para reunificar o governo palestino.
Obama, porém, nada fez para justificar a ansiedade por parte de Tel-Aviv. Sequer condenou publicamente Netanyahu por ampliar as colônias judias na Cisjordânia e violar os acordos que deram o Nobel da Paz a seu presidente Shimon Peres em 1994. Há rumores de que Hillary Clinton prepara um relatório “duro” a esse respeito, mas ninguém apostaria em qualquer tipo de sanção dos EUA a Israel para impor um acordo com a Autoridade Palestina. O governo democrata tem muitos interesses e lobbies a conciliar.
Assim como também não se poderia apostar em nenhuma atitude mais decidida em relação a Honduras, onde o discurso em favor da democracia e do Estado de Direito se choca com o temor de ver o Pentágono despejado da base de Soto Cano. Na política externa, como na interna, o governo Obama enreda-se num labirinto ao tentar satisfazer interesses inconciliáveis.
Fonte: Carta Capital
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