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Tocaia, quadrinhos e elitização da cultura
Quadrinhos migram cada vez mais dos gibis para os livros. Longe de ser uma conquista, fato expressa os rumos de um mercado para um público cada vez mais restrito e de melhor poder aquisitivo. A elitização do mercado de quadrinhos acompanha uma tendência que se verifica no cinema e no teatro.
por Gilberto Maringoni*
Acabo de lançar um livro de histórias em quadrinhos. Chama-se "Tocaia", tem 110 páginas (algumas coloridas) e 14 histórias. Custa 45 reais. Não vou ficar aqui falando do que penso serem as qualidades do livro, o que seria o cúmulo do cabotinismo. Todo autor gosta de ter seu livro vendido, lido e comentado. Espero que todos comprem o livro.
Meu livro não é barato. Cada vez mais os quadrinhos deixam de serem veiculados em gibis e ganham as páginas de livros. Mais que uma mudança de forma, o que está em pauta é uma alteração no mercado de entretenimento, que se elitizou ao longo das últimas três décadas.
Um aficionado por histórias em quadrinhos dos anos 1980 que tomasse um túnel do tempo e fosse catapultado para uma grande banca de jornais dos dias de hoje, estranharia muita coisa. A primeira delas seria estar diante de uma pequena loja de conveniências. Doces, brinquedos, sorvetes, refrigerantes, CDs, DVDs e bugigangas várias teriam quase o mesmo destaque das publicações em papel. A segunda é que quase não encontraria gibis para adultos. Constataria o virtual desaparecimento daquelas publicações baratas, geralmente em branco e preto e impressas em papel jornal. Caso desejasse outras opções, além de quadrinhos infanto-juvenis, teria de ir atrás de uma livraria e gastar algo como dez vezes o que desembolsaria em um gibi.
O espantado leitor de 1980 descobriria que os gibis, com preços equivalentes a uma passagem de ônibus e tiragens acima de 100 mil exemplares, estariam basicamente limitados às edições dos personagens Disney e Mauricio de Sousa. Se formos rigorosos, veremos que apenas este último mantém acesa a velha tradição. É, disparado, o campeão de vendas. Mônica, Cebolinha e sua turma, cada qual em gibis próprios, tiram individualmente mais de 150 mil exemplares por mês, enquanto as revistinhas do criador de Mickey e cia. mal alcançam dez mil cópias cada uma.
Para tentar compreender a profundidade das mudanças, é preciso recuar um pouco mais. Peguemos emprestado o túnel do tempo daquele leitor.
Mercado editorial
O Brasil criou um mercado editorial em expansão quase constante entre 1930 e 1980, coincidente com o mais longo ciclo de crescimento da economia brasileira. Apesar da grande entrada de material dos Estados Unidos, as demandas e ofertas dos dois países não estavam sintonizadas. O maior exemplo disso aconteceu na década de 1950, quando surgiram gibis de terror, suspense e mistério. Enquanto nos EUA, o macartismo ensejou uma feroz censura às revistinhas, criando um código de ética que impediu o desenvolvimento de produções voltadas para o leitor adulto, relegando o gênero à eterna adolescência, aqui ocorreu o inverso.
Com a quebra da produção estadunidense, de repente, as editoras nacionais se viram desabastecidas de conteúdo e tiveram de apelar para artistas nacionais. Desenvolveu-se, entre o início dos anos 1950 e o final dos anos 1970, embora precariamente, o que se poderia chamar de uma escola brasileira de história em quadrinhos. No âmbito do terror, conseguiu-se sair das vertentes góticas europeizantes e gerar adaptações coladas à mitologia popular brasileira, farta em almas penadas, lobisomens, botos etc. Estes conviviam nas bancas com patos, ratos e heróis mascarados.
A partir do início dos anos 1980, contudo, o crescimento avassalador da indústria de entretenimento estadunidense se impõe em todo o mundo, ao mesmo tempo em que a economia brasileira fica estagnada por um longo período. Gibis chegavam aqui com o filme, os brinquedos e com toda uma parafernália de produtos retratando os heróis prediletos da garotada. O mundo editorial brasileiro ficou a reboque do mercado norte-americano. A vertente de quadrinho popular adulto é esmagada pela concorrência assimétrica.
A grande beneficiária das mudanças é a editora Abril. Em 1981, ela domina o mercado, detendo os direitos dos super-heróis das grandes editoras dos EUA, dos personagens Disney e Maurício, além de outros títulos. O padrão era o formatinho (13,5 X 19 cm.), com revistas muito baratas e de altas tiragens. Nessa época, título que vendesse abaixo de 40 mil exemplares era cancelado pela empresa dos Civita.
Por influência das tendências do mercado dos EUA, na segunda metade da década de 1980, aprofunda-se a mudança nos rumos editoriais do gênero no Brasil.
Gibis de luxo
A série de quatro revistas O cavaleiro das trevas, uma releitura de Batman feita pelo norte-americano Frank Miller, um autor nitidamente de direita, torna-se a marca da época, vendendo cerca de 60 mil exemplares.
O plano Collor teve um efeito devastador no mercado editorial brasileiro. Houve uma queda abrupta no poder aquisitivo da população e as vendas desabaram. As redações de quadrinhos das grandes editoras são extintas. Somado a isso, o próprio mercado internacional enfrentava novos concorrentes. A chegada de outras mídias, voltadas para o público infanto-juvenil – como jogos eletrônicos, internet, o DVD e outros – reduziu o interesse desse segmento para histórias em quadrinhos. Praticamente acabam as revistas em formatinho – a exceção são os títulos infantis – e o preço nas bancas sobe significativamente. Há uma clara opção das editoras por um público mais elitizado, o que sustenta tiragens menores, por volta de 10 a 12 mil exemplares.
Para os grandes monopólios da mídia, aos quais as editoras dos Estados Unidos estão vinculadas, o interesse maior é o de ter as revistas como ponto de venda e campos de experimentação para os filmes de ação, que vêm caracterizando a produção hollywoodiana. O paradoxo é que, apesar das fantásticas bilheterias de películas do gênero, a vendagem das revistas empacou.
Elitização do lazer
A elitização do mercado de quadrinhos acompanha uma tendência que se verifica no cinema e no teatro. Os preços dos ingressos aumentaram cerca de cinco vezes em termos reais nos últimos 30 anos, buscando uma equivalência com os valores pagos nos países ricos. Assim, a migração do leitor adulto das bancas para as livrarias, consumindo álbuns de tiragens de dois a três mil exemplares, é decorrência dessa mudança de perfil. Migração que passa por um apertado funil econômico, é bom lembrar.
Qual a saída para um público crescente, de baixo poder aquisitivo, ávido por produtos culturais? Tem sido a busca de outras mídias, especialmente músicas e filmes, que podem ser baixados da Internet ou pirateados. Os DVDs vendidos por camelôs custam exatamente o preço de uma passagem de ônibus ou metrô, a referência do gibi e do cinema de outros tempos.
Possivelmente aquele leitor de 1980, mencionado no início desta matéria, deixasse de lado as bancas e se animasse com o farto comércio informal das calçadas. E chegasse à conclusão que as cruzadas contra a pirataria são parte da elitização do mercado de entretenimento.
*Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
Fonte: Carta Maior
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