A primeira viagem de Hildelene Bahia no comando do navio Carangola.
Mulher no timão
Por Dil Mota Dias
Quando, no feriado de 12 de outubro, o navio Carangola fundeou no rio Negro carregado de 16, 6 mil metros cúbicos de petróleo, poderia ser mais uma atividade rotineira de uma das embarcações da Transpetro, subsidiária da Petrobras. Mas foi um marco histórico. Era o fim da viagem de estreia de Hildelene Lobato Bahia como comandante, a primeira mulher a ocupar o cargo na Marinha Mercante brasileira.
A própria trajetória da marinheira paraense de 35 anos, formada em Ciências Contábeis, foi menos guiada pela bússola do que pelas estrelas. O irmão de Hildelene havia decidido prestar o concurso para a Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante. Ela, para ajudar o irmão a estudar, resolveu se inscrever também. “Para minha surpresa, fui aprovada e ele não”, conta Hildelene, que passou a integrar o primeiro quadro feminino do Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (Ciaba), em Belém.
De lá para cá, ela acumula quase meio milhão de milhas navegadas, o equivalente a duas vezes e meia a distância entre a Terra e a Lua. São mais de 1.700 dias no mar. A bordo de petroleiros, atravessou oito vezes o Estreito de Magalhães e acompanhou trabalhos de obras e reparos de embarcações em estaleiros de Cingapura e no Golfo Pérsico. No Bahrein, chamaram sua atenção a surpresa dos muçulmanos ao ver uma mulher na chefia e as joias das muçulmanas. A bordo do Carangola, a vaidosa Hildelene não dispensa o batom e os brincos, mesmo trajando roupas e equipamentos de proteção.
O primeiro dia de viagem começou de madrugada. Às 3 da manhã do dia 1º de outubro, o Carangola deixou a Baía de Guanabara rumo a Manaus. Apesar da experiência, a comandante estava um pouco ansiosa. O mau tempo e a pouca visibilidade a preocupavam. “Agora a responsabilidade de decidir é só minha. Além de transportar um patrimônio da empresa, sou responsável pela tripulação”, diz.
A costa da Bahia, emoldurada por um céu claro e mar azul, afasta as nuvens do semblante da comandante de primeira viagem. É o terceiro dia de jornada, um sábado, e mesmo em alto-mar, nos fins de semana o navio diminui o ritmo das atividades. A comandante aproveita para uma visita à cozinha e ao paiol de mantimentos. “Os melhores chefs do mundo são homens”, enfatiza Paulo Moreira, cozinheiro de bordo, que parece confiar mais nas habilidades de Hildelene como comandante. Ela mesma confessa preferir pilotar navios a fogões.
Reza a lenda que os marinheiros têm uma mulher em cada porto. A regra, pelo visto, não vale para marinheiras. O porto seguro de Hildelene é o também marítimo Paulo Roberto Souza de Moraes, com quem está casada há cinco anos e que dá a maior força à mulher. “É meu sonho também que está sendo concretizado”, afirma Moraes, confessando sua intenção de se juntar à tripulação da amada. “Nosso desejo é poder embarcar juntos para diminuir a saudade.”
Assumir a função de primeira comandante da Marinha Mercante brasileira não limita as ambições de Hildelene. Com mais dois anos de embarque, ela poderá se tornar capitã-de-longo-curso e comandar petroleiros em travessias de águas internacionais. Tudo muito bem planejado, diz, para poder realizar outro sonho, o de ser mãe.
O Carangola deixa o litoral baiano com um mar prateado pela lua cheia. No domingo, um almoço reúne todos a bordo, vestidos com o uniforme branco em homenagem à comandante. Segunda-feira é dia de burocracia até no oceano. Hildelene se tranca no escritório para a parte mais formal de seu trabalho, que inclui os preparativos para vistorias nos portos e a prestação de contas.
No sexto dia de viagem, já na costa do Ceará, o trabalho da nova comandante começa com a visita às equipes que atuam no turno da madrugada. “É preciso valorizar os tripulantes que realizam um trabalho silencioso. Se tudo corre bem, todos dormem tranquilos”, ensina. Parecia adivinhar que o dia seguinte seria agitado, de temperaturas altas e mar arisco, na véspera de o Carangola cruzar a Linha do Equador. A tripulação se prepara para subir o rio Amazonas, seguindo procedimentos de navegação em águas restritas.
“Isto significa que o navio fica com restrições de manobras e há instruções a serem seguidas”, explica Hildelene. A primeira orientação é passar o sistema de direção do modo automático para o manual. Ou seja, nos próximos três dias haverá um marinheiro no timão sob as ordens diretas da comandante. Durante a navegação pelo Amazonas, o navio ganha outros ares. A paisagem da viagem muda. O azul do mar dá lugar às águas escuras do rio e, mesmo de longe, já se consegue avistar o verde da floresta.
Andrey Reinert, prático que conduziu o navio, revela um momento curioso. Durante a madrugada, enquanto subia o rio, o Carangola cruzou com o navio Floriano, que já pertenceu à frota da Transpetro e foi vendido neste ano a uma empresa da Índia que vai reaproveitar suas peças. Por rádio, o prático da outra embarcação perguntou se aquele era o navio da comandante Hildelene. “Confirmei que sim, e ele imediatamente comentou com o comandante indiano que era um fato histórico”, conta Reinert.
Apesar da rigidez dos procedimentos em águas fluviais, o sábado seguinte, décimo dia de viagem, é de descontração. Alguns tripulantes recebem certificados de batismo, fazendo jus à tradição marinheira: quem cruza a Linha do Equador pela primeira vez é batizado por Netuno, rei dos mares e dos rios.
É um batismo de fogo também para a comandante. A poucas horas de chegar a Manaus, ela esclarece que a viagem só termina quando descarrega o produto, embora já tenha o sentimento do dever cumprido. Apesar de longo, não houve tempestades no trajeto e, o que é melhor, nenhum motim por parte da tripulação masculina. “Confesso que no início estava preocupada com a reação deles”, ri Hildelene. “Mas encontrei uma equipe muito unida e motivada.” Se houve porventura a bordo algum marujo mais machão que não gostou de ver uma mulher ao leme, ficou a ver navios.
Fonte: Carta Capital
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