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por Gabriel Brito e Valéria Nader* – Da Redação do Correio da Cidadania
Nos últimos dias, o público pôde acompanhar notícias que davam conta de um estremecimento da relação do governo federal com a direção da Vale do Rio Doce e suas estratégias de negócios. Uma suposta insatisfação de Lula com Roger Agnelli, presidente da empresa, poderia vir a abrir caminho para a entrada do mega-empresário Eike Baptista, concessionário de minas, dono de siderúrgicas e uma petrolífera, além de ser o homem mais rico do país e filho de Eliezer Batista, ex-administrador da Vale.
Para o sociólogo e agrônomo Raimundo Gomes Neto, entrevistado pelo Correio da Cidadania, trata-se apenas de um jogo político cujos interesses seriam escusos, e não de mudança no modelo que, de acordo com ele, não gera desenvolvimento ao país. Uma companhia do porte financeiro e estratégico da Vale poderia servir aos interesses petistas na corrida eleitoral de 2010, o que ele alerta já se observar com a inauguração de uma siderúrgica em Marabá-PA.
Traça-se, portanto, cenário bem distante daquele já explorado pela grande imprensa que, a partir, obviamente, de sua conformação neoliberal, tem insistido em um certo propósito desprivatizante, ou neoestatizante, de Lula, o que se mostraria em seus intentos relativos à Petrosal, Petrobrás, ‘nova’ Eletrobrás, capitalização de bancos públicos e também à Vale.
Raimundo acredita que o verdadeiro caminho para a retomada do papel propulsor da empresa ainda é unicamente o da anulação dos leilões que entregaram a empresa a preço de ocasião às mãos do capital privado. O sociólogo acredita na validade do argumento de Lula, de que a empresa deveria produzir bens de maior valor antes de exportá-los, mas o vê como um discurso que, devido ao seu fácil apelo, encobre as reais necessidades de mudança nesta que é uma das mais rentáveis empresas do mundo.
A entrevista completa pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Em entrevista anterior neste mesmo Correio, você mencionava a cumplicidade do governo estadual, mas também do governo federal, com a Vale, e também a amizade de Lula com Roger Agnelli. O que pensa agora dessas últimas notícias bastante exploradas pela mídia e que dão conta de um possível afastamento de Lula relativamente à atual direção?
Raimundo Gomes Neto: O que temos observado, e de acordo com as informações que temos, é que o governo quer emplacar um outro nome. Sendo assim, imagino que seja uma estratégia, desqualificando um para prestigiar outro que será apresentado pelo governo.
É só um discurso. Agora que eles estão reconhecendo que a Vale não gera desenvolvimento? Só agora? Assim, eu vejo por esse aspecto; não é por um projeto de fato que a Vale pode vir a ter alguma mudança. Trata-se apenas de desqualificar o atual diretor para qualificar outro, que eles queiram colocar na direção da Vale.
CC: O que pensa anunciada aproximação de Lula com Eike Batista e dos propósitos do empresário de adquirir parte da Vale?
RGN: Bom, o Eike é filho do Eliezer Batista, antigo diretor da Vale, e herdou todo o conhecimento sobre a empresa que o Eliezer tem, já que administrou a empresa por muito tempo e a conhece por dentro e por fora.
Trata-se mais do interesse do Eike de se apropriar desse patrimônio, que por muito tempo foi do pai dele, gestor e administrador da empresa, tendo feito o que fez.
É esse o interesse. E o Eike conhece as minas, vai aos locais, adquire e depois vende. É uma estratégia para ganhar dinheiro.
CC: Dessa forma, uma direção a la Eike não seria menos perversa do que a la Agnelli.
RGN: Não imagino. Como nós debatemos a questão? É preciso destruir o atual modelo, que não depende de quem assume, mas de remover as condições que fazem a Vale ser o que é hoje; esse modelo imposto a ela que precisa ser quebrado. E neste modelo a Vale tem a tarefa de ser uma empresa mineradora que extrai minério e o transfere para outros países. E que vende daqui de forma semi-acabada.
Isso não é uma questão de quem é o diretor, mas da ordem colocada nacionalmente. Se o país continuar submisso a essa lógica das tradições coloniais de ser fornecedor de matéria prima, não adianta mudar o ocupante do cargo.
Sendo assim, eu vejo a entrada do Eike como algo mais perigoso ainda, pois é alguém que conhece a companhia – ainda que na verdade todos conheçam. Ele é um cara colocado como ‘empresário de ganhar dinheiro’. O Eike é isso. E agora se associa com o José Dirceu, outro que vive de ganhar dinheiro com consultoria de estratégias econômicas e não sei o que mais.
Acho que eles vão se dar bem nesse projeto.
CC: A grande imprensa, a partir obviamente de sua conformação neoliberal, tem insistido em um certo propósito desprivatizante, ou neoestatizante, de Lula, o que se mostraria em seus intentos relativos à Petrosal, Petrobrás, ‘nova’ Eletrobrás, capitalização de bancos públicos e também à Vale - obviamente que, no caso da Vale, criticando este objetivo em uma empresa que teria dado certo, com seus altos índices de lucratividade. O que você pensa desse contexto?
RGN: Nós que acompanhamos mais de baixo, não vimos nada disso se anunciar até agora nesse sentido. O discurso é o de que ela pode viabilizar não só a extração mineral, mas também a transformação e industrialização do país. Esse é o discurso a que temos assistido. A estratégia seria essa: mudar os rumos da Vale, no entanto, mantendo seu caráter privado.
Dessa forma, não consigo enxergar nenhuma possibilidade de se retomarem as lutas de contestação, não se fala mais em anulação dos leilões. E o primeiro passo seria anular o leilão que causou a privatização, possibilitando o julgamento das ações que foram impetradas contra o processo e não terminaram de ser julgadas. Mas isso está esquecido.
O discurso é apenas o de que a Vale pode não apenas extrair, mas transformar a matéria-prima em coisas acabadas aqui dentro.
CC: E o governo não poderia se utilizar de outros artifícios se quisesse mesmo aumentar seu controle sobre a empresa, que não fosse a entrada de um empresário supostamente mais afinado a suas idéias de gestão?
RGN: Acho que a única forma seria justamente anular o leilão. Porque hoje o que o governo detém são as ações ordinárias, que dão direito no âmbito administrativo. Nas ações preferenciais, que dão direito ao lucro, estamos perdendo. Já existe a informação de que 70% dessas ações estão na mão de estrangeiros, fora do país, portanto.
O lucro da Vale não serve para nós, pois está lá fora, com muito pouca participação, uma vez que, dos 30% restantes, boa parte está com empresários, grupos privados. O governo tem uma merreca de 6 a 8% do lucro líquido da Vale. Essa estrutura é que deve ser quebrada.
CC: Mesmo sem romper com tal estrutura, o governo não poderia, ainda dentro dessa concepção, aumentar sua fatia de poder e influência na empresa, sem precisar de um Eike Batista?
RGN: Claro, por isso falo que não se trata da pessoa, e sim de que temos aí uma grande negociata, que passa por grupos majoritários do PT, que entendem existir ali também uma mina de dinheiro, que pode ser revertido para campanhas.
É o caso do Toninho e outros petistas que juntavam dinheiro pra campanha. Por isso querem um cara articulado com eles, que faça parte do esquema.
Eu só enxergo assim, não vejo esse povo de Zé Dirceu e companhia agir de outra forma, que não a de lesa-pátria.
CC: Mas o presidente de alguma forma salientou o fato de que a empresa não faz aquisições importantes no mercado interno e que não é bom o seu foco na produção de minérios para a exportação - o melhor seria a produção de aço, em função dos efeitos propulsores que uma produção mais elaborada teria na cadeia industrial nacional. Fazer uma crítica relevante, ainda que com o propósito de jogar pra platéia, já não ajuda na discussão?
RGN: Sim, a crítica é válida, e todo mundo sabe disso, que a Vale não pode ser apenas uma extratora de minério que faz apenas produtos semi-acabados. Todo mundo sabe que o Brasil precisa sair desse estágio colonialista de fornecedor de matéria-prima para outro e avançar na produção de ciência e tecnologia no país, para aproveitamento de seus recursos naturais, entre eles os minerais. Não pode ser só exportador de madeira, energia. Esse reclame é histórico, por isso o discurso pega. Mas não se insere numa mudança administrativa, e sim numa lógica à qual o país se submete.
No entanto, é preciso acompanhar e estudar o que se faz, por isso devemos ficar atentos a todo o jogo montado para beneficiar um filho de um histórico ex-administrador da Vale.
Creio que as vontades políticas eleitoreiras não estejam atingindo seus fins. O caso da siderúrgica implantada em Marabá é um ato político, pois não resolverá os problemas do local, vai agravá-los. E o Estado já faz desapropriações em áreas de assentamento. São 43 famílias assentadas pelo INCRA há 5 anos em terras que o Estado quer desapropriar e ceder à Vale do Rio Doce. É uma área ocupada há três gerações, e agora elas terão de se afastar e buscar recanto na cidade. É um ato perverso para quem está aqui na região. Isso tem de ser levado em conta em meio a essas estratégias.
CC: Em entrevista anterior, você mencionou que a luta no que se refere à Vale seria bem maior do que a sua reestatização e que deveria passar primeiramente pela anulação dos leilões e pela forma como a empresa é gerida. Acha que a visibilidade adquirida pela Vale nesses últimos dias possa de alguma forma colaborar com tais objetivos?
RGN: Agora seria justamente o caso de concentrar forças nisso. Já que eles estão com o discurso de fazer a Vale realmente gerar desenvolvimento regional e nacional, teriam de tomar outro rumo. Seria o primeiro passo, o momento da pressão. Se eles querem isso, anulem os leilões. Deveria ser o primeiro ponto da pauta. Pela forma como querem a Vale, de propulsora de desenvolvimento para o país, deveriam ser julgadas as ações que contestam o leilão.
Creio que os movimentos sociais deveriam se focar nisso agora, para colocar todo o modelo em xeque.
*Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Fonte: Correio da Cidadania
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