Democracia, cidadania e poder
por Diego Viana
Nada mais fácil que perder de vista a realidade da democracia, quando ela se torna só mais uma palavra bonita a manejar em proveito próprio. A democracia tem, sim, um sentido de realidade que poderia e deveria ser experimentado no dia-a-dia de cada um, mas quem é que experimenta isso? Uma das coisas mais irônicas que há, por exemplo, é ouvir a Justiça Eleitoral brasileira falar em “festa da democracia” para seus mesários, poucos dias depois de lhes mandar uma correspondência que abre com “Fica vossa senhoria intimada…”. Quantas vezes essa carta me fez sorrir amarelo! Não é à toa que, ao redor do mundo, cada vez mais pessoas, principalmente jovens, se digam desencantadas com a democracia.
Acontece que falamos em democracia quando queremos designar um sistema de governo onde consta o sufrágio universal para o Executivo e o Legislativo. E só… De forma que o princípio democrático acaba se confundindo com o princípio republicano – estranhamente, até em monarquias. E ainda evocamos, muito sábios, a batidíssima etimologia dessa palavra de 2400 anos: o poder do povo, isto é, o poder com o povo, nas mãos do povo. Mas que poder é esse que tem o povo? E quem é esse povo tão poderoso? Ou, misturando as noções: em todos esses países democráticos, o que pode o povo? Aposto com quem quiser que é preciso repensar o que entendemos por democracia se quisermos que a palavra faça jus à própria origem e ao sentido tão positivo que, recentemente, passamos a lhe atribuir.
Digo recentemente porque, nesses já mencionados 2400 anos de história da democracia, o conceito não é louvável há mais que, digamos 150. Até então, era quase sinônimo de bagunça, porque a idéia de “povo” correspondia a uma massa amorfa de gente sem a menor qualificação para exercer qualquer forma de poder. Se hoje o contrário de “democracia” é “ditadura”, entre os antigos não era assim. Democracia era entregar as decisões da coletividade para o “populacho”. Ditadura era um arranjo temporário para consertar uma situação desesperadora, às vezes por culpa desse próprio populacho. Aquilo que melhor corresponderia ao nosso termo “ditadura” era a tirania, mas quem levava a culpa por esses regimes de exceção era a democracia. E o oposto da democracia era a aristocracia, o poder nas mãos “dos melhores” (hoi aristoi). Definitivamente, declarar-se democrático, antigamente, não era a melhor propaganda.
Longe de mim atacar a democracia! Mas é importante lembrar que ela não cai do céu, só funciona em condições propícias e, se às vezes patina, é porque precisamos examinar melhor o que estamos tratando por esse nome. Por exemplo, todos esses fenômenos contemporâneos estão ligados: a sensação difusa, no Brasil e outras terras, de que não há democracia de verdade no país; a queda para o já mencionado populismo, não raro ditatorial, dos regimes de quase toda a América Latina no último século; a dificuldade nada surpreendente de estabelecer um “regime democrático” nas aldeias isoladas do Afeganistão; a saudade da ditadura militar que muita gente manifesta em qualquer cidade brasileira; o desinteresse dos europeus pelas eleições; a percepção de que mesmo nos EUA, maior democracia da Terra, existe uma tendência a sempre alçar mais ou menos os mesmos clãs ao poder, década após década.
Nada disso é à toa, nem são maldições que recaem sobre povos “inferiores” ou coisa do gênero, como quer certo fatalismo muito em voga no Brasil. Tudo isso são indícios da anemia democrática de um mundo que trata levianamente esse seu princípio fundamental. Se quisermos salvar a democracia – sim, ela está sempre sob ameaça – ou mesmo desenvolvê-la, é preciso lhe dar um pouco de atenção. E proponho um começo: interessar-se pela segunda parte do termo.
Já se fala muito, às vezes com lágrimas nos olhos, do “povo” a quem a democracia dá poder. Mas ainda não ficou claro que poder é esse. Muito se traduz o grego “kratein” como governar, mas, como sempre acontece com palavras tão antigas, a tradução não é tão direta assim. Outras traduções possíveis são poder, dominar, comandar – ter força, capacidade e habilidade. É o poder do governante, sim, mas também é o poder do artesão que domina uma técnica e do escravo que tem força para empurrar uma pedra morro acima. O poder que esse verbo expressa é o poder de fazer, realizar algo. Mas o quê?
Os antigos gregos, inventores da palavra e do conceito de democracia, costumavam descrever a política (arte de organizar uma cidade) como um grande corpo coletivo. A analogia era com o organismo humano, por sinal. Cada categoria social tinha sua função nesse corpo, como os órgãos que nos mantêm vivos. Os agricultores cultivavam, os mercadores comerciavam, os guerreiros combatiam e os nobres discutiam a administração da coisa pública no paço central. Tudo muito bem determinado, de tal maneira que cabia a esses poucos nobres (os tais aristocratas) a função de fazer funcionar a máquina, ou melhor, o corpo. Eles tinham esse poder: o poder de organizar e, consequentemente, governar a cidade. O outro poder, de mandar e desmandar, lhes aparecia como decorrência natural desse primeiro e fundamental poder, um poder técnico, quase artesanal, de organizar e garantir as estruturas da vida coletiva.
Se uma aristocracia é o regime em que cabe aos tais “melhores” determinar os modos de funcionamento da vida política, a democracia deve ser o regime em que essa prerrogativa, esse cargo, essa função, essa obrigação, chame como quiser, cabe a todos. Todos os cidadãos. Eis por que o conceito de cidadania é tão indispensável para o conceito de democracia. Lá onde a cidadania é incompleta, incompleta é a democracia. Cidadania é a participação plena na sociedade, em condição igual com qualquer outro cidadão, o que significa que, se numa sociedade qualquer alguém for cidadão pela metade, ou for excluído, ou desprezado, ou idiotizado pela propaganda e assim por diante, a democracia sofre um baque enorme: o povo que deveria se ocupar da administração da sociedade perde esse poder. E é claro que ele cai na mão do primeiro aproveitador que aparece.
As falhas da democracia são conhecidas e comentadas desde que ela existe. Com uma frequência desanimadora, as pessoas chegam à assustadora conclusão de que essas falhas invalidam a tentativa de construir sociedades em que todos são chamados a participar – e participar mesmo, não apenas pelo voto. Daí a longa e lamentável história de golpes, ditaduras, tiranias e manipulações que marcam a curta história de uma humanidade que considera a democracia como um termo positivo. Mas a implantação da democracia exige uma maturidade que se manifesta naquela frase tão conhecida de Churchill: é o pior regime que existe, afora todos os demais.
A maturidade democrática consiste em aceitar o fato de que ela jamais será completa e nem por isso querer abandoná-la. Muita gente já tentou imaginar formas de administração da sociedade perfeitamente funcionais, sem uma falha sequer, fluida como os astros no céu (era a comparação que eles usavam…). O resultado foi sempre tirania e por um motivo muito simples: é um absurdo esperar que um ser cheio de imperfeições como o humano se encaixe num sistema perfeito, como os parafusos de um relógio. Depois, como o mais importante passou a ser o funcionamento do sistema, quem precisa se adaptar é o mais maleável e frágil indivíduo. E, se necessário, ele é encaixado na marra. Mas não só as ditaduras formatam violentamente os cidadãos. Mesmo em países que se querem democráticos, a manutenção de uma grande parte da população num estado de abandono social, o estabelecimento de uma burocracia eletrônica para tentar controlar cada mínimo detalhe da vida, a transformação do processo político num circo publicitário, são coisas que sufocam e aniquilam a democracia. Quem nunca viu disso?
O que há de maravilhoso na democracia, nessa forma como acabamos de entendê-la, é justamente o fato de não ser perfeita e não precisar sê-lo. Porque, no fundo, ela é um processo interminável de aperfeiçoamento, cuja única exigência é uma sociedade cada vez mais justa e igualitária. A democracia permite maior liberdade porque sobrevive mesmo quando algumas coisas não funcionam. Ela cresce com o desenvolvimento da civilidade entre os cidadãos porque a matéra-prima dela é justamente essa civilidade.
Quanto mais cidadania, mais democracia. Segurança, defesa, riqueza, tudo isso são valores acessórios. São palavras que se escutam o tempo todo em qualquer campanha eleitoral, mas a verdade é que o que elas significam aparece quase espontaneamente se uma sociedade for capaz de garantir para todos os seus membros uma única coisa: cidadania plena. E já que, como vimos, a cidadania é o pressuposto da participação política, que por sua vez é o pressuposto do poder de administrar a sociedade, então a cidadania, numa democracia, nada mais é do que outro nome para o poder. Se o poder jorrar de alguma outra fonte – as armas, a polícia, a propaganda, os acordos de bastidores, o que for – é porque a democracia está em falta.
[ imagens:
- urna eletrônica brasileira
- Partenon, símbolo da democracia na Grécia antiga ]
Fonte: Amálgama
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