quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A ditadura do ombudsman

A ditadura do ombudsman

Recife (PE) - Qualquer pesquisa na internet informará que ombudsman é uma palavra sueca que significa representante do cidadão. E que a Folha de São Paulo foi o primeiro jornal brasileiro a ter algo semelhante, o seu próprio ombudsman, que deveria ser um profissional dedicado a receber, investigar e encaminhar as queixas dos leitores; realizar a crítica interna do jornal e, uma vez por semana, aos domingos, etc. etc. Vamos ao ponto e ao fato, agora.

Em 29 de julho de 2009, lancei o livro “Soledad no Recife” em São Paulo. O livro narra os últimos dias de Soledad Barrett, a militante socialista que teve a infinita infelicidade de ser mulher do Cabo Anselmo, pois grávida foi entregue por ele ao assassino Fleury. Que a executou sob torturas, a ela e a mais cinco militantes, em 1973. Isso é histórico. O livro, uma recriação literária em cima de pessoas, depoimentos e papéis, expõe o caráter da traição de Anselmo, em um momento que não poderia ser mais inconveniente para ele.

De fato, na manhã seguinte ao lançamento, em 30 de julho, o Cabo Anselmo foi à Justiça Federal de São Paulo tirar impressões digitais para comparar com as registradas em seus documentos na Marinha. No outro dia, a Folha de São Paulo noticiou em caráter de exclusividade:

"Cabo Anselmo reaparece em São Paulo e quer anistia"

Em pouco mais de 40 minutos, Anselmo tirou suas impressões digitais. A conclusão - que vai dizer se a pessoa que fez a perícia é o cabo Anselmo - vai ser apresentada em 30 dias. Só depois ele poderá retirar novamente carteira de identidade, CPF e título de eleitor, e passará a ser o último dos beneficiados pela Lei de Anistia...

‘Estou tomando porrada há muito tempo’, (Anselmo) reclamou à Folha. ‘Esse pessoal da esquerda ainda inventa muita mentira’, diz. ‘Há muita resistência no governo. Estão me enrolando já faz um bom tempo.’”

Então enviei esta mensagem ao ombudsman do jornal:

“Sou Urariano Mota, escritor e jornalista, autor do livro ‘Soledad no Recife’, lançado há menos de uma semana. Nesse livro há uma recriação dos crimes conhecidos como a ‘Chacina de São Bento’, e, mais particularmente, da traição de que foi vítima Soledad Barrett Viedma, mulher do Cabo Anselmo, entregue por ele a Fleury. Gostaria de chamar sua atenção para:

a) dois dias depois do lançamento do livro, o Cabo Anselmo reapareceu como notícia na Folha - a denúncia que faço do seu trabalho em janeiro de 1973 vai contra as suas pretensões de anistia;

b) não tive acesso à Folha de São Paulo, apesar do contato da editora com o repórter Lucas Ferraz.

Em nome da imparcialidade, ou pelo menos em nome do tradicional ‘ouvir o outro lado’, gostaria de ser ouvido, pois escrevi a outra versão, expressa em ‘Soledad no Recife’.”


A isso respondeu o ombudsman:

“Caro Senhor, a resposta da Redação está abaixo.

‘A reportagem a que o leitor se refere era sobre o tutor do Cabo Anselmo, acusado de tortura.

No texto é citado o episódio conhecido como massacre de São Bento, quando foram assassinados seis militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). O episódio consta em várias obras que retrataram o período. A Folha citou na reportagem o livro 'A Ditadura Escancarada', do jornalista Elio Gaspari, que descreveu a ação como uma 'das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura'."


O que me fez retornar:

“A resposta não satisfaz, porque:

1. Aqui, mais uma vez, repete-se o erro comum na imprensa - bem sei, sou também jornalista: em lugar de analisar e aprender, justifica-se.

2. O meu livro era o fato mais imediato e relevante às ações do Cabo Anselmo: lançado em 29/07, véspera de sua ida à Justiça em São Paulo, e todo narrado e construído em cima da ex-mulher do ‘cabo’, a brava Soledad Barrett Viedma.

3. Se o ilustre repórter houvesse parado para ler ou me ouvir antes de se justificar, aprenderia que jamais houve qualquer massacre na chácara. Então veria que o meu livro desmonta, peça por peça, o massacre da chácara. Jamais houve qualquer ou quaisquer assassinatos na chácara São Bento.”


E assim ficamos, até hoje. Nem a Folha me ouviu nem resenhou o livro (que merece alguma crítica, acreditem, pois sobre ele já falaram O Estado de São Paulo e O Globo). Somente agora, três meses depois, revelo este caso da democracia na Folha de São Paulo. O seu ombudsman pode até receber e encaminhar as queixas dos leitores. Mas poderia ser substituído por uma caixa online, que a cada reclamação respondesse automático: caro senhor, muito obrigado, senhor, atenciosamente.

*Urariano Mota, 59 anos, é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).

Fonte: Carta Maior

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