sábado, 3 de outubro de 2009

Uma proposta chinesa para pôr fim à guerra no Afeganistão

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CHINA: Proposta para pôr fim à guerra do Afeganistão

por M.K. Bhadrakumar, no Asia Times Online


O artigo “Um mapa para a paz no Afeganistão” publicado no jornal chinês China Daily (em inglês), na 2ª-feira (28/9/2009), merece leitura cuidadosa. O jornal China Daily é publicação estatal e o artigo é rara peça de opinião focada, que propõe medidas concretas a serem tomadas com o intuito de desatar o nó em que está convertida a guerra do Afeganistão.

O artigo é creditado ao presidente do Conselho Chinês para Estudos de Políticas de Segurança Nacional, Li Qinggong. Tem-se observado nos últimos tempos, aumento considerável no número de matérias sobre o Afeganistão em jornais chineses. É possível que, depois dos eventos em Xinjiang, tenha aumentado a preocupação dos chineses em relação ao aprofundamento da crise no Afeganistão, que tem impactos na segurança nacional chinesa.

O momento em que o artigo foi publicado também é importante. O ponto de virada foi o oitavo aniversário da guerra afegã, com a comunidade internacional a debater furiosamente os prós e contras de diferentes cenários para o Afeganistão. A guerra está num impasse, com os Taliban resistindo ao formidável exército da OTAN liderado pelos EUA. A OTAN não dá qualquer sinal de poder declarar “vitória” sobre os Taliban; alguma “vitória” da OTAN, de fato, parece cada dia menos provável; provável, mesmo, no máximo, que a OTAN evite a derrota e consiga falar de “sucesso” no processo de “afeganistização” da guerra.

O momento em que aparece o artigo é significativo, porque coincide com a revisão que o governo de Barack Obama está promovendo da sua estratégia para já sete meses de guerra no Afeganistão, revisão anunciada em março. Em termos genéricos, o pêndulo do debate norte-americano balança entre uma escalada no esforço de guerra, com aumento da força bélica no Afeganistão; e uma desescalada no projeto, com a guerra convertida em operação de contrainsurgência.

Há um granus salis nessa oportunidade, também, porque o debate desenrola-se sobre o pano de fundo de uma maré montante de oposição ao envolvimento militar dos EUA no Afeganistão, na opinião pública nos EUA. E há a reunião anual do Conselho de Segurança da ONU sobre o Afeganistão, iniciada em New York na 2ª-feira. E a ONU propõe que se organize uma conferência internacional sobre o Afeganistão ainda no ano em curso.

O artigo do China Daily traz vários pontos importantes. Primeiro, declara sem meias palavras que Washington deve pôr fim às operações militares no Afeganistão. Sem atenuantes, sem oferecer álibis. Em termos simples: a guerra só fez agravar o turbilhão político e social em que se debate o Afeganistão; causou turbulência e mais violência; não trouxe nem a paz nem a estabilidade que o governo George W Bush prometera; nem trouxe qualquer "benefício tangível" para os próprios EUA. "Ao contrário, a legitimidade da ação militar dos EUA tornou-se cada dia mais duvidosa."

É claro, portanto, que há urgente necessidade de promover a reconciliação entre os vários grupos afegãos e esse esforço deve necessariamente começar por os EUA encerrarem todas as suas operações militares no país.

Em segundo lugar, a dramática mudança na opinião pública norte-americana – 58% dos cidadãos manifestaram-se contra a guerra, segundo pesquisas recentes –, e o ceticismo crescente em relação à guerra, no Capitólio –, especialmente a onda de oposição dentro do Partido Democrata – lançam sombras ameaçadoras sobre o destino da estratégia do governo Obama para o Afeganistão. Claro: Obama "não pode investir todo o seu destino político, numa guerra impopular."

Mas Obama pode explorar os humores sociais e políticos nos EUA, para desligar sua presidência, da guerra do Afeganistão. O artigo lembra que desde a posse, em janeiro, Obama vive sob pressão do Pentágono para que promova uma "escalada" no esforço de guerra. Agora, "o jovem presidente dos EUA terá melhor chance de conseguir escapar às pressões do Pentágono", se escolher alinhar-se aos sentimentos nacionais de seus compatriotas, cada dia mais declaradamente de oposição à guerra.

Obama pode acionar, se decidir pôr fim à guerra, a ideia de que "assim não apenas responderia às expectativas dos norte-americanos e salvaria vidas de norte-americanos, mas também contribuiria para recompor a imagem dos EUA como nação amante da paz; além de aumentar suas possibilidades políticas pessoais".

O artigo detém-se a poucos passos de construir uma analogia histórica com o governo de Lyndon Johnson e a guerra do Vietnã, mas o alerta lá está, bem claro: a guerra do Afeganistão pode comprometer seriamente a carreira política de Obama e demolir suas aspirações à reeleição para um segundo mandato.

Em terceiro lugar, o que acontecerá se os EUA puserem termo à intervenção militar no Afeganistão? A resposta é que abrir-se-á uma via para um acordo político. E como se pode construir esse acordo? A resposta: não há alternativa para acordo político que não passe pela via da reconciliação nacional. E qualquer processo de reconciliação nacional no Afeganistão tem de envolver "todos os atores-chave que possam influenciar o processo de decidir sobre o futuro do país", especialmente o governo afegão, os Taliban e as forças designadas na imprensa ocidental como "senhores-da-guerra" [ing. warlords]".

Essa abordagem parte do pressuposto de que a guerra do Afeganistão é sobretudo disputa fratricida entre grupos locais, elemento ao qual se soma hoje, como complicador, o "fator EUA". De fato, vários grupos estão hoje presos numa "batalha caótica", que envolve as forças da coalizão liderada pelos EUA, soldados do governo afegão e os senhores-da-guerra locais", além dos Taliban e das forças da al-Qaeda. Deduz-se desse quadro que não há linhas de combate claramente demarcadas.

Em quarto lugar, a confusão que brota do cenário político afegão acrescenta complicações ao já existente "caos doméstico". As eleições presidenciais de 20/8 não levaram a resultado final claro e só acrescentaram instabilidade à incerteza geral, situação que pode durar meses. A recontagem dos votos não ajuda a serenar os ânimos, com os EUA pressionando o presidente Hamid Karzai para que realize um segundo turno eleitoral. Outra vez, o artigo detém-se a poucos passos de declarar que a interferência dos EUA só fez agitar ainda mais as barrentas águas políticas afegãs.

Em quinto lugar, seguindo a linha de pensamento acima, diz o artigo: "Karzai parece estar conseguindo apoio interno para a ideia de que os EUA não são parceiros confiáveis para ajudar a pôr fim às atuais dificuldades no Afeganistão. Conversações – diz o artigo – são a única via de saída remanescente. O presidente afegão poderá iniciar o processo de conversações tripartites com os Taliban e os principais senhores-da-guerra, desde que os EUA ponham fim à ação militar no Afeganistão."

Em sexto lugar, o artigo considera o papel da comunidade internacional. Por um lado, convoca o apoio da comunidade internacional para a ideia de criar-se um processo de paz essencialmente intra-afegão. Por outro lado, sugere que a comunidade internacional deve tirar vantagem dos crescentes sentimentos antiguerra nos EUA e "forçar" Obama a pôr fim à guerra e a retirar do Afeganistão todos soldados estrangeiros.

Poderá ser útil a Obama citar "pressões internacionais", como "mais um argumento" para a retirada das tropas. Três grandes potências europeias – Alemanha, França e Grã-Bretanha – já tentaram organizar uma conferência internacional a acontecer ainda esse ano, para discutir o fim da ocupação do Afeganistão e desenvolvimentos posteriores. O Conselho de Segurança da ONU portanto deve assumir a liderança e organizar essa conferência, com vistas a construir um consenso entre os "cinco [membros] permanentes" sobre uma agenda e um cronograma para o acordo dos afegãos.

Aspecto "sensível" nesse processo tem a ver com todas as partes aceitarem os Taliban como elemento-chave e como parte de qualquer acordo; e com "como dispor" das forças da al-Qaeda – e aí está também o segredo do sucesso que se possa esperar obter da conferência internacional prevista.

Por fim, o artigo propõe que, depois de os EUA terem retirado seus soldados do Afeganistão, seja organizada uma missão internacional de paz para dar assistência ao governo afegão e às suas forças de segurança, para construírem meios efetivos de controle. Não se fala sobre a natureza dessa missão internacional, a qual, se pode presumir, terá de ser patrocinada pela ONU ou por poderes regionais.

É a primeira vez que comentarista chinês em jornal estatal pede declaradamente a retirada das tropas dos EUA e da OTAN do Afeganistão em termos imediatos, como requisito indispensável para a paz.

E é igualmente importante o que o artigo não diz. Um: separa o problema afegão e o que se tem designado como "abordagem Af-Pak". Dois: não há no artigo nenhuma referência ao Paquistão. Deve-se assumir contudo que os chineses opõem-se a qualquer tipo de presença militar militar dos EUA na região em geral; e que isso vale para a Ásia Central tanto quanto para o Paquistão.

Em segundo lugar, o artigo considera como via preferencial a construção de um acordo intra-afegão e vê os Taliban como grupo legítimo dentre as várias facções afegãs. Em nenhum momento o artigo sugere, nem remotamente, que os Taliban tenham qualquer relação com o Paquistão.

O artigo tampouco mostra qualquer dúvida de que os "senhores-da-guerra" também são protagonistas sérios no xadrez político e como tal devem ser considerados. É um modo de (i) endossar a abordagem pragmática de Karzai e de (ii) rejeitar a posição oportunista adotada por EUA e seus parceiros ocidentais, que querem manter vários dos aliados de Karzai afastados da estrutura de poder.

Em terceiro lugar, o artigo não toma a al-Qaeda como fator de peso, que justificasse a continuação da guerra. Desnecessário dizer que o artigo tampouco endossa a versão da OTAN, segundo a qual a guerra do Afeganistão visaria, integralmente, a salvaguardar o mundo ocidental contra ameaças do terrorismo internacional. O artigo, de fato, é indiferente ao destino da muito corneteada primeira operação "fora da área", da OTAN, em todos os tempos.

O artigo ignora completamente e deixa de lado toda a geopolítica da guerra. Nisso, é consistente com o ponto de vista chinês, de que o destino do Afeganistão é questão a ser decidida pelo povo afegão. Assim, o artigo também passa ao largo de uma tese controvertida, apresentada por alguns experts que propõem uma solução regional para a guerra, com os EUA participando de "grandes barganhas" com os principais países da Região (Rússia, China, Irã, Índia e Estados da Ásia central).

O artigo baseia-se, ao contrário, na necessidade de o Conselho de Segurança da ONU assumir a responsabilidade por guiar e monitorar um acordo no Afeganistão; nessa linha, os cinco membros permanentes deverão ser, eles sim, os principais árbitros.

Fonte: Vi o Mundo

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