terça-feira, 13 de outubro de 2009

Honra ao pensador

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Novos livros e iniciativas situam o historiador Raymundo Faoro entre os intérpretes clássicos das mazelas brasileiras.

Por Rosane Pavam

Os livros caminharam da sala ao corredor e, em pouco tempo, alojaram-se no quarto de dormir. Raymundo Faoro adquirira 10 mil desses tomos desde os 18 anos, muitas vezes em substituição a um almoço ou um jantar, e agora mal conseguia acomodá-los nas estantes. Em seu apartamento no Rio, as preciosas edições, apenas as que considerava essenciais, avolumadas em anos de curiosidade intelectual e pesquisa, não estavam catalogadas naquele início do século XXI. Ou o gaúcho de Vacaria julgava desimportante a organização sistemática de seu saber ou não encontrava tempo, entre a redação de um estudo próprio e a avaliação do momento político, para ordenar os milhares de volumes nos campos de história, literatura, filosofia, sociologia e direito necessários à articulação de seu pensamento e sua ação. A ironia em tudo isso é que, morto em 2003, aos 78 anos, Faoro, como seus livros, permanece distante da visão de muitos brasileiros.

A etapa dos livros poderá ser resolvida brevemente, se a Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, à qual ele serviu como funcionário até a aposentadoria, em 1982, decidir abrigá-los em um único e bom local, preservando o sentido de coleção do autor. Faoro manifestou ao filho caçula, o advogado André, de 48 anos, o desejo de que os tomos fossem mantidos juntos, sob o signo de sua coerência intelectual, conforme acontecera com a biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda na Universidade Estadual de Campinas, instituição atualmente desprovida de recursos financeiros para abrigar mais estes títulos ilustres.

Os livros de Faoro, atualmente limpos e catalogados pela família, buscam uma sede em curioso e idêntico movimento ao da personalidade fundadora de seu dono. Raymundo Faoro tarda a adentrar o casarão da inteligência nacional, onde já cabem Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Procurador do Estado do Rio, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, integrante da Academia Brasileira de Letras, autor dos clássicos que interpretam o Brasil Os Donos do Poder e Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio, Faoro foi um iluminista, conforme o descreve o jornalista Mino Carta no recém-lançado livro de ensaios e entrevistas Raymundo Faoro e o Brasil, mergulhado, contudo, em um país ainda coberto por trevas medievais. Terá chegado a hora de romper essa Bastilha?

O livro (Editora Fundação Perseu Abramo, 272 págs., R$ 42) reúne a transcrição de pronunciamentos de intelectuais realizados durante o seminário “Raymundo Faoro e o Brasil”, promovido pela fundação e pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, em novembro de 2003. E acrescenta textos de pensadores como Francisco Iglesias, que ressalta em Faoro o perfil de historiador, ou Alfredo Bosi, para quem o intelectual buscara em Machado de Assis uma das chaves para a compreensão do País.

“Esta edição caminha na direção de classicizar Faoro e colocá-lo em seu lugar devido, no alto da cultura brasileira”, afirma o organizador, Juarez Guimarães, professor de ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais, para quem a dificuldade em aceitar ou compreender aquele pensamento precisa ser urgentemente reparada, por meio de mais edições de esparsos, como os textos escritos para a revista CartaCapital sob a coluna Carta do Trópico, a partir de 1993, a abertura da biblioteca do intelectual e a instituição de um prêmio de direitos humanos que leve seu nome.

O professor acredita que Faoro se tornou essencial para o Brasil “ao organizar a leitura da história do Estado a partir do princípio da liberdade”. Com Guimarães estão dois inéditos do autor, um ensaio curto sobre a obra do filósofo, crítico e jurista Tobias Barreto (1839-1889), anterior a Os Donos do Poder, e outro, um calhamaço que daria início a uma ambiciosa história dos militares no Brasil, categoria da qual ele recolhera a trajetória e os embaraços. Dificilmente o primeiro livro seria reeditado, pelo caráter relativamente incipiente do texto. Mas o segundo tomo talvez se veja apresentado futuramente em um formato que esclareça os caminhos de pesquisa que ele então percorria.

Durante a entrevista que concedeu ao pesquisador Jair dos Santos Júnior, presente no livro da Fundação Perseu Abramo, Faoro esboça ligeiramente esse interesse: “Eu sei de coisas fantásticas dos militares naquele período”, diz, referindo-se à ditadura iniciada nos anos 60. “Eles catavam nas bibliotecas muito marxismo, leninismo e pornografia. De um amigo meu, que é biólogo, tiraram todos os livros A Vida Sexual dos Macacos.” O país da piada pronta fez o estudo sumir do mapa. E o cientista protestou em vão contra o crime.

Faoro escrevia à mão todos os seus livros, datilografados posteriormente pela mulher, Maria Pompeia. Seu filho tem guardadas três dezenas de caixas contendo os recortes que fizera, de jornais e revistas. Desde os 18 anos, Faoro mantinha um diário no qual anotava os fatos do dia, os livros comprados, as descobertas. Ele raramente guardava cartas, menos ainda as cópias daquilo que escrevia aos seus correspondentes. “Embora não alimentasse a pretensão da imortalidade, parece-me claro que ele tivesse reconhecido, no elitismo da universidade brasileira, a razão de permanecer ignorado”, acredita o filho André, advogado civil distante- dos caminhos profissionais do grande teó-rico do Estado e do especialista em direito constitucional que foi seu pai. “Apesar desse desconhecimento, e porque não alimentasse grandes ilusões, ele não guardava ressentimento de ninguém.”

Sóbrio na exposição pública, talvez detestasse a ideia de se ver homenageado com a estátua que a OAB deseja fixar na sede de Brasília. O filho André hesita em ceder fotos para o molde. “Tenho a impressão de que, se autorizar esse trabalho, serei cobrado em outras dimensões”, ele ri. “Minha convicção é a de que ele não acharia essa ideia muito boa.”

E talvez não fosse. Uma estátua encerra a admiração imóvel. Enquanto Faoro ainda exige, de quem pensa o Brasil, a movimentação de suas ideias. Sérgio Buarque de Holanda, não sem ironia, viu nos brasileiros homens cordiais, movidos pela emoção que acaricia e bate. Gilberto Freyre apontou na miscigenação racial o primeiro componente da origem popular. Mas Raymundo Faoro mirou o poder. Ele seria exercido não diretamente pela classe detentora dos meios de produção, mas por estamentos burocráticos destinados a alimentar um Estado que denominou patrimonial, ao estilo português iniciado por Dom João I, mestre de Avis, no século XIV. Com o tempo, as ideias quentes e novas de Buarque de Holanda e Freyre tornaram-se aceitas, malgrado ocasionalmente, ainda hoje, possam ser incompreendidas. As razões pelas quais Raymundo Faoro permanece à porta, esperando sua vez de entrar e ser ouvido, não são de suposição difícil.

Os Donos do Poder, livro em que estabeleceu tais raízes para os males do Brasil, foi editado originalmente em 1958, quando o Estado desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek propagava sua predominância. Sob a tutela do grande pai, a nação surgiria em seu esplendor, diziam os apologistas dos 50 anos em cinco. O Brasil, encantado com o que fartamente conhecia, não deu razão ao raciocínio daquele historiador, que caminhava em sentido contrário ao da nação animada. O Brasil custava a aprender algumas lições desde o Estado Novo de Getúlio Vargas, e embarcava em mais uma aventura de dependência.

A primeira edição de Os Donos do Poder teve 271 páginas mal examinadas pela crítica também porque não seguia a cartilha marxista apregoada pela universidade, antes se apoiava nos entendimentos de muitas outras leituras, entre elas a de Max Weber (1864-1920), que escreveu: “Os estamentos governam, as classes negociam. Os estamentos são órgãos do Estado, as classes são categorias -sociais”. Um Estado autônomo, que distinguisse a política da economia, era coisa descrita nos livros do pensador alemão.

Como Faoro a entendia, a luta entre senhores de terras e explorados não poderia estar no centro das preocupações de quem pregava mudanças no Brasil. E isto porque, segundo sua crença, um latifundiário, como qualquer outro representante da elite brasileira, deve antes reportar-se ao Estado patrimonial. Esse Estado serve a certos estamentos da sociedade, mas também se serve deles. As principais camadas de beneficiados são as aristocráticas, eclesiásticas, forenses e militares. Depois vêm as burocráticas em geral. O Estado patrimonialista cria, por meio desses setores dependentes, uma estrutura centralizadora que garante a própria sobrevivência. Designados por necessidade do poder, os estamentos alimentam o centro. O brasileiro cordial e miscigenado acomoda-se então a um berço, esplêndido por paralisante, apoiado na miséria dos que se ausentam desse círculo de riquezas.

Duas décadas depois, em 1975, Faoro resolve reeditar seu trabalho, acrescentando dois extensos capítulos sobre o período republicano. Aumentada em quase três vezes, a edição, agora com 750 páginas, volta a interessar. É a fase em que a ditadura rompe sua fortaleza e Faoro vê, nesse início de rompimento, uma possibilidade de mudança, não somente de uma situação política, mas de uma lógica que impede o brasileiro de agir. O pensador sóbrio é também o raro e corajoso promotor das coisas novas. Data de 1978 seu célebre discurso como presidente (entre 1977 e 1979) da Ordem dos Advogados do Brasil, intitulado O Estado Não Será o Inimigo da Liberdade - Carta de Curitiba, reproduzido no livro da Fundação Perseu Abramo. Nele, conclama a instituição, inclinada à proteção ditatorial, a exercer sua vocação de liberdade, manifestada em outras ocasiões do passado.

“Estivemos na vanguarda e à vanguarda cabe desferir o primeiro combate e receber os primeiros golpes”, escreveu a seus pares. O texto elegante de Faoro mudou o rumo que a OAB então percorria. Ela retomou a vocação da luta pela liberdade, e assim permanece no imaginário popular. Nesse período, Faoro fez mais. Acompanhou, por exemplo, o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva no palanque de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, embora o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, como conta Mino Carta no livro, houvesse tentado demovê-lo da decisão. E depois, em 1980, Faoro ofereceu-se a defender Lula, que, preso no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), acreditou haver outras urgências que o jurista devesse cumprir. Posteriormente, em 1989, convidou-o a vice em sua chapa à Presidência. Faoro declinou, dizendo-se interessado no cargo de “embaixador vitalício” de Viena.

Faoro viu em duas ocasiões o brasileiro exercer a cidadania e romper sua acomodação patrimonialista. Em 1984, durante as mobilizações pelas Diretas Já, e em 1992, nas manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor. Isto é o que lembram duas boas edições recentes de livros que o classificam entre os principais intérpretes brasileiros, Sete Lições sobre as Interpretações do Brasil, de Bernardo Ricupero (Alameda Editorial), e Um Enigma Chamado Brasil – 29 Intérpretes e um País, que traz o texto de Luiz Werneck Vianna intitulado Raymundo Faoro e a Difícil Busca do Moderno no País da Modernização (Companhia das Letras). Nas duas expressivas mobilizações nacionais atuaram manifestantes livres, verdadeiros cidadãos, conforme ele os enxergou. Mas essas ocasiões permanecem raras. E talvez a leitura de suas ideias, agora, convoque o brasileiro a abandonar o berço e suas amarras.

(Crédito da foto: Antonio Gauderio/Folha Imagem)

Fonte: Carta Capital

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