segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Força Aérea - Abusos na academia

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Um civil fica algemado na mesma posição por 40 horas. E o militar que o defendeu é transferido.


Força Aérea - Abusos na academia

Por Leandro Fortes, de Pirassununga (SP)


A carreira militar e a vida do tenente-coronel Francisco de Carvalho Fontes nunca mais foi a mesma desde que o acaso tratou de colocá-lo diante do civil Carlos Alberto da Silva nos portões da Academia da Força Aérea, em Pirassununga, interior de São Paulo. Oficial aviador da FAB há duas décadas, Fontes chegou a tempo de ver Silva invadir o portão principal da academia bêbado e na direção de um velho Voyage. Sob a mira de fuzis, o motorista acelerou, fez uma curva e voltou para a rua, mas acabou preso por um grupamento de soldados e sargentos formado às pressas para cercá-lo a tempo de evitar o pior. Em crise no casamento, Silva pedia para ser fuzilado enquanto era algemado. Eram, exatamente, oito e dez da noite de 22 de junho último.

A hora e data exatas do encontro entre Fontes e Silva é essencial para se entender as consequências do incidente. Preso, o embriagado civil foi mantido algemado por dois dias a uma cama de hospital da instituição. Silva foi impedido de contatar amigo, parentes ou advogados, sem uma única justificativa legal. Como nos tempos da ditadura, acabou solto após a intervenção de um padre.

E do tenente-coronel Fontes, ressalte-se. Único oficial presente no momento do incidente, tentou, no calor da hora, evitar maiores violências contra o prisioneiro. Dois dias depois, no meio da tarde, foi informado por funcionários do hospital que Silva, embora curado do porre e perfeitamente calmo, ainda era mantido algemado e incomunicável num canto da enfermaria. No local, encontrou um prisioneiro desesperado e enfermeiros indignados. “Pelo amor de Deus, me deixa sair daqui porque não agüento mais essa posição”, pediu Silva, então algemado há mais de 40 horas.

Não fosse a intervenção dos enfermeiros, a situação seria pior. Apesar do risco de punição por quebra de hierarquia, eles se recusaram a cumprir uma ordem atribuída ao diretor do hospital, o tenente-coronel médico Luis Bragança Falcão: inserir uma sonda na uretra do preso para evitar a necessidade de levá-lo a urinar no banheiro e, assim, retirar as algemas. Fontes alega ter pedido ao colega médico que permitisse a transferência de Silva à prisão do quartel.

O pedido foi negado e Fontes procurou apoio em outro lugar. Mas tomou o cuidado de antes fotografar com a câmera de seu celular Silva algemado na cama. Ao saber que o civil era católico, o militar recorreu ao padre Paulo de Anchieta Lopes, capitão-capelão. Ladeado pela tenente Ana Lívia Babadopulos, psicóloga, o capelão conseguiu convencer a direção do hospital a transferir Silva para uma cela no Batalhão de Infantaria da academia. Era noite de 24 de junho.
Libertado no mesmo dia da transferência para o batalhão por ordem da Justiça Militar, Silva acabou processado por invadir a academia. Fontes foi punido mais tarde pela intervenção a favor do prisioneiro. Na sexta-feira, 16 de outubro, depois de várias advertências e ameaças, o tenente-coronel foi desligado da academia por ter levado o caso ao Ministério Público Federal.

Há cerca de um mês, as denúncias de abuso de autoridade e tortura são investigadas pelo delegado federal Alexandre Perpétuo, de Araraquara. O caso chegou ao procurador federal Ronaldo Ruffo pelas mãos de uma promotora de Justiça da vizinha Pirassununga, Telma Regina Pagoto, procurada por Fontes. Em 13 de julho, Ruffo tomou o depoimento do tenente-coronel.

Com base na declaração do oficial e nas fotos do celular, decidiu abrir uma investigação criminal. Ao procurador, o militar revelou ter participado da prisão de Silva e, em seguida, avisado à delegacia de Polícia Civil de Pirassununga sobre o ocorrido. “Queria que fosse feito o exame de corpo de delito no preso, para evitar especulações sobre a prisão em flagrante.”
A ordem para levar Silva ao hospital partiu, segundo Fontes, do coronel Odim Ivo Grothe, segundo oficial mais antigo da academia. Uma vez internado, Silva passou a ser monitorado pelos médicos de plantão, todos militares, e por uma escolta armada. Coube à tenente-enfermeira Érika Cristina de Castro, segundo Fontes, impedir a instalação da sonda na uretra de Silva, diagnosticado como absolutamente saudável e em perfeitas condições físicas para urinar sem o auxílio de equipamentos. Convocada a depor no Ministério Público, a tenente não foi encontrada pelo procurador Ruffo. De acordo com a direção do hospital, ela havia saído de férias.

Na manhã de 24 de junho, como Silva ainda não havia sido libertado das algemas, Fontes decidiu procurar o Ministério Público estadual e narrar a situação nas dependências do hospital. A partir de então, virou alvo de uma série de audiências seguidas de medidas restritivas ordenadas por superiores hierárquicos. A primeira delas foi anunciada em 6 de julho, durante uma reunião no gabinete do comando da academia. Fontes ouviu um sermão de três horas de duração do brigadeiro Marco Antonio Perez e do coronel Grothe. A conversa foi gravada pelo tenente-coronel. Os superiores o acusaram de deslealdade e de agir contra os interesses da Aeronáutica. Perez avisou ao subordinado que quando os termos da denúncia chegassem oficialmente à direção da academia ele seria punido.

Em 14 de setembro, Fontes soube que seria transferido a um posto indefinido. Ao insistir para saber os motivos da transferência, o tenente-coronel foi informado se tratar do “interesse da disciplina”. Detalhe: Fontes jamais havia sido punido disciplinarmente. Em 29 de setembro o coronel Pedro de Carvalho Silva deu-lhe outra notícia: suas férias, previstas para o período entre 5 e 30 de outubro, haviam sido canceladas pelo brigadeiro.

Em 1º de outubro, ao chegar ao trabalho, o tenente-coronel não conseguiu acessar a internet, ordem também de Perez. O coronel Pedro Silva informou ao subordinado que o comandante da academia havia determinado a suspensão de acesso à rede de computadores porque Fontes estava passando e-mails “prejudiciais à AFA”. Também comentou de conversas mantidas por ele com outros colegas de farda. Esse detalhe deixou-o em alerta. Como não há nenhum registro de autorização de interceptação telefônica e de e-mails nos processos das justiças Federal e Militar, o tenente-coronel desconfia ter sido vítima de um esquema de grampo ilegal montado para bisbilhotá-lo. Por meio do centro de Comunicação Social da Aeronáutica, Perez nega ter grampeado Fontes. Os e-mails avaliados como “prejudiciais”, informou, constam da investigação tocada pela PF.

Em 2 de outubro, Fontes foi chamado a participar de outra conversa, também gravada por ele, no gabinete da direção. Além de Perez, estavam presentes Grothe e Pedro Silva. Na ocasião, o militar foi classificado de persona nefasta e persona non grata pelos superiores. O brigadeiro afirmou ter recebido “orientações de Brasília” para mantê-lo sob “estrita vigilância”. Em seguida, o tenente-coronel foi informado de que deveria desocupar o apartamento onde vivia em um prazo de sete dias, “a bem da disciplina”.

Mesmo sob pressão, Fontes conseguiu protelar a mudança até 16 de outubro, quando foi desligado da academia e transferido, sem justificativa formal, para o Comando Regional IV, na capital paulista. Recém-casado, diz pretender tentar uma vaga em um imóvel funcional da FAB em São Paulo, mas teme sofrer perseguições no novo posto, por conta da ousadia de ter denunciado um brigadeiro. Como salvaguarda, enviou, em 7 de outubro, uma representação ao Ministério Público Militar na qual acusa o brigadeiro de “implacável perseguição” e assédio moral. Caso seja constatado o abuso, Perez poderá ser denunciado no Superior Tribunal Militar.

A questão agora é achar a vítima. Silva está desaparecido há dois meses. A última aparição foi em uma audiência conduzida pelo juiz Frederico Magno de Melo Veras, da 2ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar de São Paulo, em 4 de agosto passado. E fez uma revelação bizarra: Perez, chefe da academia onde ele ficou algemado, teria se convertido em seu consultor jurídico.

Segundo registro da ata de movimentação da 2ª Auditoria Militar de São Paulo, alegou ter sido procurado por “um tal de coronel Fontes ou Pontes” para que ingressasse em uma ação contra a AFA. Na verdade, Fontes havia procurado Silva, a pedido do Ministério Público Federal, para convencê-lo a representar contra o comando da academia. Feito isso, o Ministério Público enviou um ofício a ele, no município de Analândia, vizinho a Pirassununga, onde morava, com perguntas sobre o incidente.

Os fatos acabaram assim registrados na Justiça Militar: “(...) que lhe foi enviado um questionário e que teria sido apanhado em casa para almoçar com o brigadeiro Perez, e que o mesmo o ajudou a responder o questionário, e que este questionário seria destinado à Procuradoria da República de São Carlos”. Ou seja, Perez também orientou a vítima de seus atos sobre o que deveria dizer aos investigadores dos abusos cometidos.

Perez, por intermédio da assessoria de imprensa, conta uma histórica um pouco diferente. Diz ter sido procurado por Silva em 23 de julho. O civil teria então reclamado da insistência de Fontes em “envolvê-lo” em um processo contra a academia. O brigadeiro nega ter almoçado com Silva, mas admite ter fornecido um lanche ao ex-soldado e lhe dado algum dinheiro para ele voltar de ônibus a Analândia. Nega também tê-lo orientado a preencher o documento enviado aos procuradores.

Sobre o incidente no hospital, Perez diz que Silva ficou algemado 13 horas e não 48 horas. O objetivo seria manter a “integridade física” do preso e da equipe médica. Quanto à incomunicabilidade, informou: “Ninguém da família ligou até ele ser liberado e ele não pediu para falar com advogados”.

Ruffo desconfiou, porém, da resposta de Silva. Por telefone, o civil havia informado a José Luiz Gaiato, secretário do procurador, a intenção de representar contra Perez e outros oficiais. Quando a reposta ao ofício do MP chegou, ao que parece preenchida no tal almoço ao lado do brigadeiro, Silva tinha voltado atrás. “Achei estranho, porque o documento veio escrito à mão, pelo correio, e, um pouco antes, o próprio Perez tinha me ligado”, revela Ruffo.

Segundo o procurador, o brigadeiro estava bastante nervoso e questionou a intervenção do MP em “assuntos da Justiça Militar”. Ruffo respondeu que os crimes de abuso de autoridade, tortura e possivelmente improbidade administrativa são da esfera da Justiça Federal.

No primeiro contato de CartaCapital, o centro de comunicação informara que Ruffo havia procurado Perez e não o contrário. Após a informação ser refutada pelo procurador, o brigadeiro lembrou-se de ter tomado a iniciativa de um telefonema em 8 de agosto. Disse, porém, ter ligado apenas para saber quando deporia no caso. Ruffo mantém a versão sobre o teor da conversa.

O delegado Perpétuo instaurou um inquérito há 40 dias. Ouviu até agora três oficiais médicos que estavam de plantão no dia da prisão de Silva, além do tenente-coronel Falcão, diretor do hospital. Perpétuo requisitou – e obteve – da Justiça Federal a prorrogação do inquérito por mais 90 dias. Pretende ouvir, depois da equipe médica, o brigadeiro e, por último, o tenente-coronel Fontes. “Investigo a possibilidade de ter havido abuso de autoridade”, diz o delegado. “Mas, se houve tortura, isso também será apurado”, avisa.

Fonte: Carta Capital

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