quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A face atual do golpe

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A face atual do golpe

por Eleuterio Boanova, em seu blog


O Brasil vive, nestes dois últimos dias, um dos momentos mais assustadores de sua história recente com a escalada de ações políticas que fazem prever a instauração no País de um clima propício a um golpe de estado que segue modelo aprimorado e testado, com êxito parcial, em Honduras recentemente.

É o golpe travestido de uma pretensa “ação legal em defesa do Estado e de sua população”, comandado não mais a partir das desastradas quarteladas militares, mas agora com a roupagem negra das togas dos tribunais.

A manifestação extemporânea, imprópria, não provocada e de clara preparação de um clima próprio para que se desague na Corte Constitucional uma decisão que se alegaria em “favor do povo” e contra o “desgoverno” está nas entrevistas dadas pelo ministro-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes.

O ministro, ao abordar - criticando o governo federal - temas tão diferenciados quanto a caravana governamental às obras de transposição de águas do rio São Francisco e a crise de segurança pública no Rio de Janeiro, revelou o lado assustador desse processo.

"Um dos mais antigos e respeitados brocardos (axiomas jurídicos) do Direito diz: Juiz só fala nos autos."

Em uma delas, sem que ninguém o provocasse a tanto, o ministro declara que o Presidente da República “está testando os limites” da Justiça em sua iniciativa de celebrar aquela que começa a mostrar os rumos da maior realização pública em favor do Nordeste em dois séculos.

Na outra, também sem que para tanto o invocassem, sua excelência nega a tendência recente do Supremo na valorização do poder federativo e atribui apenas ao governo federal a desordem, o caos e o descontrole da ordem pública imposto pelo tráfico de drogas ao Rio de Janeiro.

Sem nenhum exagero e apenas à luz dos fatos, tais declarações nos levam de pronto à situação enfrentada por Honduras onde as mesmas forças da elite desalojadas do poder fizeram o teste primário e mais recente desse sistema novo de golpe de Estado. Lá o presidente eleito foi deposto, preso em casa e expatriado por manifestar a intenção de propor referendo para mudança constitucional cujos benefícios sequer gozaria.

Iludem-se os que gracejam das manifestações políticas destemperadas do ministro Gilmar Mendes. Sua excelência já demonstrou audácia inconcebível ao peitar grosseiramente a Presidência da República ao arrepio da norma constitucional que diz da harmonia entre os poderes.

A técnica do golpe de estado como forma de preservação de privilégios vem sendo aprimorada desde os tempos das quarteladas de novembro de 1955 contra o eleito Juscelino Kubitschek, passando por Aragarças e Jacareacanga e por Jango até 1964.

Depois foram anos de chumbo que se fizeram seguir pelo golpe midiático das manipulações eleitorais primeiro contra Leonel Brizola no início da década de oitenta até desaguar, já então sob o regime monopolista da comunicação televisiva, na manipulação escancarada na eleição presidencial de 1989.

E não ficou por aí. A ação dos neocons no Brasil se alongou na compra de um mandato alongado não integrante das tradições constitucionais brasileiras, sem uma só voz contrária das estridentes que hoje se assanham contra o governo federal legitimamente eleito.

Era o Estado negociado pelos artífices do golpe das elites. Acreditavam estar comprando a eternidade do mando na sucessão do Presidente que fez no Brasil o que hoje se condena na América Latina: a prorrogação do mandato pela via congressual e apoio judiciário.

Hoje o requinte vai do uso da massiva máquina de comunicação com uma campanha repetitiva – à maneira da fala nazista de Joseph Goebbels - que procura demonstrar repetidas vezes uma pretensa inércia ou ineficácia da ação do governante. E nisso vem as atitudes destemperadas de políticos subservientes a esse processo, com ação que tende a levar à população desavisada a impressão de que o país no qual se quer o golpe, navega por águas revoltas.

Tem sido assim em muitos e muitos dos recentes exemplos de tomada do poder por elites dele desalojadas pela consciência social que a globalização inevitavelmente nos impõe. Uma consciência que nasce com a massificação da informação, o acesso ao conhecimento e o afloramento das crises agudas de desigualdade social.

É um processo calculado cientificamente pelos neocons da extrema direita do liberalismo internacional que alcançaram o máximo de seu poder na era George W. Bush no comando da maior potência mundial. Honduras foi apenas o mais recente e inexpressivo laboratório dessa tese.

Mas há que se cuidar. No Brasil os sinais do golpe já surgem fartos e generosos e não há que se buscar longe para percebê-los. Não são apenas as manifestações ilegais, antidemocráticas e inoportunas do chefe de um dos poderes da República.

A mídia, porta-voz dessa elite e por ela dominada, sente a perda de sua expressão e seus poderes. E por isso integra o esforço golpista. Não há no país órgão formador de opinião que se alinhe às teses de ascensão das classes mais pobres com a perda do poder dos abastados. Nossos jornais, nossas revistas e nossas principais redes de televisão são instrumento e voz dos que se assanham para voltar ao mando e ao controle.

O parlamento – composto em sua maioria - como também acontece na mais alta corte de justiça do país - por homens e mulheres que têm em seu ideário a noção do exercício do poder apenas pelas elites ameaçadas em seu mando, faz coro a essa campanha. É a tentativa de passar ao povo a impressão de que o Brasil é país de segunda categoria; seus governantes ineptos e a atual conjuntura, um reflexo do desastre.

Já assistimos antes ao embate entre ministros da Suprema Corte calcados em sua origem e formação. Enganam-se os que acreditam que, numa ruptura constitucional dentro do processo de tomada do poder pelo uso do Judiciário, nossos supremos ministros se aliarão ao povo.

Já antes a nossa Suprema Corte se curvou às armas do golpe. Agora, as empunha na travestida espada da deusa-justiça para rasgar de vez a constituição. Gilmar Mendes foi ostensivamente apoiado pela maioria de seus pares em sua cantilena partidarizada e antigoverno.

No Congresso armam-se crises artificiais calcadas em depoimentos fabricados de funcionários públicos ressentidos por demitidos. Assim, dá-se curso ao caldo de cultura do pior que existe em nossa política, o desapego ao interesse nacional para valorização apenas das desmedidas ambições pessoais e grupais.

Na mídia vê-se o que agora, quando escrito este editorial, às 22 horas de terça-feira, 20 de outubro, a versão publicada da tentativa de criar aura própria para o golpe. Na página na internet, do jornal O Globo, ponta de lança desse processo, no mesmo dia em que o Brasil é louvado pelo “The New York Times” e pelo “El País”, o matutino carioca omite tais elogios e lista em seqüência quatro títulos “mancheteados” que depreciam governo e vida brasileiros.

O jornal que capitaneia a maior rede de televisão do país diz em seqüência: “Guerra do tráfico impõe mais uma noite de tensão à Zona Norte do Rio”; “Brasil perderá US$ 28 bi com taxação de capital”; “PRF levanta suspeita sobre prova do Enade” e “PSDB, DEM e PPS vão ao TSE contra Lula e Dilma”. Somadas tais manchetes e publicadas de uma só vez sugerem insegurança; prejuízo; corrupção e desgoverno.

É a triste lembrança de dias passados quando o fantasma do comunismo servia de bandeira aos golpistas que chegaram ao extremo de atribuir a um latifundiário gaúcho na Presidência da República o epíteto de líder marxista-leninista de uma “república sindicalista”.

Naquele tempo o caos era a manchete dos jornais mais importantes do País. O “Correio da Manhã” bradava “Fora!”; O “O Globo” e “O Estado de S. Paulo” faziam coro aos militares descontentes. O "Jornal do Brasil" condenava abertamente a política social de Jango e "Folha", então “Folha da Manhã”, era inexpressivo jornal defensor de um proprietário da rodoviária de São Paulo, sem o engajamento partidário de hoje.

É um somatório exagerado. Só a última das manchetes do dia no site do "O Globo" já por si mostra os rumos que as coisas tomam. O próprio Gilmar Mendes antecipou e guiou os caminhos para os partidos de oposição ao afirmar na quarta-feira passada que o Presidente Lula estaria testando os limites do TSE.

Na página de "O Globo" na internet, nenhuma alusão às manchetes que foram destaque em site estrangeiros da Internet e no Brasil na versão nacional da BBC. Nem uma só palavra. E isso também se deu nos demais sítios da grande imprensa.

Já é do passado a quartelada pelo arroubo tresloucado de um General Mourão Filho, assim como ficou para as calendas a ação impeditiva de outro golpe, com a firmeza de um general-herói da resistência democrática brasileira, o hoje esquecido General Machado Lopes que impediu a primeira das quarteladas contra Jango. O modus-operandi mudou e mudaram os tempos.

Hoje usa-se o refinamento da toga e da interpretação da lei para se impor ao povo aquilo que contraria o voto. Para esses golpistas, nada significam sessenta milhões de brasileiros votantes e nem sequer a alta popularidade de um governante no legítimo exercício de seu mandato.

Em sua ânsia por restaurar privilégios começam a ensaiar de forma ousada a volta ao poder pelo golpe. E usam as lições aprendidas com Honduras, as aprimoram, dão a elas cores públicas com campanha difamatória, depreciativa, enganosa e ilusória de um inexistente caos.

E o pior de tudo é que pouco se importam com o País que vêem apenas como fonte de suas riquezas e seus privilégios, nunca a nação de uma gente digna como o é o brasileiro comum.

Para os golpistas, vale tudo, até o uso da máquina do Judiciário, um poder que deveria representar a maior conquista da democracia na história da humanidade: a igualdade entre as gentes. É a negativa neocon do ideal que presidiu a Revolução Francesa e a Constituição Americana, duas das maiores conquistas da humanidade em termos de igualdade e Justiça.

Parafraseando, embora em sentido inverso, a atriz Regina Duarte, posso afirmar sem sombra de dúvida e com base em toda a história que vivi desde o suicídio de Vargas; estou com medo... Eu estou com muito medo... Medo do golpe travestido do Direito, embora longe da Justiça!


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