quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Economia da biomassa - A energia do amanhã

::


Defensor vigoroso de um desenvolvimento baseado na biodiversidade, Ignacy Sachs vê o Brasil como protagonista em um mundo condenado a se reinventar.


Economia da biomassa - A energia do amanhã

Por Denise Ribeiro


Acreditar que a economia não deve ser desvinculada de valores sociais e cuidados ambientais é um dos principais paradigmas defendidos por Ignacy Sachs, um brasilianista de 81 anos, a quem se deve o mérito de trazer à cena contemporânea o conceito de desenvolvimento sustentável. Por defender essa tese ao longo da vida, este polonês naturalizado francês costuma ser chamado de ecossocioeconomista.

Judeu refugiado no Brasil, Sachs estudou em São Paulo, formou-se em economia no Rio de Janeiro, fez doutorado na Índia e há mais de 40 anos dedica-se à pesquisa sobre as dinâmicas das economias dos países em desenvolvimento. Foi em 1972, quando trabalhou na organização da Primeira Conferência da ONU de Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, que formulou o conceito de ecodesenvolvimento – mais tarde rebatizado pela ONU de desenvolvimento sustentável. Também participou da Cúpula da Terra, a Eco-92, como conselheiro especial das Nações Unidas na Conferência do Rio de Janeiro.

Autor ou organizador de mais de 40 livros, Sachs é um dos mais aguerridos defensores de uma economia baseada em biomassa e biodiversidade – ou biocivilização, como ele prefere. É consultor de vários governos, incluindo o brasileiro, onde atua no Ministério de Desenvolvimento Agrário, e de organismos internacionais. É também professor emérito da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais, em Paris. Ali criou o Centro de Pesquisas do Brasil Contemporâneo, que ainda dirige. Foi de seu escritório na capital francesa que ele concedeu esta entrevista, via Skype. Abaixo, os principais trechos da conversa com o bem-humorado professor que espera comemorar seu centenário, daqui a dezenove anos, numa praia brasileira.

CartaVerde: Mantidos os atuais níveis de demanda de energia e os mesmos paradigmas de conforto, consumo e obsolência tecnológica planejada, o planeta entrará em colapso em 30 anos. Qual o caminho para a adoção de um novo modelo de crescimento econômico?
Ignacy Sachs:
Só entraremos em colapso se não tivermos um jeito de ajustar nossas políticas às mudanças climáticas. Temos um elenco de energias renováveis a serem aperfeiçoadas e uma enorme margem para aumentar a eficiência no uso das energias disponíveis. É possível pensar em paradigmas mais sóbrios de consumo energético. Será mesmo necessário comer frutas tropicais transportadas por avião a jato por 15 mil quilômetros? Não estou pregando contra o comércio exterior, mas é preciso introduzir um pouco de bom senso na demanda para que haja uma organização espacial mais racional. Fizemos da globalização uma caricatura do que deveriam ser as relações econômicas. A crise financeira tem o aspecto positivo- de acabar com o mito neoliberal de que os mercados são capazes de se autorregular. Além de nos levar a questionar o papel do Estado no desenvolvimento de uma economia mista.

CV: O senhor distingue desenvolvimento de crescimento econômico. Poderia falar um pouco mais sobre isso?
IS:
Desenvolvimento é um conceito relacionado a critérios sociais e ambientais. Eles andam juntos em busca da viabilidade econômica. Rotas reais de desenvolvimento trazem resultados sociais positivos e não se traduzem por resultados ambientais profundamente negativos. Rotas de crescimento econômico, que são destruidoras do meio ambiente e levam a desigualdades sociais cada vez mais avassaladoras, não podem ser chamadas de desenvolvimento. Trata-se, no melhor dos casos, de um mau desenvolvimento.

CV: Como implantar uma economia de baixo carbono num mundo que gira em torno do petróleo e de toda sua cadeia produtiva?
IS:
Construir uma estratégia de saída progressiva do petróleo é tarefa de décadas, que não deve subestimar o poder de fogo das forças conservadoras no Brasil e no mundo. A biocivilização está sendo inventada e requer planejamento a partir de agora. Os geólogos nos dizem que estamos nos aproximando do pico do petróleo. Quando ele se tornar mais raro e sua extração mais difícil, os preços altos vão nos empurrar para a busca de soluções mais viáveis. O problema é que, nos últimos 30 anos de contrarreforma neoliberal, perdemos a capacidade de pensar a longo prazo. Estamos atrelados ao imediatismo, pretendendo que o mercado regule tudo. O mercado é míope e insensível às questões sociais e ambientais. Então, precisamos reintroduzir o hábito de planejar para fazer essa transição.

CV: A descoberta do pré-sal não muda esse cenário?
IS:
Não muda, apenas dá ao Brasil a vantagem de ter uma nova fonte de petróleo, embora de difícil manejo e com alto custo de exploração. O importante é saber utilizar os recursos energéticos para construir essa estratégia de transição, financiando pesquisas que permitam a evolução dos biocombustíveis, por exemplo. Reservar o petróleo para finalidades químicas e petroquímicas, que são usos mais nobres do que a queima para combustível. Investir na terceira geração de biocombustíveis, a partir de algas marinhas, e na energia eólica em regiões desérticas. Assim não serão subtraídas áreas destinadas à agricultura. Não quero parecer um otimista tecnológico inveterado nem quero aceitar o pessimismo dos que acham que estamos na eminência de uma catástrofe.

CV: O senhor preconiza que o Brasil é um dos países mais preparados para ser a locomotiva da economia de baixo carbono. O que falta para chegarmos lá?
IS:
Falta decisão política. Existem recursos, conhecimentos, a pesquisa brasileira hoje, especialmente a agronômica e biológica, é de alto nível. Na próxima eleição, a discussão será essa. O Brasil tem a maior floresta tropical em pé, clima favorável e um mundo a ser conquistado a partir da biomassa: produção de alimentos, ração animal, fibra plástica, todo o conjunto de produtos para as biorrefinarias, fármacos e cosméticos. O verdadeiro desafio para a política brasileira da próxima década será mostrar as soluções para produzir mais biocombustível sem afetar a segurança alimentar. A biomassa oferece um enorme potencial para o desenvolvimento das cidades ao longo do litoral e da Amazônia. Além disso, há muita área a ser cultivada e recuperada. Não há razão para que a pecuária continue sendo desmatadora, quando se pode reduzir em 50% a área de pastos, apenas dobrando o número de reses por hectare.

CV: E qual seria o reflexo disso na geopolítica internacional?
IS:
Se as coisas caminharem em direção ao baixo carbono, o papel dos países tropicais emergentes será cada vez maior. Suas vantagens comparativas naturais devem ser potencializadas pela pesquisa focada na biodiversidade, na biomassa e na biotecnologia. Dessa forma será possível encontrar soluções intensivas em conhecimentos e mão de obra, atacando um dos grandes problemas do século: a falta de trabalho. E também soluções poupadoras de recursos naturais e financeiros. Se souberem avançar nessa direção, tudo indica que poderão modificar significativamente a geoeconomia e, portanto, a geopolítica mundial. Nessa visão de biocivilização moderna, a cooperação técnica e científica Sul-Sul (eixo Brasil-Índia, África, países asiáticos, América Latina) é absolutamente decisiva. Cria-se uma desforra do mundo tropical. Para dizer “O petróleo é nosso”, o brasileiro precisou sair às ruas, bater-se, evocar a história da Petrobras. Para dizer que o sol é nosso, não precisa de nada disso.

CV: Na economia da biomassa, será possível incluir os mais pobres?
IS:
O desenvolvimento se define em termos de menos gente faminta, menos gente pobre, menos gente dormindo nas ruas. A fome no mundo não decorre da escassez de alimentos e sim do poder de compra insuficiente dos consumidores potenciais, como demonstrou cabalmente o economista indiano Amartya Sem (Prêmio Nobel de Economia em 1998, por suas teorias éticas e humanísticas, que desnudaram as múltiplas facetas da pobreza). Todos nós temos direito à comida, à educação, à saúde, portanto, é preciso redefinir desenvolvimento em termos do acesso aos direitos universais, incluindo-se aí o direito coletivo ao meio ambiente. Cabe ao Estado pôr em prática um conjunto de políticas que facilitem o acesso à terra, com assistência técnica permanente e promovam a construção de variadas formas de empreendedorismo coletivo. No século XXI ainda vai haver um novo ciclo de desenvolvimento. A ideia falsa do progresso como sinônimo de urbanização prosperou no século XX. É um conceito que tem de ser bastante criticado, quando se sabe que, na África, mais de 70% dos chamados urbanizados estão em favelas. Os pequenos agricultores e suas famílias correspondem a 2,5 bilhões de pessoas no mundo. Então, não dá para pensar numa agricultura sem homens como solução, porque teríamos de jogar toda essa gente nas favelas. Na civilização da biomassa, teremos de dar atenção ao desenvolvimento territorial e ao fortalecimento da agricultura familiar, que têm enorme papel a desempenhar nesse processo. Alguém tem de produzir a biomassa de maneira a manter a biodiversidade, as paisagens, enfim, de maneira a fazer bom uso da natureza. Este será o século de reequilíbrio entre o desenvolvimento urbano e o rural. Se os biocombustíveis levarem ao latifúndio e à monocultura, eles não vão resolver o desafio.

CV: Os resíduos agrícolas, excetuados os da cana-de-açúcar, representam uma disponibilidade energética equivalente a 747 mil barris diários de petróleo, praticamente não aproveitada. Enfrentar esse desperdício histórico não seria um bom começo?
IS:
Na segunda geração de biocombustível, à base de celulose, esses resíduos podem ser aproveitados. Aliás, do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, o conceito resíduo não deveria existir, prefiro a palavra subproduto, porque se transforma em insumo para outra cadeia produtiva. Por exemplo, a extração de óleo vegetal para a produção de biodiesel gera grande volume de tortas, que podem ser aproveitadas como ração animal, ajudando a transformar uma pecuária extensiva em semi-intensiva, menos dependente de grandes áreas de pastagem. Temos de ter habilidade em construir sistemas integrados de produção de alimentos e energia adaptados a diferentes biomas – e não cadeias justapostas. Nesse contexto, os subprodutos são valorizados. Nós todos que trabalhamos com o tripé da sustentabilidade aprendemos uma enorme lição com um exemplo que vem da China, de muitos -séculos. Você tem um tanque de água, aí bota lá vários tipos de carpa, que vivem em nichos diferentes, então não competem pelos mesmos recursos. Acima delas coloca os patos, porque o esterco deles vai fertilizar a lagoa. Ao redor da lagoa planta verduras. Aí o pato sai e come os bichos que atacam as verduras, cujas folhas são jogadas na água para alimentar as carpas. Isso é um sistema integrado. Acho que temos muito chão pela frente até aprender a fazer melhor uso da natureza e essa é uma mensagem otimista.

CV: Os países do G-77 defendem a criação de um mecanismo de transferência de tecnologia que reduza os preços e facilitem o acesso das nações em desenvolvimento às tecnologias protegidas por patentes. Qual sua opinião sobre o tema?
IS:
As patentes são um enorme problema, regredimos muito em relação às ideias disseminadas depois da Segunda Guerra. Entramos num processo acirrado de privatização de conhecimentos, e é claro que precisamos fazer pressão política em favor da democratização do acesso à tecnologia. Acho importante reagir contra a privatização excessiva dos direitos a patentes, sobretudo em relação a medicamentos. Mas entendo como cada vez menos importante a transferência de tecnologia dos países industrializados para os menos desenvolvidos. O mais importante é não ficar atrelado a isso, mas investir no desenvolvimento da pesquisa nesses países, dar condições de trabalho aos cientistas e insistir na cooperação Sul-Sul, entre países com problemas similares a resolver. É preciso construir essa solidariedade do Sul. Em termos de número de votos nas Nações Unidas, em termos de população mundial, esses países representam a imensa maioria. China, Índia e Brasil, juntos, vão pesar cada vez mais também do ponto de vista econômico. Mas ainda têm de aprender a usar esse peso, do ponto de vista político.

CV: O senhor acha que haverá avanços na reunião de Copenhague, com tantos blocos de países defendendo interesses tão diferenciados?
IS:
Faço votos para que haja, mas, por enquanto, tomando como referência as reuniões preparatórias, não há avanços. No Brasil, a criação do Fundo Amazônia, do BNDES, com aporte de recursos da Noruega, é um passo importante para enfrentar o desmatamento, principal responsável pelas emissões brasileiras. Não sou fã do sistema de créditos de carbono, porque, se o meu vizinho solta fumaça e eu tenho problemas respiratórios, não fico muito satisfeito, quando ele diz estar financiando o reflorestamento na Patagônia na Argentina, porque continuo a tossir. Comprar o direito de continuar poluindo é como comprar indultos. O escritor inglês Geor-ge Monbiot tem uma página sobre isso no seu best seller Calor – Como impedir o planeta de arder (lançado em Portugal pela Via Optima). Ele compara créditos de carbono com as compras da indulgência na Europa Medieval. Da mesma maneira que no século XV ou XVI você podia dormir com a sua irmã, matar ou mentir sem medo de danação eterna, hoje pode viver sem pôr em perigo o clima. Basta dar o seu dinheirinho a uma companhia que vende os indultos. Então é preciso parar de criar mercados artificiais e partir para a construção de uma política mais séria, ajudando os países que ainda têm uma floresta a conservá-la.


:: Confira na edição impressa a estreia do suplemento trimestral CartaVerde, parceria de CartaCapital com a Envolverde

Fonte: Carta Capital

::

Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: