segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Como os clássicos viram clássicos

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Como os clássicos viram clássicos

Ítalo Calvino disse que uma das características de um clássico é sua possibilidade de infinitas e sempre renovadas leituras. Em janeiro de 1959, vinha a público "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado. Passados cinquenta anos, a obra tornada clássica ganha sua primeira edição comemorativa. Organizado pela viúva do autor, Rosa Freire d’Aguiar Furtado e com introdução de Luis Felipe de Alencastro, o conjunto reúne a fortuna crítica que se seguiu ao aparecimento da obra que é um dos mais importantes livros de história econômica já escritos. A resenha é de Roberto Pereira Silva.

Resenha de: “FURTADO, CELSO. Formação econômica do Brasil. Edição comemorativa: 50 anos; organização Rosa Freire d’Aguiar Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

A formação da Formação econômica do Brasil

Em janeiro de 1959, vinha a público "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado. Passados cinquenta anos, a obra tornada clássica ganha sua primeira edição comemorativa. Organizado pela viúva do autor, Rosa Freire d’Aguiar Furtado e com introdução de Luis Felipe de Alencastro, o conjunto reúne a fortuna crítica que se seguiu ao aparecimento da obra. Verdadeiros documentos que reconstituem a biografia do livro, testemunho de sua recepção no Brasil e no exterior, esse conjunto de resenhas e introduções ao livro ajuda a reconstruir a consolidação de "Formação Econômica do Brasil", como um dos mais importantes livros de história econômica já escritos.

Além disso, tais textos permitem captar a estranheza que a obra causou para intelectuais de diferentes formações teóricas à época de sua publicação. Por se tratar hoje de um livro clássico, nós leitores modernos por vezes nos esquecemos do senso de novidade que esteve por trás da recepção do livro nos meios brasileiros e internacionais.

Aliás, como Ítalo Calvino dizia: uma das características de um clássico é sua possibilidade de infinitas e sempre renovadas leituras. Embora tenha tido um reconhecimento rápido, de pronto sendo considerado um livro indispensável e ímpar na historiografia econômica brasileira, recebeu críticas diversas, indicativas também dos impasses sociais e intelectuais do Brasil. E essa é uma chave importante para retomarmos o cinqüentenário do livro, escapando do merecido teor laudatório das análises contemporâneas e tentando retraçar o caminho para a consolidação desta obra clássica. Tanto mais importante, se nessa empreitada conseguirmos relacionar as diversas resenhas com os contextos mais amplos da vida intelectual brasileira e das reflexões teóricas sobre o desenvolvimento econômico a nível mundial.

Das primeiras resenhas à biblioteca básica brasileira

O momento de publicação de "Formação Econômica do Brasil" marca o entrecruzamento de tendências distintas no pensamento brasileiro. De um lado, temos a maturidade dos autores dos ensaios sobre a formação do Brasil. Iniciado nos anos de 1930, com "Casa-grande e Senzala", "Raízes do Brasil", e, na década seguinte, "Formação do Brasil Contemporâneo", nesse momento o ensaísmo se consolidou como a forma básica para se pensar o Brasil, tendo como principal disciplina a história.

De outro lado, a passagem para os anos 60 assiste um período de grandes mudanças. O Plano de Metas, a imigração para os centros urbanos, a ocupação do Oeste e do Norte do Brasil. Era uma nova etapa do capitalismo introduzindo o Brasil nas linhas de consumo modernas, com eletrodomésticos, carros, produtos de consumo industrializados. O Estado, sob o signo do planejamento econômico, passou a valorizar o saber técnico, a economia e a engenharia assumiram papel importante na administração pública, suplantando o bacharelismo do passado. No plano das idéias, esse período foi marcado por novas balizas de conhecimento, universitário e técnico-científico, competindo com a consolidação das ciências sociais no ensino acadêmico. O livro de Celso Furtado dá testemunho desse entrecruzamento de tendências, e procura compreender o alcance e os limites das transformações do presente, sob o ponto de vista histórico. Mas de uma história filtrada pela economia, história que busca responder as questões propostas pelo processo e pela reflexão sobre o desenvolvimento econômico.

Essas duas linhas gerais, o saber técnico legitimado pelo progresso econômico e as interrogação ao passado irão polarizar as opiniões sobre "Formação Econômica do Brasil", nas resenhas publicadas entre 1959 e 1963, apontando tanto as precariedades da obra de historiador, quanto as armadilhas da teoria econômica.

A primeira resenha apareceu três meses depois da publicação, na pena de Nelson Werneck Sodré, historiador marxista ligado ao ISEB. Interpreta a obra como pertencente à “economia ortodoxa”, em contraposição à economia marxista. Reconhece em formação um “livro de fôlego, visão de conjunto, em que o autor dá o melhor de seus conhecimentos”. Entretanto, aponta dois defeitos: “Celso Furtado sabe muito, mas não sabe transmitir o que sabe” e, numa crítica típica desse período em que o foco das interpretações era a volta ao passado, Werneck Sodré censura o autor em que “fazendo história, não domina as fontes e revela mesmo desprezo por elas”.

No mês seguinte, a resenha de outro marxista, Renato Guimarães censura o economicismo de Celso Furtado. Reprovação que o próprio autor reconhece contraditória: “não deixará por isso de parecer algo paradoxal que, ao tentarmos a crítica marxista desta última obra de Celso Furtado sejamos forçados a censurá-la justamente pelo excessivo ‘economicismo’ do historiador que lá encontramos”. Além disso, em alguns momentos Guimarães aponta as esquivas do autor. Tratando do capital estrangeiro nas etapas colonial e imperial, sob o comando do capital holandês, português e inglês, não diz nada sobre essa questão no século XX, sob o signo do imperialismo norte-americano: “bastou que entrasse em cena o imperialismo norte-americano para que o Sr. Furtado perdesse completamente a loquacidade”. O mesmo se poderia dizer da questão do proletariado: Celso Furtado analisa a transição para o trabalho assalariado e a industrialização do Centro-Sul, mas nada diz sobre o proletariado urbano como força social. Como pontos positivos, a análise da inflação feita ao final do livro, a qual o aspecto político e social envolvido na política econômica, uma vez que a inflação é um conflito distributivo e as medidas de estabilização favorecem alguns grupos em detrimento de outros.

Em julho, o engenheiro Paulo Sá, criador da ABNT, faz uma apreciação do livro e da profissão de economista que dá bem o tom desse novo momento de planejamento econômico e saber técnico que chegava ao Brasil. Para ele, a onipresença da poesia na vida cultural brasileira dos séculos passados foi suplantada, nesse período de modernização, pela economia: “Como havia ‘poetas’, há hoje ‘economistas’. Tropeça-se neles em todos os grupos de rua, em todos os vãos de jornais ou revistas, tão graves quanto efêmeras”. Celso Furtado é uma exceção entre esse grupo, pois alia à profundidade das leituras a reflexão e o conhecimento do país.

Duas resenhas surgiram de autores ligados à Universidade de São Paulo e que se tornaram membros do grupo de estudos conhecido como Seminário Marx, Paul Singer e Fernando Novais. Para o primeiro, “a importância do livro decorre, porém, não apenas de seu tema, mas principalmente do método empregado”. É no método que concentra a avaliação e a crítica, afirmando que este é falho quando contraposto à realidade. Entretanto, “mesmo as partes mais prejudicadas pelo método empregado são preciosas, pois assinalam falhas — a nosso ver sérias — da própria ciência econômica como ela é praticada até hoje”.

Fernando Novais destaca a importância da análise dos fluxos de renda associados aos diversos produtos de exportação e o rompimento desse processo com o advento do trabalho assalariado na economia cafeeira que internaliza o processo de acumulação. A crítica recai também no método, tendo como base a economia marxista. Para o autor, a análise da transição para o trabalho assalariado perde a questão central, a saber, “as etapas da instauração das condições capitalistas de produção no Brasil”, o que, na verdade, constitui “as determinações mais internas do processo histórico”.

Já em 1963, quatro anos após a publicação, o livro passa a ser editado na biblioteca básica brasileira, projeto editorial da Universidade de Brasília, ao lado de autores como Capistrano de Abreu, Joaquim Nabuco, Fernando de Azevedo e dois clássicos da geração de 1930, Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. A introdução ao livro é assinada pelo historiador mineiro e professor de história econômica geral e do Brasil Francisco Iglésisas.

Trata-se de um texto fundamental, pois avalia a formação econômica do Brasil dentro da historiografia econômica brasileira e equaciona os principais problemas e sucessos da obra em perspectiva histórica.

Já de saída coloca o livro entre os clássicos da historiografia econômica, ao lado de Simonsen e Caio Prado Jr, sem ser um prolongamento destes, mas “executado em perspectivas próprias”. As relações entre história e economia são equacionadas, respondendo a algumas críticas que vimos acima: “Formação econômica do Brasil é livro de história escrito sob a perspectiva do economista”. A falta de citações de trabalhos de história longe de mostrar deficiência do autor mostra os defeitos da historiografia brasileira, a baixa qualidade das pesquisas empíricas e a arbitrariedade das interpretações de conjunto. De forma que “a omissão referida não deixa, de certo modo, de reverter em benefício do autor”.

Destarte, o que pareceu a alguns economicismo e a outros falta de domínio das fontes históricas, nada mais é que uma das maiores riquezas da obra, o que lhe garante o lugar de destaque pela rara qualidade de nossa produção. Pois somente o uso consciencioso das ciências sociais pode orientar a reconstrução histórica em busca de suas linhas gerais. É a teoria econômica e social presente no livro que irá conduzir a leitura histórica de Celso Furtado. A erudição histórica do autor é patente, a despeito da omissão de referências, e o método do autor se constrói na distinção entre processos e eventos, nos quais os primeiros dão o tom geral do livro, subordinando os segundo, que pressupõe conhecidos do leitor. Daí a impressão meio abstrata do livro, fruto do despojamento do que não é essencial para a compreensão do processo. Entre as faltas do livro, a única apontada pelo autor é a não menção ao imperialismo norte-americano, a exemplo da crítica de Renato Guimarães.

Assim, as resenhas abordaram a obra sob o ponto de vista dos aspectos teóricos, na relação entre teoria econômica e história, ora sublinhando os excessos da primeira, ora acentuando as debilidades aparentes da segunda. Temas ausentes foram sempre marcados como faltas, ausência de referencias como despreparo. No entanto, a explicação de fundo, estrutural do livro, demorou um pouco mais para ser percebida. Isso decorre, nos parece, não só do ineditismo do livro, como da falta de um corpo de obras econômicas e históricas que pudessem servir de referência e termos de comparação à Formação econômica do Brasil. Na ausência de trabalhos que examinassem os conteúdos e as hipóteses, a crítica só poderia recair sobre questões de método.

De clássico da historiografia brasileira à obra-prima da teoria do desenvolvimento econômico

A recepção no exterior se deu de forma diferente. "Formação Econômica do Brasil" foi logo reconhecido como um exemplo ímpar no campo da teoria do desenvolvimento econômico. A obra foi interrogada em sua relação com as ciências sociais, sobretudo as relações entre história e economia e no âmbito das diversas teorias do desenvolvimento econômico. A mudança de perspectiva é grande. Além disso, a perspectiva histórica e comparativa foi assinalada em todos os textos, destacando-se a comparação entre as diferenças de desenvolvimento do Brasil e dos Estados Unidos no século XIX. Se no Brasil, a obra teve um caráter de acerto de contas com a herança do passado, exigia ou justificava a intervenção estatal, e se inseria no esforço de consolidação das ciências sociais no país, já no exterior foi um aporte fundamental para se equacionar o alcance das teorias econômicas.

Segundo o economista americano Allen Lester (1960) o livro “analisa o crescimento e os processos econômicos do Brasil como país subdesenvolvido”; seu principal interesse para o economista de língua inglesa está “na avaliação da influência de fatores — políticos, sociais, geográficos, fiscais, monetários, entre outros — sobre o crescimento econômico e a formação de capital no Brasil”. Além disso, os “economistas de países mais desenvolvidos” devem considerar a insistência político-econômica “de países subdesenvolvidos” em buscar o desenvolvimento através de crescimento rápido e uso de “métodos considerados não ortodoxos”.

Já o brasilianista Warren Dean chama a atenção para a impossibilidade do desenvolvimento econômico enquanto baseado no trabalho escravo. Essa seria a tese principal de Furtado, desenvolvida a partir da transição para o trabalho assalariado e da multiplicação da renda oriunda do consumo. Assim, “o estágio crucial do desenvolvimento” se dá com a formação do mercado interno. Já o interesse para os “economistas e historiadores americanos” decorre de Formação os colocar em contato com “teorias que lidam com estagnação, fenômeno sobre o qual eles têm pouco conhecimento de primeira mão”.

Ignacy Sachs, na introdução à edição polonesa de 1967, faz uma exposição do conjunto da obra de Celso Furtado até aquele momento. Nesta, podemos perceber “o ponto de vista de um economista interessado na problemática socioeconômica do desenvolvimento”; ou seja, “não do ponto de vista de um historiador econômico, e sim como um economista que faz determinadas perguntas ao material histórico”. Em outras palavras, a importância metodológica se encontra “na junção de história econômica com a teoria do desenvolvimento”.

Uma reflexão teórica amadurecida sobre as relações entre economia e história foi empreendida no prefácio à edição italiana de 1970, de autoria do historiador Ruggiero Romano. Para ele, “poucos livros como este de Celso Furtado abordam — e resolvem — o problema das relações entre história e economia”. Resolve, porque o autor “bem sabe que o verdadeiro problema da interdisciplinaridade é o da real integração entre elas; é o do enriquecimento da problemática de uma com a problemática que subentende a outra; é o de conseguir moderar (ou exacerbar vantagens e desvantagens de uma e outra”. Pois que a relação entre as disciplinas se torna frutífera quando é claro o que a história pode oferecer à economia e vice-versa. A primeira, “pode dar uma lição de particularismo, de tipificação”, para contrabalançar a busca de leis uniformes no tempo e no espaço que caracteriza a economia.

Para o historiador italiano a consciência dessa problemática, aliada ao domínio tanto da teoria econômica quando da história, produziu o resultado ímpar desse livro. Ao entender que a realidade brasileira poderia ser explicada pelo desenvolvimento da economia desde suas origens, Celso Furtado não só reconstrói a “série de elementos constitutivos das diferentes economias brasileiras nos diversos momentos históricos e nos diversos espaços geográficos”.

Isto já não sendo pouco, o autor consegue recompor os “elementos e apresenta(r) os mecanismos em pleno funcionamento”. Esta a lição de história econômica de Celso Furtado: não se trata da economia na história, mas de entender a economia no que tem de histórico e de acontecimental. “Vai-se alem do acontecimento, dos acontecimentos só quando, como acontece nesse livro, se consegue mostrar um mecanismo, suas engrenagens, seus ritmos particulares, suas fricções, suas lentidões, suas acelerações, suas fraquezas, suas capacidades de resistência”. Daí resulta também a riqueza do conceito de subdesenvolvimento. Não é um estágio, mas uma especificidade histórica, particular, que não pode encontrar um modelo de transformação no desenvolvimento europeu, porque este também é histórico, particular e único em suas conjunturas e possibilidades.

Um último aspecto da recepção externa do livro é o debate quantitativo, relativo aos números e às fontes que Celso Furtado utilizou e as críticas que seu livro suscitou ainda nos anos 1970. É o que encontramos no debate sobre os rendimentos e as classes sociais envolvidas na economia açucareira, realizado pelo historiador francês especialista no comércio atlântico na Idade Moderna, Frédéric Mauro.

O caráter de balanço de conclusões, também caracteriza a resenha do economista americano especialista em economia brasileira, Werner Baer (1974). Trata-se para o autor, de “um dos grandes livros tanto da literatura das ciências sociais brasileiras quanto da literatura do desenvolvimento em geral”. “Ensaio interpretativo sobre a evolução econômica do Brasil”, o livro não pode ser avaliado segundo os padrões monográficos, à época praticamente inexistes, diga-se de passagem. Daí que “a maioria dos ataques dirigiu-se a detalhes, mas nunca conseguiu destruir o valor intrínseco da obra”. Ressalta na obra a discussão sobre que viria a ser chamado teoria da dependência; fazendo jus aos múltiplos fatores sociais, políticos, institucionais e econômicos que Celso Furtado leva em consideração em sua análise.

A consagração da "Formação Econômica do Brasil"

Esses alguns testemunhos da recepção de "Formação Econômica do Brasil". As resenhas e apresentações à obra se tornaram cada vez mais desnecessárias com o passar do tempo. Índice, sem dúvida, da penetração e aceitação do livro como uma fonte de interlocução. Mas o que pudemos perceber desse longo percurso são as múltiplas leituras que a obra ofereceu e ainda oferece para nós cinqüenta anos após sua publicação.

Por fim, se tentamos mostrar um pouco da impressão dos contemporâneos sobre "Formação Econômica do Brasil", podemos finalizar mostrando um pouco também de como Celso Furtado era visto, alguns anos após a publicação e antes de ser exilado pelo Golpe Militar que o incluiu na primeira lista de cassação. O testemunho é de Franciso Iglésisas no texto já mencionado:

Celso Furtado é hoje figura convocada obrigatoriamente de todos os pontos do país, sobretudo pelos moços, [...] bem como pelas associações de classe de todos os níveis, oficiais ou não, que desejam ouvir-lhe a palavra. Seus discursos e conferências, relatórios e entrevistas se multiplicam, sempre recebidos com interesse e proveito. Pela primeira vez no Brasil um economista se tornou figura popular, sem que cortejasse a opinião com linguagem política: mantendo sempre o tom do técnico, sem exibicionismo pedante nem tom de quem faz campanha eleitoral. Celso Furtado sabe falar, encontrando sempre a fórmula exata para a idéia exata. É que ele vive o que faz, com a fé por vezes rígida que encontramos nos homens do Nordeste, batidos e sofridos como sente até em suas expressões fisionômicas.

(*) Bacharel em história pela FFLCH-USP, mestrando em história econômica no Instituto de Economia da Unicamp.

Fotos: Celso Furtado, com Oscar Niemeyer e Darci Ribeiro

Fonte: Carta Maior

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