terça-feira, 20 de outubro de 2009

Capitalismo maoísta

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60 anos após a revolução, a China está a um passo de ser o maior poder econômico do mundo, mas ainda não oferece um modelo digno de ser imitado.


Capitalismo maoísta

Por Antonio Luiz M.C. Costa

O ano de 1949 foi dos mais agitados da Guerra Fria. A URSS detonou sua primeira bomba atômica, nasceram o Conselho da Europa e as duas repúblicas que dividiriam a Alemanha até a queda do Muro de Berlim, a Indonésia expulsou os colonialistas holandeses e o regime do apartheid foi institucionalizado na África do Sul. Mesmo nesse ano conturbado, a revolução comunista chinesa foi percebida como um dos eventos mais decisivos – e, ao contrário de muitos outros dessa época, suas consequências continuam a se desdobrar e mudar o rumo do planeta.

O exército comunista tomou Pequim em 25 de janeiro, a então capital Nanquim em abril e em 1º de outubro proclamou a República Popular da China, enquanto Chiang Kai-shek fugia para Taipé. Os remanescentes do exército nacionalista no continente foram rendidos e as ilhas da costa chinesa tomadas até maio do ano seguinte, com exceção de Taiwan e suas dependências.

Para o presidente dos EUA, Harry Truman, não valia a pena tentar manter Chiang Kai-shek no poder – seria inviável, segundo um relatório oficial liberado em agosto, que considerava o governo nacionalista corrupto, ineficiente e impopular. Era preferível investir na divisão do movimento comunista entre russos e chineses. Entretanto, era cedo para essa estratégia: a superioridade militar e nuclear dos EUA e sua presença maciça no Japão ocupado levariam Moscou e Pequim a arquivar suas divergências ainda por muitos anos.

Veio então a Guerra da Coreia, na qual as duas potências comunistas se uniram à Coreia do Norte contra o Sul e levavam o senador republicano Joseph McCarthy a acusar simpatizantes comunistas no governo de “entregar” a China. O presidente democrata não ousou reconhecer Mao Tsé-tung. Os EUA protegeram o último reduto de Chiang Kai-shek e demitiram os agora suspeitos peritos em China e Vietnã do Departamento de Estado, cuja falta se fez sentir nas guerras nas quais o Pentágono se envolveria a seguir. Foram necessárias a distensão do republicano Richard Nixon e sua histórica visita a Mao de 1972 para corrigir o erro.

Nesse meio-tempo, também o regime maoísta acumulou erros, dos quais os mais desastrosos foram o chamado “Grande Salto para a Frente” e a Revolução Cultural. O primeiro foi um plano econômico que, implementado de 1958 a 1961, pretendia transformar o país em potência industrial praticamente da noite para o dia, rompendo ao mesmo tempo com a URSS. O governo tomou o controle direto da produção agrícola camponesa, pretendendo financiar a industrialização com a venda dessa produção. O resultado foi a desorganização da agricultura, que, combinada com problemas climáticos (secas e inundações) e resistência dos camponeses, causou de 16,5 milhões a 30 milhões de mortes por desnutrição.

Muitos dos investimentos industriais, organizados por militantes inexperientes sem a ajuda dos técnicos soviéticos, expulsos, mostraram-se contraproducentes ou inviáveis a médio prazo, por falta de um planejamento competente, que resultou em investimentos desequilibrados e gargalos generalizados. A produção de ferro cresceu mais de 80% em três anos, mas um quarto da produção era inferior a ponto de ser inútil e faltavam meios de transporte para entregar o restante. A produção voltou a despencar em 1961 e só em 1964 voltou a atingir o patamar de 1958. Dos 600 mil altos-fornos que chegaram a ser construídos, só restaram 1.300 em atividade.

O fracasso do “Grande Salto” enfraqueceu Mao e seu círculo de ideólogos e fortaleceu os pragmáticos Liu Shaoqi e Deng Xiaoping. Gradualmente empurrado para o papel de figura de proa, Mao reagiu, em 1966, com a Revolução Cultural, que lhe devolveu a iniciativa política a um alto custo para o país. A militância jovem organizada na Guarda Vermelha foi convocada a expurgar a “revisionista e burguesa” elite intelectual e tecnocrática, grande parte da qual enviada para o campo ou ao trabalho braçal (Deng, por exemplo, foi trabalhar em uma fábrica de motores). Vários se suicidaram e muitos foram linchados, às vezes de maneira extremamente bárbara.

O processo, continuado enquanto Mao viveu – até 1976 –, pode ter causado meio milhão de mortes. Documentos históricos foram perdidos, costumes e trajes tradicionais proibidos, templos e monumentos danificados ou destruídos e livros sagrados profanados. O Livrinho Vermelho, compêndio de citações de Mao, tornava-se uma espécie de Bíblia: estudado nas escolas e lugares de trabalho, sua presença em todos os lares era praticamente obrigatória, assim como citá-lo em todos os textos, inclusive científicos.

Ainda assim, os índices de mortalidade da China caíram brutalmente após a revolução de 1949. Voltaram a níveis elevados nos anos desastrosos do “Grande Salto”, mas retomaram a trajetória de queda em seguida. Feitas friamente as contas, a revolução chinesa pode ter salvo mais vidas do que destruiu. Comparem-se as estatísticas chinesas dos anos 50 a 70 com a do período pré-revolucionário ou com países que não passaram por uma reviravolta semelhante, como a Índia.

O progresso científico e tecnológico também continuou durante os anos de monumentais erros de planejamento e de perseguição aos intelectuais: apesar da ruptura com a URSS, e do Livrinho Vermelho, a China detonou sua primeira bomba atômica (1964) e bomba-H (1967), lançou seu primeiro míssil nuclear (1966) e pôs em órbita seu primeiro satélite (1970).

É impossível negar que, ao suprimir o latifúndio, sacudir as bases do tradicionalismo chinês e esforçar-se por melhorar o padrão de vida do campesinato, a revolução maoísta lançou as bases da maior reviravolta geopolítica do início do século XXI: a impressionante elevação do padrão de vida de centenas de milhões em um país antes tão miserável quanto a África e a transformação de uma decadente nação semicolonial em vias de partilha e desintegração em potência de primeira classe. Ainda que de natureza muito diferente, a Revolução Chinesa mostra-se tão importante quanto a Francesa, que, apesar de gerar o Terror, arrancou os povos da Europa das garras do absolutismo e do obscurantismo para transformá-los em verdadeiras nações.

Se foi necessária a abertura econômica pós-maoísta para deflagrar rápida e plenamente o potencial de crescimento industrial e econômico da nova sociedade chinesa, esta também teve seus aspectos negativos. Em nome da atração de investimentos estrangeiros e do crescimento a qualquer custo, cidades explodiram em crescimento desordenado, as questões ambientais foram ignoradas e os direitos sociais e trabalhistas sofreram retrocessos tanto entre trabalhadores urbanos quanto no campo. Muitas aldeias manifestaram saudades da Revolução Cultural, quando os camponeses eram tratados com respeito e tinham educação e saúde rudimentares, mas gratuitas.

A distância entre pobres e ricos cresceu a ponto de recriar uma classe de privilegiados praticamente acima da lei, capazes de comprar a Justiça e os pequenos burocratas, e a corrupção voltou a ser uma praga. O desenvolvimento desigual abriu abismos entre as regiões tão grandes quanto os do Brasil. Todos esses problemas só recentemente começaram a ser admitidos e enfrentados. E as questões do autoritarismo, da censura e da falta de participação popular no governo nem sequer foram ainda reconhecidas como problemas.

Mesmo assim a China evitou muitas das armadilhas nas quais poderia ter caído e frustrou o pessimismo de analistas ocidentais, que garantiam que seu crescimento era uma farsa e seu colapso, como o da União Soviética, questão de pouco tempo. No início dos anos 90, zombava-se das pretensões de crescimento e especulava-se que o país, como a URSS, logo se desintegraria. Analistas de Wall Street alertavam desde os anos 80 para a iminente “crise sistêmica” dos bancos chineses, mas estes estão hoje entre os mais sólidos do mundo, enquanto os de bancos de investimento onde trabalhavam foram para o ralo. Críticos de esquerda e de direita desdenharam a China como mais um país periférico semi-industrializado dependente dos investimentos e do mercado consumidor dos EUA, mas sua economia continuou a crescer a taxas elevadas durante as crises estadunidenses de 2001 e 2008.

Mas, se o modelo chinês foi bem-sucedido em conduzir o país da quase insignificância para o patamar de grande potência, agora o desafio é qualitativamente diferente: de grande potência para superpotência. Isso significa ir além de crescer, reproduzir tecnologias existentes e ter um grande peso econômico e político. É preciso ser capaz de criar e difundir tecnologia de ponta, ser aceito como modelo e liderança e projetar seu poder político e militar em qualquer parte do mundo de acordo com suas necessidades.

No campo militar, a China está passando de uma postura puramente defensiva – que lhe permitiu concentrar seus recursos em desenvolvimento, enquanto a URSS se esgotava tentando manter a paridade militar com os EUA – para uma de grande potência. Políticos estadunidenses fazem-se de perplexos ou de indignados com o crescimento dos gastos militares de Pequim, que parece não corresponder a nenhuma ameaça concreta, mas seu objetivo é evidente: a economia chinesa cresceu a tal ponto que precisa buscar suas matérias-primas e mercados em todo o mundo e pode ter de enfrentar potências rivais para garantir seu abastecimento e a colocação de seus produtos, como fizeram precursores como o Império Britânico e os EUA.

O país constrói capacidade para intervir em outras partes do mundo para proteger seus interesses. Já não se satisfaz em comprar caças russos. Tenta produzir aviões melhores. Não lhe basta mais patrulhar suas águas costeiras. Treina uma tripulação para operar porta-aviões de alcance global. É questão de tempo que procure ter bases na Ásia, África e mesmo América Latina, para proteger suas rotas de abastecimento de alimentos, minérios e energia, respaldar suas transnacionais e dissuadir os ocidentais de derrubar regimes que lhe são favoráveis. O chamado Pacto de Xangai, que envolve a Rússia, Irã, Paquistão e Ásia Central, é um movimento claro para manter os EUA a distância e assegurar prioridade no fornecimento de petróleo e outros recursos pelos países da Bacia do Cáspio e pelo Irã (que europeus e norte-americanos gostariam de reservar para si) em troca de respaldo diplomático e militar. Menos claro é o futuro da relação com a Índia, também observadora da organização, agora que à rivalidade histórica com os chineses soma-se a disputa pela água: os chineses falam de desviar para o esgotado rio Amarelo as águas do Bramaputra (que nasce no Tibete chinês), o que agravaria o problema já grave dos indianos com seca e rebaixamento de lençóis freáticos.

Apesar de a China ainda se limitar a reproduzir avanços russos e ocidentais a custo mais baixo, parece hoje mais disposta a pensar e planejar o futuro do que os EUA. Seu interesse por tecnologia “verde” e energias não oriundas de combustíveis fósseis é inegável e seus compromissos ambientais, embora abaixo do desejável, são menos nebulosos que os oferecidos hoje pelo governo Barack Obama. Em Copenhague, liderou os países periféricos contra a má vontade dos ricos quanto a renovar o Tratado de Kyoto.

A China promete reduzir progressivamente a intensidade de uso de carbono relativa ao PIB, elevar a participação das energias não fósseis para 15% até 2020 e projeta (no estudo 2050 China Energy) atingir o pico de emissões de carbono entre 2030 e 2035, passando a reduzi-las em seguida. A chinesa Suntech é hoje a maior produtora mundial de painéis solares e o analista Thomas Friedman, do New York Times, comparou a opção chinesa por tecnologia limpa com o lançamento do Sputnik, enquanto ameaça à liderança estadunidense.

Entretanto, a criatividade cultural e tecnológica e a pretensão a modelo digno de ser emulado exigem um novo conceito de justiça social e uma abertura política. Estas são necessárias para que o país administre conflitos e insatisfações à medida que a taxa de crescimento se desacelere, perspectiva inevitável para um país que vá além de aplicar soluções já prontas para desenvolver suas próprias. Em relação a esse obstáculo ao desenvolvimento, até agora foram os céticos que mostraram ter razão. Dar uma resposta crível a ele é o desafio mais difícil e importante para o país que caminha para fazer deste um século chinês.

FONTE: Carta Capital

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