terça-feira, 20 de outubro de 2009

Capitalismo em Gaza - Uma economia subterrânea. Literalmente

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Diário da Palestina

por Nicolas Pelham*
, na London Review of Books, vol. 31, n. 20, 22/10/2009


Dia 25/8, Israel destruiu uma das mais impressionantes obras de engenharia subterrânea que há em Gaza. Durante os três dias em que o túnel foi operacional, os comerciantes operaram intensamente pela única estrada realmente funcional para entrar e sair de Gaza, desde que Israel impôs o sítio de Gaza, depois da vitória eleitoral do Hamas. O túnel era profundo, construído para durar, com rampas para entrada e saída de veículos. Paredes fortificadas com chapas de aço que os moradores de Gaza recolheram quando, num dia de inverno de 2007, demoliram uma porção do muro de oito metros de altura que Israel ergueu ao longo dos quase 14 km de fronteira com o Egito.

Recentemente, Israel atacou pelo menos 13 túneis, e o Egito também destruiu vários outros. Outros, foram inundados nas últimas chuvas. Isso, e o medo de sabotagem, significa que, hoje, o número de túneis operacionais caiu a cerca de 2/3: são cerca de 250. Os que continuam a operar são muito profundos, com mais de um quilômetro de comprimento. As roldanas que operam à entrada de muitas das bocas de entrada e saída ao longo da fronteira do Egito ainda funcionam. E os moradores de Gaza continuam a receber carros novos, embora agora tenham de ser desmontados no Egito, trazidos em partes e remontados à saída dos túneis.

Para os israelenses, não é difícil localizar os túneis. Antes, os pontos de entrada dos túneis eram ocultados em residências privadas em Rafah. Agora, estão a céu aberto, alguns apenas cobertos por lençois ou lonas, cercados de caminhões de entrega, completamente à vista do equipamento eletrônico de espionagem de Israel que sobrevoa eternamente a área. Antes do bombardeio, as pessoas que recebiam os produtos e os acondicionavam nos caminhões para distribuição davam bom-dia aos guardas do Hamas que patrulham a fronteira, e, algumas vezes, também aos guardas egípcios nos postos de controle, 50m adiante. Praticamente toda a população tinha interesses investidos na economia dos túneis: os egípcios, dos mais altos graus das dinastias reinantes, ao mais miserável dos guardas, todos devidamente pagos para deixar fluir o tráfego; o Hamas também ganhava seu quinhão; Israel pode usar a existência dos túneis como desculpa (e não é a única e continua a ser usada), para tentar empurrar ao Egito a responsabilidade por Gaza; e os mais pobres dos que vivem em Gaza precisam dos túneis para que haja alguma comida nas lojas e armazéns, além de alguns remédios e outros itens indispensáveis para sobreviver sob sítio.

O bloqueio que Israel impôs a Gaza gerou imensa demanda por produtos que continuam a chegar pelos túneis. Depois que o Hamas chegou ao governo, em junho de 2007, o ministério de Defesa de Israel reduziu a lista de itens de necessidade humanitária autorizados a entrar em Gaza a 34 – farinha, mas não macarrão; açúcar, mas não café ou chá. (“Mas por que não entra macarrão? Qual o problema do macarrão?”, perguntou um garrido John Kerry aos funcionários israelenses depois de rápida visita a Gaza.) Os racionamentos são terríveis, há carência de tudo, principalmente depois que Israel destruiu ou danificou dezenas de milhares de casas, escolas e prédios públicos, nos 22 dias de ataque, entre dezembro e janeiro do último inverno.

Os apelos internacionais pelo fim do bloqueio caíram em ouvidos surdos (embora Israel tenha concordado em permitir a entrada de macarrão). Em março de 2009, doadores de todo o planeta reuniram-se no luxuoso resort de Sharm al-Sheikh, no Egito, junto à fronteira, e ofereceram 4,4 bilhões de dólares para a reconstrução de Gaza. Mas quando Israel recusou-se a permitir a entrada dos dólares, a política impôs-se, mais forte que qualquer consideração humanitária, e os governos ocidentais discretamente meteram de volta nos próprios bolsos o dinheiro de Gaza.

Os habitantes de Gaza ficaram entregues aos próprios meios para lutar pela própria vida; e com empenho, coragem e bem dirigido instinto de sobrevivência e disposição para resistir, continuam lutando – com considerável sucesso.

Gerados pela demanda sempre crescente, os algumas dúzias de túneis que já operavam antes de o Hamas ser eleito, rapidamente multiplicaram-se às centenas; foram gerados 10 mil postos de trabalho; alguns túneis já existentes foram fechados; outros foram reformados, receberam instalações de ar condicionado e até alguns quilômetros de trilhos. O Hamas diz que desembolsou 50 milhões de dólares como reparação às famílias cujas casas foram danificadas ou destruídas na guerra. As agências da ONU dizem que gastaram 40 milhões de dólares e planejam distribuir outros 40 milhões em Gaza. Os donos de lojas e vendas em Gaza começaram a pôr nas prateleiras (antes ocupadas por produtos exportados de Israel) produtos com embalagens em árabe. Novamente há cigarros e chocolate nos mercados em Gaza; além de roupas, sapatos, telefones celulares, laptops e artigos da ‘linha branca’ – geladeiras, máquinas de lavar e TVs de plasma de 42 polegadas.

Imensas bobinas de papel – um metro de altura – também chegam pelos túneis: o papel necessário para imprimir os jornais diários do Hamas. E também chegam animais – sobretudo antes dos feriados santificados. As ovelhas, que andam mais facilmente em fila e em linha reta, do que vacas, sempre mais obstinadas, são item preferido. Um clã, decidido a impedir que suas terras fossem invadidas, conseguiu trazer um leão vivo. Depois, os itens de transporte, o tuc-tuc, versão gazense do riquixá. E, afinal, achou-se meio para trazer também carros e caminhões.

Segundo funcionários do Banco Mundial, 80% das importações que chegam a Gaza vêm pelos túneis. Depois que o mercado negro dos túneis passou a ser considerado como sistema formal de comércio em Gaza, os fiscais do Hamas começaram a impor impostos e taxas de licenciamento. Alguns comerciantes que operam túneis mantêm agora um serviço de pedidos por telefone e distribuem catálogos: equipamento de escritório encomendado por telefone é entregue em 48 horas. “As coisas agora andam mais depressa do que quando existia o terminal de Rafah”, disse-me um comerciante. Com o aumento da quantidade de itens comerciados, os preços baixaram. Produtos egípcios custam hoje menos que produtos israelenses, garantido o lucro de todos os necessários intermediários. Gasolina, por exemplo, custa hoje a metade do que custava antes do bloqueio imposto pelos israelenses.

Há preciosos e poucos dados macroeconômicos sobre os efeitos de tudo isso. “Para nós, Gaza parece ser um buraco-negro”, admitiu um economista do Banco Mundial, operando com os dados existentes. Seja como for, disse ele, a taxa de desemprego diminuiu 3 pontos percentuais, depois de ter alcançado o pico de 32% em maio. “O pedreiro que trabalhava para mim, trocou-me por um emprego nos túneis”, contou-me um funcionário civil da ONU, que não conseguiu competir com os salários 4 vezes mais altos pagos nos túneis.

Sinais mais tangíveis de recuperação podem ser vistos entre os numerosos cambistas que operam em Gaza, e que ajudam os contrabandistas a lavar dinheiro. Qualquer um deles sabe dizer exatamente quanto pesa um milhão de dólares em notas de cem, e acertam até os decigramas. Em junho, o Banco da Palestina em Gaza ampliou suas salas de negócios (em número e em área), todas eletronicamente conectadas com as bolsas de valores de Nablus, Cairo e Dubai – e instalou centenas de telas de plasma ‘HD’ [alta definição]. Com investidores interessados em aplicar lucros, o volume de negócio de ações duplicou em um ano. Esse ano, no verão, o preço da ação do Banco da Palestina alcançou o máximo valor de sua história. Corretores que costumavam almoçar em casa, passaram a trabalhar ininterruptamente até o fechamento às 16h.

E há outras rotas informais pelas quais circula o dinheiro de Gaza; por algum tempo, por exemplo, circulou pelas mãos do proprietário de uma granja no campo de refugiados em Bureij. Por quase um ano, muitos gazenses procuravam Ahmed al-Kurdi entre os cestos de ovos e galinhas dispostos na rua no extremo leste do mercado. Ahmed trabalhava para um nebuloso grupo de clérigos, políticos e comerciantes que haviam montado uma empresa ‘de túnel’, esquema que gerou lucros fantásticos. Investidores do campo de refugiado contaram que, no auge, chegaram a ganhar 500 dólares de lucros, a cada dois meses, para cada 1.000 dólares investidos.

O investimento foi boa aposta, sobretudo quando Israel concordou em suspender os bombardeios, depois do cessar-fogo de junho de 2008 assinado com o Hamas; e as conexões de Al-Kurdi no Hamas passaram a apoiar o esquema. Os especialistas do Hamas entenderam que os ganhos gerados por aquele fundo não constituíam lucro e, portanto, não contrariavam a Xaria e os preceitos do Islã; nessa época, os pregadores islâmicos passaram a ser seguidos, por onde andassem, por muitos fieis, todos donos legítimos do próprio dinheiro. Um clérigo no campo de Bureij desempenhava duas funções: corretor e pregador. Circularam histórias de pessoas que venderam faqueiros, carros, até as casas, para levantar dinheiro. Ao final de 2008, conforme dados reunidos por comissão parlamentar de inquérito conduzido pelo Hamas, 1,5 milhão de gazenses chegaram a investir 400 milhões de dólares naquele esquema.

À medida que cresceram os lucros, as ruas super populosas do campo de refugiados foram-se enchendo de veículos 4 x 4. O preço das pick-up Toyota dobrou. Surgiram novos restaurantes na cidade de Gaza, que viviam cheios. Um deles, “Green Acre”, era dirigido por um espanhol, formado em Barcelona em curso de hotelaria, decorado com motivos espanhois. Outro, “Al-Samak”, restaurante especializado em pescado, no sul de Gaza, recoberto de tijolos decorados. À noite, a praia da Cidade de Gaza cintilava com novos hotéis e novas hospedarias. Jawdat al-Khudairy inaugurou um museu arqueológico, anexo a um grande e moderno café, com varandas decoradas. Depois da guerra do inverno passado, reparados os buracos que a artilharia sionista deixou nas paredes e varandas, Al-Khudairy passou a trabalhar no projeto de novo hotel . Muitos comerciantes israelenses também se têm interessado por esses negócios. Shlomi Fogel, eleitor fiel de Binyamin Netanyahu, sonha em construir um outro Palm Jumeirah, como o de Dubai, nas águas do Mediterrâneo, com acomodações nos apartamentos de luxo, para 600 mil moradores.

Toda essa atividade é gravemente ameaçada pela pressão constante de Egito e Israel e, não compensa a total destruição da manufatura e da agricultura de Gaza, pelos israelenses. Segundo dados do governo de Gaza, Israel destruiu 700 fábricas e locais de trabalho, 1.500 lojas e 10.000 dunams de terras cultivadas. Alguns comerciantes conseguiram mudar-se para setores industriais menos vulneráveis a bombas e hoje produzem peças para telefones celulares para o mercado do Golfo. Quando visitei o escritório do ministro da Economia, há alguns meses, na sala, à espera também de uma audiência, havia dois designers que lá estavam para apresentar-lhe um projeto ‘feito em casa’, para gerar gás de cozinha, aproveitando um aparelho de ar condicionado, uma pipa e um forno.

Muitas dessas mudanças são desperdiçadas pelas poucas delegações estrangeiras que há em Gaza, a maioria delas de países que apóiam a Autoridade Palestina na disputa contra o Hamas. “A comunidade internacional quer ver Gaza como lugar de destruição, pobreza e miséria” – lamenta al-Khudairy. “Ninguém quer revelar o próprio potencial de esperança.” E não são só os inimigos do Hamas que trabalham como detratores de Gaza. Os funcionários das ONGs humanitárias também precisam de uma região e de uma população em perene estado de desgraça, para continuarem a atrair doações; e muitos líderes do Hamas também se servem do sofrimento da população para gerar solidariedade global.

Os islâmicos talvez se sintam pouco confortáveis com os incongruentes movimentos de seus novos-ricos. Graças aos ganhos na economia dos túneis, o Hamas já fundou uma empresa de seguros, al-Multazim, e depois, em janeiro, um banco; e comprou muitas propriedades em Gaza, no momento, logo no início do bloqueio, em que os preços despencaram. “Arafat acertou quando disse que queria transformar Gaza na Cingapura do Oriente Médio. Estamos tentando ter sucesso na empreitada em que ele fracassou”, diz Mezan Abu Amarneh, homem do escalão médio do Hamas em Rafah, cuja sala é decorada com fotos do filho mais velho, guarda-costas do Hamas, assassinado por Israel. “O bloqueio é uma bênção disfarçada. Está ajudando a nos livrar de Israel e ajudando-nos a ajudar-nos.”

Há quem se horrorize pelos movimentos pós-guerra do Hamas, dos lucros da resistência. “Não é o velho estilo radical do movimento” – disse um economista de Gaza. “O Hamas está aprendendo a fazer negócios.” Além de operar diretamente alguns dos túneis, o movimento do Hamas – não o governo – supervisiona todos os demais túneis e recolhe taxas e impostos de importação. As autoridades ficam com migalhas, recebendo 10 mil shekels (£1700 libras) por túnel, por uma licença para uso de eletricidade e água. Há alguma tensão entre interesses do movimento e do governo: enquanto os dirigentes políticos pediam o fim do bloqueio, os militantes do Hamas em Rafah interessavam-se mais por manter ativa a economia dos túneis.

O colapso dos fundos de investimento nos túneis acentuou a tensão. Semi-afogados em dinheiro, os gerentes dos fundos investiram o excesso de capital em mercados no exterior; e quando do crash do mercado de ações, os lucros encolheram. O pior aconteceu quando Israel bombardeou os túneis em Rafah, na guerra de dezembro-janeiro, o que precipitou uma corrida dos investidores, para recuperar os investimentos que os administradores dos fundos não tinham como devolver.

Quando, em maio desse ano, o exército de Israel planejou seqüestrar administradores dos fundos de investimentos, descobriu que praticamente todos os fundos estavam exauridos. Sabe-se que alguns corretores fugiram para o Egito; os do campo de Bureij foram postos em prisão domiciliar, também para garantir sua segurança pessoal; outros foram presos. Os investidores procuraram as autoridades, em busca de algum reembolso, mas encontraram pouca ajuda. O Hamas ofereceu pagamentos de 16,5% dos investimentos, sob a condição de que os reclamantes renunciassem a qualquer reclamo legal ou recurso à justiça clânica. Em editorial, Mustafa Sawaf, editor do diário Filastin do Hamas, escreveu que os investidores conheciam os riscos a que se expunham e deveriam dar-se por satisfeitos com qualquer mínima compensação possível. Houve repressão contra os insatisfeitos. O Hamas impediu a rádio Al-Quds, da Jihad Islâmica, de divulgar um debate sobre o caso; e também impediu os investidores de protestarem fora do Parlamento.

Prometeram inquérito, que depois culpou as autoridades por falta de regulação. “O Hamas, como autoridade constituída foi considerado responsável por o esquema ter sido tolerado”, disse um membro do comitê de fiscalização do Parlamento em Gaza. Em outros pontos, a quebradeira gerou críticas ao papel do Hamas, que divulgou o esquema e beneficiou-se dos lucros. Seis juízes, indicados pelo Hamas, tentaram renunciar aos cargos (renúncias não aceitas), depois de submetidos a pressão oficial para libertar os suspeitos. Diz-se que as principais instituições do Hamas, entre as quais a Universidade Islâmica, centro de pensamento do movimento, e a principal associação de promoção do bem-estar social, al-Salah, teriam perdido milhões.

Os efeitos são visíveis. O Ramadan desse ano, época em que normalmente o Hamas distribui benesses com prodigalidade, foi visivelmente mais modesto. A cidade praticamente não foi decorada, exceto por um magro cordão de lâmpadas na Praça Palestina na cidade de Gaza. Em setembro, o Hamas atrasou o pagamento de salários pela primeira vez, e não pagou os mais altos funcionários, providência que jamais havia sido necessária, nem durante a guerra de Gaza, em dezembro-janeiro.

Tudo isso tem gerado críticas de que o Hamas estaria mais concentrado em seus próprios interesses do que nos interesses de Gaza. Ao mesmo tempo em que uma nova categoria de empresários janta em restaurantes, quatro de cada cinco gazenses, diz o relatório da ONU, vivem em pobreza absoluta; há ainda 20.000 desabrigados de guerra, ainda sem ter onde morar. Os moradores de áreas rurais continuam a mendigar em busca de itens básicos de sobrevivência, e famílias consideradas de classe média já estão obrigadas a recorrer aos alimentos distribuídos pela ONU. Sem gás para calefação ou cozinha, veem-se velhos vergados sob cargas de lenha. Não se trata só de terem perdido suas economias: os gazenses reclamam que os grupos armados esconderam-se nos subterrâneos durante a guerra, deixando a população exposta às bombas de Israel.

A crise não destruirá o prestígio e o poder do Hamas. Mas tudo parece menos convincente. Grupos islâmicos rivais têm-se beneficiado do descontentamento geral para recrutar membros, e tem havido confrontos entre grupos. À noite, algumas vezes também durante o dia, o Hamas instala pontos de controle no centro de Gaza. Famílias ‘feudais’ e clânicas, até aqui mantidas sob rígido controle oficial estão voltando a organizar-se. Como mais um eco do passado do Fatah, o Hamas tem invadido mesquitas à caça de muçulmanos “desviantes”; e, às vezes, apresentando-se como oposição a qualquer extremismo. Sabe-se de bombas que explodiram próximas a bases militares. E, embora Ismail Haniya – diferente de outros líderes em Gaza – continue a morar num campo de refugiados, as ruas e estradas são ocupadas por forças de segurança sempre que ele se movimenta pela cidade.

*Nicolas Pelham é ex-correspondente de Economist em Baghdad. Vive há quatro anos em Jerusalém.


Fonte: Vi o Mundo / London Review of Books

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