sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Abbas e o relatório Goldstone

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Para completa vergonha dos palestinos: Abbas e o Relatório Goldstone

por Ramzy Baroud, no Counterpunch

Ramzy Baroud é editor de PalestineChronicle.com. Seu livro mais recente é The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People's Struggle (Pluto Press, London).


Quando as bombas israelenses choviam sobre a Faixa de Gaza no ataque de 27/12-18/1 passado, milhões em todo o mundo tomaram as ruas, para manifestar a vergonha do mundo. O nível de barbárie naquela guerra, sobretudo porque foi ataque contra civis pobres e desarmados, uma nação fisicamente cercada antes de ser bombardeada, uniu todos os povos, todas as raças, todas as religiões. Alguns, como sempre acontece, não se manifestaram e mantiveram-se gelados e indiferentes; entre esses, na Cisjordânia, havia alguns funcionários palestinos.

Um desses foi Mahmoud Habbash, ministro da Autoridade Palestina para Questões Sociais. Foi visto várias vezes, naqueles dias terríveis, na tela da rede Aljazeera. Metade da tela mostrava crianças desfiguradas, chorando; ou mulheres mutiladas; ou homens e mulheres vasculhando na escuridão as pilhas de cadáveres, à procura de familiares, famílias inteiras, em muitos casos. Na outra metade da tela, lá estava Habbash, vomitando insultos ao partido Hamás, repetindo sempre a mesma papagaiada que vomitavam seus colegas israelenses. Cada vez que via aquele rosto, eu sentia náuseas. A cada palavra dele, crescia em mim um sentimento de vergonha. Vergonha, sim; não qualquer dúvida ou confusão.

Todos os que tenham entendido como e o quanto o acordo de Oslo, de setembro de 1993, gerou uma cultura que desfibrou o próprio tecido da sociedade palestina podem julgar o comportamento da Autoridade Palestina na Cisjordânia durante a Guerra de Gaza, antes dela e hoje. O que mais nos interessa é hoje. (...)

Todos os que tiveram esperanças de que as atrocidades que Israel cometeu em Gaza despertariam algum remorso nas elites egoístas em Ramallah, desapontaram-se com a reação da Autoridade Palestina às recomendações do juiz Richard Goldstone.

O Relatório Goldstone é produto da investigação mais ampla, geral e transparente, até agora, sobre o que aconteceu em Gaza naqueles 23 dias de ataque israelense. O relatório denuncia os terroristas israelenses, e não poupa os militantes palestinos. Mas o centro das acusações é, sem dúvida, Israel – acusações que ocupam a ampla maioria das cerca de 600 páginas do relatório. Depois do Relatório divulgado, o passo seguinte seria o Conselho de Direitos Humanos da ONU encaminhar o Relatório à consideração do Conselho de Segurança da ONU – que discutiria se o Relatório deveria ser encaminhado à Corte Criminal Internacional, em Haia. Seria momento histórico.

Sabendo das amplas implicações desse encaminhamento, o Hamas aceitou e subscreveu, na íntegra, todas as recomendações do Relatório Goldstone.

Israel, com o apoio dos EUA, seu tradicional aliado, rejeitou o Relatório – e respondeu com todo tipo de acusações e insultos contra o juiz, de renome internacional, e judeu.

O Relatório, os fatos que reuniu e as recomendações que faz – condenando Israel e solicitando que o Relatório fosse encaminhado ao Conselho de Segurança da ONU , deveria ter sido votado no Conselho de Direitos Humanos dia 2/10 passado. Infelizmente, e para completa vergonha dos palestinos, esse envio foi adiado, a pedido da Autoridade Palestina e do próprio presidente Mahmoud Abbas. Para os amigos e aliados dos palestinos no Conselho de Direitos Humanos da ONU, foi um choque; mas todos se contiveram. Também foi momento de desapontamento e choque para todos, ver os enviados da Autoridade Palestina discutir o caso, não com aliados da Ásia, da África ou outros tradicionais aliados dos palestinos no Conselho, mas com diplomatas dos EUA e Europa; como se fossem esses as ‘autoridades’ cuja opinião interessasse ouvir, não os tradicionais aliados dos palestinos, que há anos lutam para defender os direitos dos palestinos.

Alguma coisa está terrivelmente errada. Como entender que um líder, presidente de uma nação que sofre há décadas os horrores da ocupação sionista, possa ter cometido tal ‘erro’? Como pode ter adiado a discussão e a votação de um relatório que examinou as circunstâncias sob as quais foram assassinados mais de 1.400 palestinos, milhares de outros foram feridos e mutilados? Como é possível que Abbas tenha proposto o adiamento da discussão do Relatório, para ‘depois’... para daqui a seis meses?!

Surgiram várias teorias. Para a mídia israelense, a pressão dos EUA sobre o presidente da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas seria a principal razão a explicar a surpreendente reviravolta. Qualquer movimento que fortalecesse as conclusões do Relatório ameaçaria o ‘processo de paz’; tudo se justificaria, para salvar o ‘processo de paz’; salvar o ‘processo de paz’ explicaria tudo.

Amira Hass do Haaretz opinou: “A submissão crônica é sempre justificada por algum desejo de ‘fazer progressos’. Mas para a OLP e o Fatáh, ‘progresso’ é salvar a existência da Autoridade Palestina, a qual, hoje, funciona mais que nunca como subcontratada do exército de Israel, do serviço secreto Shin Bet e da Administração Civil israelense.”

Para Jonathan Cook, a questão seria outra: “Israel ameaçou não manter os compromissos de liberar freqüências de rádio para a empresa Wataniya, fornecedora de telefones celulares, e que deve começar a operar esse mês na Cisjordânia. A indústria das telecomunicações é a pedra de toque da economia palestina; a empresa PalTel, hoje monopolista, movimenta metade do total de ações negociadas na Bolsa palestina.”

“Não queremos celulares em troca de sangue” – bem poderia ser nova palavra de ordem na Palestina. Seja como for, os interesses das empresas de telefonia móvel não são os únicos que operam para aumentar a agonia na Palestina. Os acordos de Oslo deram origem a uma geração de empresários típicos. São empresários, ao mesmo tempo que são funcionários do governo da Autoridade Palestina ou membros ativos do partido Fatah, ou tudo isso ao mesmo tempo, ou sócios de outros que o são. Muitos dos bilhões de dólares de ajuda internacional que chegou à Palestina depois de assinados os acordos de Oslo tomou o rumo de bancos privados e contas privadas. Dinheiro atrai dinheiro, e por todos os cantos floresceram empresas de “export and import”, como ervas daninhas, a envenenar as relações entre os miseráveis refugiados nos territóri os ocupados. São empresários travestidos de revolucionários, implantados como vermes em cada nicho da sociedade palestina, ali a exploram, usam-na, controlam-na, sufocam-na, até eventualmente a matarem. Esse grupo, que vive da e na corrupção, encontrou seu aliado ideal em Israel – que aspira a reinar sempre e cada vez mais nos territórios ocupados.

A Autoridade Palestina rendeu-se, não só por medo da ira sionista em si, mas por medo de que a ira sionista crie dificuldades para os negócios, que interrompa o fluxo da ajuda internacional e correspondentes ‘contratos’ (de construção, de telefonia...). Assim, e porque a corrupção não se deixa confinar em fronteiras geográficas, os funcionários da Autoridade Palestina que operam no exterior, levaram a vergonha dos palestinos a níveis planetários. Milhões marcharam nos EUA, na Europa, na Ásia, na América do Sul e em todo o mundo, cantando por Gaza e suas vítimas. Não se viram representantes da Autoridade Palestina nas ruas do mundo. Vez ou outra, quando se ouvem os diplomatas da Autoridade Palestina em fóruns públicos, só fazem atacar outros palestinos (vivem de atacar o Hamas!); e nada fazem para tentar ganhar a solidaried ade do mundo para todos os palestinos.

Não basta, portanto, ‘culpar’ a pressão dos norte-americanos, para ‘explicar’ a decisão de Abbas no Conselho dos Direitos Humanos da ONU. De nada adiantará, sequer, arrancar Abbas, aos 74 anos, do poder. Abbas manifesta uma cultura de autoajuda, de autopreservação, de autoproteção – corrupta até a medula. Se Abbas sair – o que, considerada sua idade, não tardará a acontecer –, lá estará Mohammed Dahlan para substituí-lo, ou, mesmo, Mahmoud Habbash, o homem que gritava que Gaza deveria rebelar-se contra o Hamas... no momento em que as bombas de fósforo de Israel explodiam em casas e escolas palestinas, aos milhares.

Os palestinos que hoje clamam por mudanças, depois do ‘evento’ do Relatório Goldstone, devem considerar toda a cultura ‘pós-Oslo’, toda ela, com seus milionários ‘revolucionários’, suas elites ‘históricas’ e seus empresários. É preciso considerar alguma alternativa a esse regime corrupto; e é preciso agir rápido. O muro sionista está penetrando cada vez mais fundo nas cidades palestinas e nas vilas da Cisjordânia, e há outra guerra no futuro próximo da infeliz Gaza sitiada. O tempo é curto. E a vergonha coletiva dos palestinos, nossa vergonha, já é quase absoluta.

O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui.

Fonte: Vi o Mundo

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