quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Saúde: do serviço ao negócio

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O modo como está ocorrendo a transformação da saúde, de serviço público em negócio lucrativo, é escandaloso, inconstitucional e certamente violador do direito dos cidadãos à saúde. O que se passa é caso único nos países de desenvolvimento comparável a Portugal.

Alguns exemplos bastarão para dar conta da gravidade da situação. Recentemente a Ministra da Saúde convocou todos os diretores de serviços públicos de reprodução assistida, no sentido de lhes criar as condições financeiras e humanas para aumentar significativamente a oferta pública destes serviços. Todos, exceto um, recusaram a oferta, sob vários pretextos e por uma só razão: todos eles dirigem serviços privados de reprodução assistida e não queriam que os serviços públicos lhes fizessem concorrência.

Outro exemplo, ainda mais perturbador. Um determinado hospital público decidiu aumentar a oferta de serviços especializados para corresponder às solicitações crescentes dos cidadãos. Pois viu esta decisão contestada nos tribunais pelo setor empresarial hospitalar com o fundamento de que, ao expandir os serviços públicos, estavam pondo em causa as legítimas expectativas do setor privado quanto à sua expansão e lucratividade.

Apesar de um tal propósito bradar aos céus, há juristas de renome dispostos a dar pareceres eloquentes a favor dos queixosos e só nos resta esperar que os nossos tribunais façam uma ponderação de interesses à luz do que determina a Constituição e decidam corretamente.

Terceiro exemplo. Contra o parecer da Ministra da Saúde, o Ministro das Finanças autorizou um acordo entre um hospital privado, pertencente ao Grupo Espírito Santo, e a ADSE (Direção de Proteção Social dos Funcionários e Agentes da Administração Pública), com o objetivo de, com o novo fluxo de doentes, viabilizar um hospital em dificuldades. O dinheiro gasto nesse acordo não poderia ter sido aplicado, mais eficazmente, na expansão dos serviços públicos? A ironia da história é que, pouco tempo depois, os jornais anunciavam em primeira página que os utentes da ADSE estavam a ser preteridos no referido hospital por a ADSE pagar pior.

Estes três exemplos são ilustrativos do ataque cerrado a que está sendo sujeito o Serviço Nacional de Saúde e do poder político que o setor privado já adquiriu entre nós. A atividade empresarial no domínio da saúde é uma atividade legítima, mas deixará de sê-la se interferir com o direito à saúde gratuita constitucionalmente consagrada. Imagina-se que a Polícia Judiciária pudesse ser accionada em tribunal por, ao desenvolver os seus serviços de investigação, violar as legítimas expectativas dos detetives particulares.

A destruição do SNS esteve até agora a cargo dos governos do PSD e do Ministro Correia de Campos. Perante o protesto cidadãos, o governo procurou mudar de curso e a atual ministra parece ser uma
honesta defensora do SNS. Terá poder? Os sinais não são animadores porque as medidas a tomar são drásticas. Primeiro, os diretores de serviços hospitalares devem estar em regime de exclusividade, não só pelo tempo que devem dedicar ao serviço, mas para evitar conflitos de interesses. Até agora, sempre que o Governo tentou, deixou-se atemorizar pelo medo de perder os melhores. Não há que ter esse medo, já que dispomos de muitos profissionais competentes e dedicados.

É preciso acabar com a figura do diretor de serviços que não dirige o serviço e é apenas o chefe dos médicos. Segundo, é urgente repor e valorizar as carreiras médicas para não criar incertezas desmoralizadoras. Terceiro, leva dez anos a formar um médico num sistema público: não faz sentido que, ao fim desses anos, o sistema privado se aproprie de todo esse investimento e o transforme em lucro. Os médicos deveriam ser obrigados a ficar no serviço público por um período razoável. Quarto, devem aprofundar-se as formas de contratualização nos serviços públicos – desde que não passem pelas parasitárias empresas de fornecedores de médicos (onde desaparece a responsabilidade pelo ato médico) – para permitir a redução das listas de espera, como aconteceu recentemente em oftalmologia. Quinto, não há nenhuma razão para que uma lâmpada num sistema de imagiologia leve mais tempo para ser substituída no sistema público que no sistema privado.

Se, num dado momento, o SNS não tiver condições para garantir a saúde de todos os cidadãos, pode comprar serviços médicos aos serviços privados, mas, no espírito da Constituição, isso só pode ocorrer se não puder expandir os seus próprios serviços públicos. Os casos atrás mencionados mostram que pode e quer. Ainda temos tempo?

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Fonte: Agência Carta Maior

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