sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Poderes em conflito

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por Wálter Fanganiello Maierovitch

Montesquieu dedicou catorze anos para escrever a obra intitulada O Espírito das Leis (L’ Espirit des Lois), publicada em 1748.

No 11º volume, está a tese da separação dos poderes. Isto a partir da idéia-mãe de que o “poder absoluto corrompe absolutamente”.

Para Montesquieu, o Estado conta com três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, cada qual com incumbências específicas. Atacada pelos jesuítas, a obra entrou para o canônico Index Librorum Prohibitorum, em 1751. Mais, a obra não era recomendada na Sorbonne.

A sua doutrina da separação e da tripartição, no entanto, foi acolhida em várias constituições, incluídas as nossas republicanas, com destaque: “Os poderes são independentes e harmônicos”.

Muito respeitada e citada em todas as discussões sobre a forma do Estado, a tripartição não empolgou a Europa.

Nas democracias parlamentaristas, o Legislativo e o Executivo não são independentes um do outro. O chefe do Executivo está condicionado a um mandato conferido pelo Parlamento, que pode ser revogado por meio do chamado voto de desconfiança.

Nesse sistema, o chefe de governo fica sempre dependente da vontade do povo, representada pelo Parlamento. A magistratura não é considerada poder do Estado. Na Itália, por exemplo, a magistratura é uma “ordem autônoma e independente de cada poder” (art. 104 da Constituição italiana). Por dispositivo constitucional, “os juízes estão sujeitos apenas às leis” (art. 101 da referida Constituição).

Com efeito, nem o sistema da tripartição e separação preconizado por Montesquieu e adotado no Brasil nem o das democracias parlamentares européias evitam os conflitos entre parlamentares, governantes e magistrados.

Para se ter idéia, depois de a magistratura do Ministério Público de Milão promover, em 2002, um processo criminal contra o então premier Silvio Berlusconi, o ministro da Justiça do governo, Vincenzo Caianello, suspendeu a escolta aos magistrados integrantes do pool de procuradores coordenados por Saverio Borelli, chefe do Ministério Público milanês. No caso, alegou-se caber com exclusividade ao Executivo fornecer agentes e veículos para as escoltas.

No Brasil, com as recentes renovações e mudanças operadas no Supremo Tribunal Federal (STF), os conflitos entre os poderes se acentuaram. Por exemplo, ao reconhecer a infidelidade partidária, o STF fixou data certa para caracterizá-la. Assim, tomou o lugar do legislador. E as medidas provisórias, com trancamento de pauta, fizeram do Executivo um voraz legislador.

No supracitado e novo STF, também é bastante comum a antecipação de decisões, fora dos autos e do momento processual apropriado. Nesta semana, quando ainda se discutia em audiências públicas o caso de aborto em face de anencefalia, total ou parcial, os jornais já anunciavam as “tendências” de oito dos onze ministros da casa. O ministro Eros Grau, em entrevista exclusiva para a Folha de S.Paulo, sentenciou: “Já existem duas hipóteses de aborto na lei. Eu não posso criar uma terceira”.

Na segunda-feira 25, e pela mídia, muitos congressistas externaram os seus descontentamentos com o STF, que, nos casos de súmulas vinculantes a respeito de emprego de algemas e proibição ao nepotismo, teria invadido a competência do Legislativo.

O nepotismo, ainda que camuflado em contratação cruzada, atenta contra princípios constitucionais básicos, a comprometer a moralidade administrativa. Acontece que o STF não se limitou a declarar a inconstitucionalidade e olvidou competir ao Legislativo disciplinar a matéria por lei.

No que toca à súmula vinculante sobre algema, o fato de o Legislativo tardar em elaborar normas para impedir os notórios abusos, não abria ao STF uma competência legislativa subsidiária. Além do mais, a Constituição, no seu artigo 103-A introduzido pela emenda constitucional 45/2004, só permite a edição de súmula vinculante após reiteradas decisões do STF. O STF, ao sumular, apreciara apenas quatro casos. Por evidente, não se tratava de repetições constantes, permanentes.

Já se escreveu que a pior das ditaduras não é a do Executivo, mas a do Judiciário, quando este se sobrepõe aos demais poderes e passa, como se legislador ou chefe de governo fosse, a disciplinar a vida em sociedade, tudo sem contar com representação popular direta, ou seja, por meio de eleições.

No momento, há prenúncio de um novo dissenso entre o STF e a Presidência da República. Ou seja, no julgamento, pelo STF, do caso da demarcação, por decreto presidencial de maio de 2005, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. No âmbito das suas atribuições constitucionais, consoante a ratificada Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (1993), o presidente Lula emitiu, em 2005, decreto a homologar a demarcação, em forma contínua, de área no extremo norte de Roraima, com 1,7 milhão de hectares, onde vivem cinco etnias, a totalizar 18 mil indígenas, aproximadamente.

Os critérios de conveniência e oportunidade competiam ao presidente da República. Destarte, ao STF não cabe uma decisão política sobre como seria conveniente demarcar a área, ou seja, de forma contínua ou com o estabelecimento de ilhas.

Na verdade, a ação popular em questão, já bem indeferida pelo voto do ministro-relator, Ayres Britto, procura jogar, para empolgar constitucionalmente, com a questão da (1) soberania na faixa de fronteira e do (2) risco de criação de um enclave, do tipo Tibete, Ossétia do Sul, Kosovo. Um enclave que, num futuro, poderia gerar conflito separatista em face da formação de uma nação indígena, a englobar atuais áreas brasileira e venezuelana. Ainda, como na Ossétia do Sul, onde 90% da população adotou a cidadania russa, os indígenas poderiam virar holandeses, ingleses, suecos etc., de modo a se ter o caldo para a internacionalização da Amazônia.

O STF, conforme a decisão dos ministros, poderá se tornar uma corte política, a tomar a função de Lula. E não será mais uma corte técnica, como desejável, e ensinado por Montesquieu.

Fonte: Carta Capital

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