sábado, 23 de agosto de 2008

O controle da internet é necessário?

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ENTREVISTA / SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA


Por Joel Minusculi em 19/8/2008

Reproduzido da edição nº 141 do Monitor de Mídia, projeto de acompanhamento da imprensa catarinense produzido por alunos e professores da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), sob a coordenação do prof. Rogério Christofoletti; integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi)

Em tempos de web participativa e de propagação de informações em rede sociais, o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei (PLC 89/03), que pretende regular algumas práticas comuns para quem navega na internet. O responsável pelo texto é o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT). Segundo ele, a intenção é criar um ambiente mais seguro para os usuários e que o projeto atende o interesse público. Porém, entusiastas dos softwares livres e participantes ativos de redes sociais e blogueiros não receberam muito bem a proposta do senador.

Em 24 de junho de 2008, o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira postou em seu blog que o "projeto de lei aprovado em comissão do senado coloca em risco a liberdade na rede e cria o provedor dedo-duro". A postagem alertava sobre armadilhas nas entrelinhas e problemas com interpretações legais. A partir disso, vários outros blogueiros concordaram com a análise e juntaram-se em um movimento, que agregou seguidores justamente no ambiente em que a lei pretende vigiar. O resultado foi uma petição online pelo veto ao projeto de cibercrimes – que, em um mês, ultrapassou as 100 mil assinaturas.

Graduado em Ciências Sociais (1989), mestre (2000) e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (2005), Sérgio Amadeu acompanha o andamento do projeto agora na Câmara e discute os impactos da lei na sociedade. Atualmente, ele pesquisa as relações entre comunicação e tecnologia, práticas colaborativas na internet e a teoria da propriedade dos bens imateriais. Seus estudos geraram dois livros: Exclusão Digital: a miséria na era da informação e Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento.

Nesta edição, o Monitor de Mídia questionou Sérgio Amadeu sobre a necessidade do controle das redes, opinião sobre o projeto de lei do senador Azeredo e a nova forma de lidar com a informação e o conhecimento na internet.

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O Senado brasileiro aprovou no dia 9 de julho o projeto de lei (PLC 89/03) que transforma em crime várias atividades maliciosas cometidas pela internet. Agora, o projeto segue para aprovação na Câmara dos Deputados. O texto, entre outras coisas, condena a invasão de bancos de dados, a disseminação de vírus, a pirataria e a pedofilia. O senhor, no seu blog em 25 de julho, afirmou que "o resultado será um estado de vigilantismo". Por quê?

Sérgio Amadeu – Os artigos do substitutivo aprovado pelo Senador Azeredo que dizem respeito ao roubo de senhas, spam, vírus e pedofilia não estão sendo questionados por ninguém. Estão mal escritos, mas não abrem espaço para criminalizar indiscriminadamente milhares de internautas. O problema está exatamente nos artigos 285-A e 285-B que buscam coibir o compartilhamento de arquivos pelas redes P2P (pessoa a pessoa), que querem impedir a cópia e o uso justo de obras cerceadas pelo copyright por violarem a seguranças de dispositivos de comunicação e redes restritas. Já o artigo 22 pretende privatizar parte das tarefas típicas do Estado, tornando provedores responsáveis pela vigilância de seus usuários. Além disso, criará um clima de incerteza e desconfiança em redes abertas, pois exige que todo o provimento de acesso guarde os "logs" (registros da navegação) de seus usuários por três anos. Para que servem "logs" sem a identificação de quem usava um determinado IP (endereço de computador ligado à internet)? Para quase nada, por isso, a lei de Azeredo exigirá uma regulamentação por parte da Polícia Federal, que poderá gerar o fim da comunicação livre e a navegação anônima na rede. O senador Azeredo quer impor um estado de vigilância permanente, o que é incompatível com o anonimato. Assim como estados totalitários não admitiam que máquinas de escrever fossem vendidas sem a identificação de seus compradores, o senador quer que toda vez que alguém entre na rede esteja plenamente identificado. Isso é inadmissível. Eu não quero que a Polícia, os crackers e nem as corporações saibam que horas eu vi sito o Youtube, faço compras na Amazon, abro meu Twitter ou faço uma determinada busca no Yahoo. Nem por isso, sou criminoso.

Em outra postagem foi afirmado que "os exageros que constam do projeto podem colocar em risco a liberdade de expressão, impedir as redes abertas wireless, além de aumentar os custos da manutenção de redes informacionais". De que forma isso ocorreria? Quais as conseqüências diretas aos usuários comuns da internet?

S.A. – Por exemplo, no Artigo 285-B do projeto, está escrito que será crime "obter ou transferir, sem autorização ou em desconformidade com autorização do legítimo titular da rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso, dado ou informação neles disponível". Com essa redação, pode ser considerado crime baixar um vídeo, uma música, copiar uma foto, sem a autorização do que será considerado legítimo titular. Práticas comuns de fanfics, jovens que modificam histórias conhecidas e as distribuem gratuitamente na rede, poderão ser consideradas transferência de informações em desconformidade com a autorização do legítimo titular da rede. Pegar um anime (animação japonesa) e traduzi-lo sem autorização, prática comum de milhares de fansubbers, também poderá ser criminalizada pela redação do Azeredo. A indústria do copyright sabe que para copiar um arquivo digital, antes é preciso acessá-lo e depois transferi-lo. Por isso, a Lei de Azeredo não atua sobre o direito de cópia e sim sobre o acesso e a transferência.

Este projeto reúne os interesses da comunidade de vigilância, dos banqueiros e da indústria de copyright, principalmente da Motion Picture Association of America (MPAA) e da Recording Industry Association of América (RIAA). Tem a clara intenção de substituir a cultura da liberdade, que prolifera na rede, pela cultura da permissão. Para isto, trabalha o artigo 22 que deverá ser regulamentado pelo Poder Executivo, provavelmente pela Polícia Federal. No parágrafo 1º desse artigo, está dito que haverá um regulamento e a necessidade de auditoria sobre os provedores de acesso. Repare que inúmeras empresas dão o acesso à internet para seus funcionários. Centenas de escolas e faculdades também garantem que seus alunos acessem a rede. Assim, essas empresas, escolas, cibercafés, telecentros, além dos grandes provedores, deverão estar em conformidade com a guarda de dados que o regulamento irá detalhar e a auditoria irá verificar. Quem fará tal auditoria? A Polícia Federal? Claro que não. Ela não tem efetivo suficiente, ela mal consegue vigiar nossas fronteiras, combater os corruptos e impedir a odiosa devastação da Amazônia. Tudo indica que a PF repassará esta atividade para empresas privadas que cobrarão pelos laudos. Quanto? Ninguém sabe. Se esse artigo da proposta do Azeredo for aprovado ele alavancará uma nova atividade lucrativa para os mercadores do controle.

Note ainda que o artigo 22 exige a guarda de dados da navegação dos usuários por três anos, mas ele não diz que será necessário que todos os usuários sejam identificados para acessar a rede. Não diz porque o regulamento irá exigir isto. Como já afirmei, não há nenhum sentido em guardar dados de um usuário anônimo, que entrou na rede e o provedor não tem como saber quem é. Por isso, a Lei do Azeredo dependendo de como for regulamentada ou será inócua e desnecessária ou inviabilizará as redes abertas de conexão, sejam com fio ou sem fio.

Existe uma forma de atuação das autoridades na internet que não fira os direitos de propagação de idéias, ou isso não é necessário?

S.A. – Para que as autoridades não destruam a comunicação livre que conquistamos com a internet é necessário que seja construída um marco de direitos de navegação, um estatuto da cidadania digital. O direito que tenho de ir e vir, deve ser garantido no ciberespaço. O direito de acesso às obras cerceadas pelo copyright que tenho ao freqüentar uma biblioteca pública, deve existir também na rede. A defesa da privacidade e a intimidade que temos em nossas casas não podem ser destruídas quando nos conectamos. Assim como o Poder Judiciário só pode permitir a invasão de uma residência dentro de condições muito delimitadas, os agentes do poder de estado ou as grandes corporações não podem invadir e rastrear os computadores das pessoas. Enfim, temos que discutir direitos. O modo de garantir direitos humanos e sociais básicos e que permitem ter maior clareza para criar novos tipos penais em defesa da sociedade.

O PLC 89/03 foi intensamente criticado na blogosfera, principalmente por entusiastas dos softwares livres e dos chamados "creative commons". Esse movimento na web pode significar um princípio "anárquico" da propriedade intelectual na internet?

S.A. – A propriedade sobre idéias é completamente diferente da propriedade sobre bens materiais. Veja o exemplo da Internet. Por que ela rapidamente se espalhou e recobriu o mundo? Principalmente porque ela permitia que todos os interessados copiassem e aplicassem em suas redes o conjunto de protocolos TCP/IP. Por que o termo PC durante muitos anos passou a ser sinônimo de computador? Porque a sua arquitetura aberta permitia que todos o copiassem sem violação de patentes e copyright. Isso permitiu a expansão dos microcomputadores por todo o planeta. No mundo das redes, em que os fluxos são imateriais, copiar não destrói, não desgasta, não danifica o arquivo copiado. Trata-se de um cenário distinto do mundo industrial que vive do controle da escassez. A informação não é escassa e quanto mais você a utiliza mais ela pode ser aperfeiçoada. No mundo das redes colaborar pode ser mais eficiente que competir e controlar. Ocorre que a velha Indústria Cultural, que enriqueceu intermediando e controlando, ao ver as possibilidades de autores e artistas se comunicarem diretamente com seus públicos, e vice-versa, percebeu que sua atividade de intermediação está sendo afetada. Desse modo, quer impedir que as qualidades das redes digitais se manifestem integralmente. Por isso, ela quer enrijecer o instituto do copyright, quer confundir autoria com propriedade e disseminar metáforas como verdades objetivas. Veja o absurdo: para impedir que Mickey Mouse caísse em domínio público, a lei norte-americana elevou o prazo de cerceamento das obras para 95 anos depois da morte do autor. Quando o copyright surgiu era para incentivar o criador. Que incentivo é esse que protege a obra 95 anos depois que ele morreu? A lei de propriedade intelectual precisa ser repensada para voltar a ser razoável. É preciso voltar a incentivar os criadores ao invés dos intermediários, incentivar o autor e não o defunto-autor. Brás Cubas iria gostar das aberrações que sofremos hoje.

A Fundação Getúlio Vargas fez uma análise minuciosa nos artigos da PL 89/03 e as conseqüências que isso poderá trazer. Na conclusão consta que "a imprecisão do texto e suas conseqüências imprevisíveis (algumas das quais listadas acima) demandam que sejam vetados no mínimo os artigos 285-A, 285-B, 163-A, parágrafo primeiro, Art. 6º, inciso VII, Artigo 22, III. Caso os artigos persistam, condutas triviais na rede serão passíveis de punição com penas de até 4 anos de reclusão". Isso quer dizer que pode ter havido despreparo ou falta de conhecimento específico por parte dos redatores?

S.A. – Pode ser despreparo. Pode ser concepção. Pode ser despreparo de uns e concepção autoritária de outros. Não sei. Só sei que criaram figuras inusitadas como "titular de rede". Inseriram penas descabidas. Alguns certamente não pensaram no alcance da criminalização que sua redação irá abranger. O senador Azeredo disse em uma entrevista que os cidadãos de bem poderiam ficar tranqüilos, pois somente os criminosos é que teriam que se preocupar. O problema está exatamente na concepção do que deve ser considerado "cidadão de bem" e "criminoso".

No final de 2006, no artigo "Em defesa da liberdade na internet", você afirmou que a "internet corre perigo (...) tudo porque as gigantescas empresas que controlam a conexão física das telecomunicações estão se sentido ameaçadas". Recentemente, a Viacom pediu informações como parte de um processo bilionário contra o Youtube. Pode-se dizer que há uma nova forma de lidar com a propriedade imaterial e as grandes empresas não estão sabendo lidar com isso?

S.A. – Sim. As grandes empresas querem manter o cenário de controle, típico do mundo industrial e da comunicação broadcasting. Na internet, até o momento, qualquer pessoa pode criar conteúdos, novos formatos e novas tecnologias. Esta liberdade incomoda a indústria. Um jovem pode criar um novo protocolo que em menos de um ano é capaz de retirar a lucratividade de um negócio de intermediação. Obviamente, a indústria não vê com bons olhos a criatividade fora de controle. Por exemplo, a criação da Voz sobre IP retirou renda das operadoras. Essa liberdade de invenção está sendo combatida pelas velhas corporações que acumularam bilhões no mundo industrial.

Por fim, é possível que os interesses de governos e grandes corporações convivam em harmonia com a prática da livre propagação de idéias? Como isso pode acontecer?

S.A. – É possível desde que a sociedade reconfigure seus governos e que a liberdade de acesso aos bens comuns avance. Em um cenário de economia informacional, a igualdade de oportunidades se garante primeiramente com a liberdade de acesso. A liberdade de conhecimento e a diversidade cultural são vitais para que as Corporações não se tornem os novos Leviatãs.

Fonte: Observatório da Imprensa

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