sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Sobre a moral e a conveniência

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Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.

O governo precisa esclarecer qual é a conveniência de defender aqui e agora a limitação da Lei de Anistia, enquanto no vizinho conflagrado defenderíamos exatamente o contrário, se fôssemos chamados a opinar

Por Alon Feuerwerker
alon.feuerwerker@correioweb.com.br

Endossar o ponto de vista de que os responsáveis pela prática de tortura devem ser levados a julgamento, independentemente da circunstância do ato criminoso, coloca o defensor da idéia em posição moralmente superior, o que acaba se transformando em poderosa arma na luta política. Quem pode, moralmente falando, opor-se a que a tortura praticada no nosso período militar, um crime hoje insuscetível de anistia, leve seus autores ao banco dos réus para que haja justiça? Acho que ninguém.

A situação dos militantes da tese revisionista fica ainda mais confortável quando o outro lado recorre aos inevitáveis argumentos jurídicos. Por exemplo, à constatação de que nossa legislação sobre tortura é posterior ao período dos governos autoritários no Brasil (1964-1985). Aí é que o caldo entorna definitivamente para quem resiste a reabrir o assunto. Está cada vez mais na moda a idéia de que os direitos e garantias individuais e o respeito estrito às leis operam aqui em última instância como vetores de estímulo à impunidade. Assim, interpretar a Lei de Anistia amplamente, o que implica reconhecer que foram anistiados os chamados crimes conexos, seria deixar crimes bárbaros impunes.

É portanto bastante compreensível que caia em solo fértil a posição, nascida do governo federal, de que os torturadores na ditadura não devem ser alcançados pela Lei de Anistia. Até porque, repito, a tortura é capitulada como crime inanistiável na Constituição de 1988. E não é o único. Ao incluir esse tópico, os constituintes deixaram para a legislação infraconstitucional a definição de crimes adicionais que poderiam ser classificados como hediondos, e, portanto, “inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia” (Art. 5º, inciso XLIII).

Dois anos mais tarde, o então presidente Fernando Collor sancionou a Lei 8.072, que no artigo 1º, inciso IV, inclui a “extorsão mediante seqüestro” entre os crimes hediondos, antes de reafirmar, no artigo imediatamente seguinte, o princípio constitucional de que “os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo” são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança.

O problema das idéias é que elas nunca vêm sozinhas, mas encadeadas. Nossos vizinhos colombianos enfrentam há tempos um quadro de guerra de guerrilhas. Nos últimos anos, as organizações guerrilheiras têm recorrido ao seqüestro como meio para financiar-se. Ou seja, se as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) fossem as “Farb”, brasileiras, a lei proibiria a qualquer governo do Brasil fazer com a guerrilha acordo político que incluísse a anistia aos membros da organização, inclusive à cúpula.

Ou seja, se as Farc fossem as Farb o governo brasileiro estaria legalmente impedido de executar aqui o que reiteradamente defende em palavras e atos para o país vizinho: a tese (plenamente defensável) de que a pacificação da Colômbia passa pelo fim da guerrilha, no contexto de um amplo entendimento que desarme definitivamente as diversas organizações hoje à margem da lei e as incorpore ao jogo político-eleitoral pacífico e democrático.

Até porque, convenhamos, será difícil imaginar um pacto que só ofereça às Farc escolher entre duas opções: ou a cova ou apodrecer em alguma cadeia colombiana, ou norte-americana. Eu aposto que se o Brasil fosse hipoteticamente chamado por Álvaro Uribe a mediar um acordo de paz no país vizinho, acordo baseado nas premissas generosas do parágrafo anterior, aceitaria imediatamente a missão e colocaria todo o talento da nossa diplomacia para trabalhar. Atitude que mereceria o endosso firme e decidido dos brasileiros amigos da paz e da concórdia.

Ou seja, para o governo brasileiro parece haver situações em que a conveniência política pode deixar em segundo plano considerações que no terreno puramente moral (e mesmo legal, sensu strictu) seriam irremovíveis. Por sinal, qualquer governo age assim. Daí que desperte imediata desconfiança quando governantes vêm a público vender conveniências embaladas em papel de presente pintado com princípios morais.

Em resumo, a tese do imperativo (que se impõe sem discussão possível, segundo o Houaiss) moral não basta para que o governo Luiz Inácio Lula da Silva lance o Brasil num debate sobre a limitação do alcance da Lei de Anistia. O governo precisa esclarecer qual é a conveniência de fazer isso aqui e agora, enquanto no vizinho conflagrado defenderíamos exatamente o contrário, ampliar a cobertura da anistia, se fôssemos chamados a opinar.

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Fonte: Blog do Alon

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