sábado, 23 de agosto de 2008

O silêncio e o Estado Democrático de Direito

::

por Rizzatto Nunes
De São Paulo

Volto na coluna de hoje e agora um pouco mais espantado, a abordar o tema do Estado Democrático de Direito no Brasil. Se não tivéssemos passado por um longo período autoritário, no qual se cerceou brutalmente as liberdades, inclusive a de imprensa, vá lá, mas com nossa história que é conhecida de todos e tão recente, é mesmo de causar perplexidade verificar o desprestígio que o Estado de Direito goza nos meios de comunicação.

Já tratei desse assunto ao comentar a estranha reação no caso da adequada regulamentação do uso de algemas e também do cumprimento expresso da lei na questão das fichas sujas. Meu comentário hoje está relacionado ao fato ocorrido na semana passada envolvendo o empresário Daniel Dantas, que obteve liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) garantindo que ele não estava obrigado a responder às perguntas que lhe fossem formuladas na CPI dos grampos telefônicos.

Li e ouvi opiniões contrárias que são incompreensíveis e que, infelizmente, são capazes de desinformar a população a respeito das verdadeiras garantias constitucionais vigentes no país.

Como já disse antes nesta coluna, não há dúvida que a liberdade de expressão é um dos pilares das sociedades democráticas e, claro, a verdadeira babel de opiniões emitidas em todas as direções as mais diversas possíveis (e na atualidade transmitida e retransmitida via e-mail) é bem vinda.

Todavia, penso que, especialmente aqueles que têm alguma penetração no meios de comunicação deveriam ter um maior compromisso com a verdade, buscando se informar sobre do que realmente o tema trata, antes de falar qualquer coisa que possa acabar influindo no pensamento da população, mais obscurecendo o já difícil conhecimento que o brasileiro tem relativamente a seus direitos, que propiciando seu esclarecimento. É o caso do direito ao silêncio.

Esse direito é típico da tradição democrática. Nos Estado Unidos há um precedente condutor famoso conhecido como "caso Miranda". Em março de 1963, Ernesto Miranda foi acusado de crime de rapto e estupro e detido pela polícia. Depois de duas horas de interrogatório, os policiais obtiveram sua confissão que acabou levando à sua condenação em primeira instância, a 50 anos de prisão. Essa sentença foi confirmada pela Corte Estadual do Arizona com o argumento de que Miranda não teria pedido específica e objetivamente um advogado. Mas a Suprema Corte americana em 1966 anulou a decisão.

Os policiais que interrogaram Miranda admitiram em Juízo que não o haviam advertido de que poderia ficar calado e que ele tinha, além disso, o direito de ser ouvido na presença de um advogado. A Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu que os acusados têm o direito de receber o aviso de que podem ficar em silêncio e de que tudo o que disserem pode ser usado contra eles próprios. Ficou garantido também o direito dos acusados de serem acompanhados de um advogado durante o interrogatório.

É a mesma garantia estabelecida no Brasil e que está expressamente consagrada na Constituição Federal. Veja. Artigo 5º, inciso LXIII : "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

Sem me alongar na questão, anoto que a interpretação do texto constitucional leva à conclusão de que não só o "preso" tem direito de permanecer em silêncio, mas também qualquer acusado que não esteja preso.

Essa questão é induvidosa nos Tribunais brasileiros, sendo que o Supremo Tribunal Federal já decidiu inúmeras vezes que o acusado tem direito de permanecer em silêncio, inclusive perante as Comissões Parlamentares de Inquérito. Não há qualquer novidade nesse assunto.

É fundamental deixar claro para a população que o direito de permanecer em silêncio é assegurado a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, independentemente de classe social, formação pessoal, condição econômica etc. É direito assegurado aos ricos e aos pobres. Lamentavelmente, na semana passada, à guisa de comentar a liminar conferida ao empresário Daniel Dantas, parte do noticiário opinativo acabou dando a entender que esse direito é apenas assegurado aos ricos, uma distorção triste de se ver.

A construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito exige que se lute para que o sistema jurídico vigente tenha validade em todos os casos e para todas as pessoas. É papel dos meios de comunicação informar quais são esses direitos e não ficar dando a entender que eles valem apenas para um grupo de pessoas.

Se, realmente, um cidadão de menor poder social ou aquisitivo estiver sendo violado por quem quer que seja, digamos, por exemplo, no seu direito de permanecer em silêncio, então o caso deve ser denunciado. Não deve servir como fator ou argumento para se defender que outras pessoas não possam exercer esse direito.

Para mim, duas coisas preocupam nesse episódio: o desconhecimento de parte da mídia e das pessoas de um direito tão fundamental e a constatação de que ainda é necessário recorrer ao Judiciário para exercer esse direito.

Rizzatto Nunes é mestre e doutor em Filosofia do Direito e livre-docente em Direito do Consumidor pela PUC/SP. É desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Autor de diversos livros, lançou recentemente o "Bê-a-bá do Consumidor" (Editora Método). Coordena um site voltado ao Direito do Consumidor e à Defesa da Cidadania, no qual tem seu blog: www.beabadoconsumidor.com.br

Fonte: Terra Magazine

Fale com Rizzatto Nunes: rizzattonunes08@terra.com.br

::


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: