sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Três anos depois do Katrina, Nova Orleans ainda luta pela reconstrução

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Por Jordan Flaherty

Algumas organizações divulgaram relatórios na semana passada, examinando o estado actual da cidade, e activistas de base pretendem lançar a sua mensagem a partir das ruas. Para os que apenas ouviram histórias edificantes sobre a recuperação da cidade, os factos do terreno podem ser surpreendentes.

De acordo com um estudo do PolicyLink, 81% dos que receberam as doações do Road Home, um fundo federal administrado pelo Estado, receberam menos do que o necessário para reconstruir a sua casa. Ao beneficiário médio do Road Home faltou-lhe 35 mil dólares para o necessário para reconstruir a casa, e os lares afro-americanos tiveram uma defasagem maior, em média de 35%, se comparados com os lares brancos.

Mais de um em cada três endereços residenciais - sobre 70 mil - permanecem vagos ou desocupados, de acordo com um relatório do Greater New Orleans Community Data Center (Centro de Dados da Comunidade da Grande Nova Orleães). Ao mesmo tempo que os trabalhadores do projecto de Brad Pitt Make It Right (Fá-lo Correctamente) estão a laborar em ritmo acelerado para terminar a primeira das muitas casas previstas no muito devastado Lower Ninth Ward, o bairro continua a estar muito atrás de outros em termos de reconstrução, com apenas 11% do número de lares anteriores ao Katrina. O mesmo relatório observa que, desde a devastação da cidade, as rendas aumentaram 46% em toda a cidade (muito mais em alguns bairros), enquanto muitos serviços permanecem grandemente limitados - por exemplo, apenas 21% dos autocarros do serviço público de transportes estão a funcionar.

Cidade dividida

Não são só os activistas que falam de divisões de raça e de classe em Nova Orleães. Uma sondagem da Fundação Família Kaiser revelou que 70% dos residentes sentem que estão divididos por classe e ou por raça. A sondagem da Kaiser também encontrou unidade entre os habitantes de Nova Orleães: estão unidos em sentirem-se esquecidos pelo resto dos EUA. Oito em dez disseram que o governo federal não lhes deu suficiente apoio. Quase dois terços pensam que o povo norte-americano se esqueceu largamente da cidade.

A sondagem também revelou que grandes percentagens dizem que a sua situação se deteriorou. Cinquenta e três por cento de residentes de baixo rendimento dizem que a sua situação financeira é pior hoje que antes do Katrina. A percentagem de residentes que dizem que tiveram diagnosticada uma doença mental séria, como a depressão, triplicou desde 2006.

Existe um contínuo debate sobre quantas pessoas vivem em Nova Orleães, sem que haja dados definitivos até o próximo censo completo. Mas, no ano passado, o departamento de censo estimou uma população de 239 mil. Outros analistas - e o mayor (presidente da Câmara) C. Ray Nagin - estimam que a população é superior em cerca de 100 mil pessoas. Seja qual for a medida, o crescimento estagnou e mesmo os mais optimistas dizem que de 150 mil a 200 mil ex-residentes (de uma população anterior ao Katrina de cerca de 500 mil) não conseguiram voltar. A então cidade de cerca de 70% de afro-americanos tem hoje menos de 50% de afro-americanos, uma mudança que se reflecte nas políticas eleitorais no estado. Num momento em que os republicanos têm vindo a perder eleições nos Estados Unidos, o candidato da Coligação Cristã, Bobby Jindal, foi facilmente eleito governador no ano passado e, na cidade, décadas de um conselho de maioria negra foram substituídas por um novo conselho de maioria branca.

Quadro branco ou cemitério

Muitas das mudanças são lideradas por uma nova camada de população da cidade - planeadores, arquitectos, criadores e outros reformadores. Muitos deles auto-identificam-se como "YURPs" - Jovens Profissionais Urbanos e Reconstrutores - no seu trabalho em incontáveis organizações sem fins lucrativos, fundações e empresas. Alguns dos mais novos residentes de Nova Orleães falam da cidade como se fosse um quadro branco no qual podem projectar e praticar as suas ideias de reformas, seja no que se refere ao serviço de saúde, à arquitectura, ao planeamento urbano, ou à educação. As consequências desta visão, segundo alguns dos seus defensores, é que as pessoas que viviam antes na cidade, as mais afectadas por estas mudanças, têm menos direito de palavra sobre o seu próprio futuro. "Não era um quadro branco, era um cemitério", diz o poeta e educador Kalamu Ya Salaam. "As pessoas morreram, e estão a construir edifícios em cima dos seus ossos."

A grande maioria dos novos profissionais de Nova Orleães vieram com as melhores intenções, com um amor por esta cidade e um desejo de ajudar à sua recuperação. Contudo, muitos activistas criticam o que vêem como tentativas simbólicas de envolvimento na comunidade, e como uma atitude paternalista entre muitos dos novos decisores.

Por exemplo, o nosso sistema de educação estava em crise antes do Katrina, e certamente precisava de uma mudança revolucionária. Houve realmente mudança - mas a sua revolução foi esmagadoramente conduzida de fora, com poucas contribuições dos pais, dos estudantes e do staff do sistema escolar de Nova Orleães. Pouco depois da evacuação da cidade, o staff completo do sistema de escola pública foi despedido. Não muito tempo depois, o conselho de educação decidiu pôr fim às negociações com o sindicato dos professores - o maior sindicato da cidade, e comprovadamente a maior fonte de poder político da classe média negra na cidade. Desde então, o panorama escolar mudou marcantemente - do staff, à estrutura de decisores e às instalações. De acordo com o professor de Tulane Lance Hill, "Nova Orleães passou por mudanças profundas quanto a quem governa as escolas e uma dramática redução de controlo dos pais e dos contribuintes locais sobre as escolas".

O sistema escolar era constituído por 128 escolas, 124 das quais controladas pelo Conselho Escolar de Nova Orleães. Agora, de acordo com Hill, 88 abriram para o Outono, e "50 delas são escolas concessionadas (gestão privada) governadas por conselhos auto-nomeados e que se auto-perpetuam; 33 são geridas pelo departamento estadual de Educação através do Distrito de Recuperação Escolar; e apenas cinco são geridas pelo conselho escolar eleito."

"Existem hoje 42 sistemas escolares separados a operar em Nova Orleães", prossegue Hill, com as suas próprias "políticas escolares, incluindo requisitos para os professores, curricula, políticas de disciplina, limites de contratação e promoções sociais. As escolas que têm de prestar contas ao público, nas quais os pais têm forma de tornar públicas as suas queixas, são apenas cinco (5,6% do total)."

Vários artigos recentes expressaram entusiasmo e admiração pelo novo sistema escolar, incluindo extensos artigos no The New York Times e no New Orleans Times-Picayune. Para os reformadores escolares, que vieram a Nova Orleães com o desejo de tentar aplicar as mudanças que tinham imaginado, isto representa um sonho tornado realidade. Têm apoio dos média, têm funcionários federais, estaduais e municipais do seu lado, e um afluxo maciço de dinheiro e de trabalho barato (e jovem, e idealista). A organização Teach for America apoiou 112 professores no ano passado, comprometeu-se com 250 este ano, e projecta apoiar 500 no ano que vem, enquanto dezenas de milhões de dólares de fundos estão a chegar através de fontes como as fundações Gates e Walton.

Não há dúvida de que alguns estudantes recebem uma excelente educação nos novos distritos escolares de Nova Orleães, mas os críticos estão preocupados com os estudantes que estão ficar para trás, que são os que precisam de mais ajuda - os que não têm quem os apoie, quem os procure e os matricule nas melhores escolas. De acordo com o cidadão de Nova Orleães Kalamu Ya Salaam, director de um programa escolar chamado Estudantes no Centro, os novos sistemas representam "uma experiência de privatização, com tudo o que isso implica".

Apesar de novas escolas concessionadas terem podido escolher as melhores instalações e terem usado métodos como os testes padronizados para seleccionar os alunos (incluindo 40% de estudantes menos especiais), ainda há questões sérias sobre a extensão do seu tão proclamado sucesso. A G. W. Carver School, objecto de um artigo bajulador do The New York Times na última Primavera, teve um índice de reprovações de 88% em inglês e um e 86% em matemática nos testes padronizados do estado.

Aniversário e Comemoração

O aniversário da devastação da cidade, 29 de Agosto, cai entre as convenções democrata e republicana. Enquanto os partidos Democrata e Republicano coroam os seus candidatos, activistas no terreno estarão nas ruas, continuando a luta por uma reconstrução justa. "Não está a chover no desfile de Obama", diz Sess 4-5, uma estrela de hip hop e activista que vive em Nova Orleães, "mas as pessoas daqui precisam que o mundo compreenda que continua a haver uma situação trágica. As rendas triplicaram, o sistema de saúde está em ruínas, temos menos acesso à educação para os nossos filhos. A classe trabalhadora e os pobres estão a ser explorados, enquanto todos os de cima engordam com a nossa miséria."

"Achamos que o 29 de Agosto devia ser feriado, não um dia de trabalho normal", explica Sess, um dos organizadores da Marcha e Comemoração Katrina, que começa esta sexta-feira de manhã no Lower Ninth Ward, e se desloca para o 7º Ward. Esta marcha é um dos dois eventos organizados por activistas no dia; o outro é também uma marcha que começa na cidade alta, perto do BW Cooper development, um dos maiores complexos urbanísticos demolido este ano. "O Mayor anunciou ao mundo que Nova Orleães estava 'aberta aos negócios', mas nós viemos dizer que está fechada às famílias", declara a ex-residente de uma casa pública Barbara Jackson, que participa da manifestação na BW Cooper, chamada Sankofa Day of Commemoration. "Cinco mil casas demolidas. Oito mil novos lugares na cadeia. Este é o plano de substituição para nós."

Sair às ruas não é a única agenda dos activistas locais. Em Nova Orleães, as pessoas estiveram a organizar-se a partir da sociedade civil, trabalhando juntas para construir um movimento. Na sequência do Fórum Social dos EUA do ano passado em Atlanta, uma ampla coligação de organizações pela justiça social começou a fazer reuniões mensais para juntar esforços. Este grupo, chamado Organizers Roundtable (Mesa-redonda de organizadores), é um importante foco de colaborações e de construção comunitária.

Tem sido a comunidade, não as fundações ou o governo, que tem liderado a recuperação da sociedade civil desta cidade. Bayou Road - uma rua de negócios de proprietários negros, orientados para a comunidade no 7º Ward de Nova Orleães - foi reconstruída no pós-Katrina com mais negócios do que havia antes da tempestade. Não foi a ajuda do governo que permitiu o regresso destes negócios, mas o esforço conjunto dos membros da comunidade. Também foi o apoio da comunidade, e o apoio local, que trouxe de volta os membros de muitas organizações culturais, como a rede de Clubes de Ajuda Social de Prazer, que organizam desfiles de música tradicional ("second line") todos os fins-de-semana, assim como recolha de doações que entregam às escolas da área.

A Aliança Pelo Direito da Cidade (RTTC), uma coligação nacional de organizações que se dedicam a questões urbanas, como a saúde, à justiça criminal e à educação, considera a crise de Nova Orleães uma das questões centrais do seu trabalho. Está a co-patrocinar a marcha de Nova Orleães, assim como acções em sete outras cidades, incluindo Los Angeles, Nova York, Oakland, Providence, São Francisco, Washington, D.C. e Miami.

O trabalho da RTTC merece uma atenção especial, como uma coligação que trabalhou para apoiar as lutas do povo de Nova Orleães, e para trazer a luta e a solidariedade às suas próprias comunidades, colhendo ao mesmo tempo orientação das vozes no terreno. Nestes tempos de muitos visionários competindo por moldar de novo esta cidade, esta vontade de ouvir as pessoas cujas vidas estão a ser afectadas, e por levar essa luta e essas lições às suas próprias comunidades, pode ser a mudança radical que Nova Orleães mais precisa.

Jordan Flaherty é editor do Left Turn Magazine, e jornalista que mora em Nova Orleães. Recentemente, os seus escritos podem ser lidos na antologia "Red State Rebels", publicada este mês pela AK Press. Pode ser contactado pelo e-mail neworleans@leftturn.org.

Tradução de Luis Leiria

Fonte: Revista Fórum

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