domingo, 24 de agosto de 2008

O ATIVISMO JUDICIÁRIO

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Matéria de CartaCapital, 19/11/2007

O ativismo judiciário é sintoma dos impasses do Estado moderno

POR LEANDRO FORTES

Perdido em incontáveis escândalos, dominado por grupos de lobby e paralisado, sistematicamente, por CPIs montadas somente para alimentar disputas eleitorais, o Congresso Nacional tem cedido espaço para um vizinho da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Lá, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), 11 ministros têm ocupado, com decisões importantes para a vida do País e do cidadão, o vácuo legal deixado pelos 513 deputados e 81 senadores. Por isso, enquanto Câmara e Senado se debatem no jogo de chantagens em torno da aprovação da CPMF e o destino do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), o STF decide sobre as regras da vida partidária, o aborto, a união civil entre homossexuais e o direito de greve.

Mas nada - escândalos, lobby, CPIs de cartas marcadas - justifica o que vem ocorrendo. Agindo como um rolo compressor, os ministros do Supremo cruzam, com freqüência, a linha que demarca o território do Legislativo, como no caso da troca de partidos pelos parlamentares. É uma decisão danosa para o funcionamento das instituições democráticas. Em 1968, indiferentes aos conflitos da democracia que travava por anos votações importantíssimas para o País, os militares editaram o Ato Institucional n° 5, o AI-5, e resolveram tudo em tempo curto. A troca da farda pela toga não ameniza os danos.

Consagrado nos Estados Unidos, no início dos anos 1970, o conceito de "ativismo judiciário", sobretudo na mais alta corte do País, é resultado direto da mudança de perfil provocada pelos novos ministros do STF. Dos 11 magistrados, sete foram indicados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Até então, como herança de duas longas ditaduras - a de Getulio Vargas (1930-1946) e a dos generais (1964-1985) -, o Supremo acostumara-se a identificar os vazios legais deixados pelo Congresso, mas não se interessava em efetivar soluções. Isso apesar de existir, desde a promulgação da Constituição de 1988, o mandado de injunção.

Previsto no artigo 5° da Constituição Federal, o mandado de injunção é um instrumento legal, à disposição do STF, a ser concedido sempre que a ausência de uma lei torne inviável o exercício dos direitos e liberdades individuais. O mecanismo, uma das novidades da Carta de 1988, permite aos magistrados criar normas provisórias de maneira a suprir a ineficiência e a omissão do Poder Legislativo. Assim ocorreu, por exemplo, há duas semanas, quando o STF foi obrigado a legislar sobre o direito de greve dos servidores públicos. Os ministros decidiram impor ao funcionalismo as mesmas regras do setor privado. No caso, além de indicarem qual lei deveria ser aplicada, os juízes ainda acharam por bem criticar o Congresso por não ter, 19 anos depois de promulgada a Constituição, votado uma lei nesse sentido.

Ministro da safra petista no STF, Eros Grau é um entusiasta da aplicação do mandado de injunção, mas preocupa-se com as decisões do Tribunal tomadas sobre temas de vinculação direta com o Poder Legislativo. Para Grau, o limite do Supremo deve ser o texto constitucional. "Não pode, o Judiciário, ir além disso", afirma. Por essa razão, diz o ministro, é necessário se fazer uma clara distinção entre a autorização dada ao STF pelo expediente do mandado de injunção e o ativismo judiciário generalizado.

A intromissão do Judiciário no campo de decisões do Legislativo foi fortemente marcada, involuntariamente talvez, pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, por coincidência primo do ministro Carlos Britto, do STF. Ele aplaudiu assim a decisão do Tribunal, que estabeleceu a fidelidade partidária no País: "É o primeiro ato concreto da reforma política que vem sendo defendida pela OAB há anos".

As intervenções do Supremo encobrem as deficiências do Poder Legislativo

Um lapso surpreendente. Reforma política, boa ou ruim, é tarefa do Legislativo. Fora dali é usurpação de poder.

Não é por acaso que o ministro Marco Aurélio Mello, pelos votos e pelas palavras, é identificado no meio como o maior adversário político do governo Lula. Ocupa indevidamente o lugar de uma oposição desnorteada politicamente. Ela esperava desalojar Lula com o impeachment. Fracassou e não sabe como agir.

Há quem veja o risco, mas acha justo que se pague o preço. É o caso do juiz Rodrigo Calaça, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), tornou-se imperativo ao STF tomar posições diante da realidade do País, sobretudo por conta da omissão do Parlamento em relação à reforma política. "Nosso sistema político tem partidos demais, o que torna difícil o trabalho parlamentar", analisa Calaça. "Mas, nem por isso, a sociedade pode conviver com a omissão", diz. Segundo ele, a tendência do ativismo judiciário é crescer no Brasil, principalmente se houver maior popularização do mandado de injunção.

O momento catalisador do recente ativismo judiciário do STF, segundo consenso de políticos e magistrados, foi o julgamento do chamado "mensalão", realizado no fim de agosto, a partir do relatório do ministro Joaquim Barbosa. Ao transformar em réus os 40 denunciados, entre políticos e autoridades, pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, o Supremo inseriu-se, definitivamente, na política nacional. Dois meses depois, meteu-se na questão da fidelidade partidária. Para desespero dos políticos, definiu que o troca-troca de partidos deixaria os parlamentares sujeitos à perda de mandato.

No Senado Federal, onde a sanha por cassar Renan Calheiros virou, praticamente, a pauta única da Casa, a decisão do STF sobre fidelidade partidária serviu para recolocar o tema na agenda legislativa. A ação do Judiciário resultou na aprovação, poucos dias depois, de uma proposta de emenda constitucional (PEC), na qual se fixou o conceito de que os mandatos são dos partidos, não dos candidatos. A proposta ainda será analisada pela Câmara dos Deputados. "O Judiciário antecipou-se ao legislador", avaliou o ministro Celso de Mello, depois da votação tardia do Senado. No ano passado, o STF também havia se adiantado ao Parlamento e decidido, às vésperas das eleições, pelo fim da verticalização nas alianças entre os partidos.


UM SUPREMO DE CARAS NOVAS

Em quatro anos e meio de governo, Lula indicou sete ministros. Houve, com isso, uma mudança significativa no perfil político-ideológico do Tribunal:

Celso de Mello

Paulista de Tatuí, tem 62 anos e há 18 anos ocupa uma cadeira no STF, para onde foi por indicação de José Sarney. Ficou conhecido no Supremo por produzir votos durante as sessões do Tribunal.

Marco Aurélio Mello

Único ministro do STF indicado por Fernando Collor de Mello, de quem é primo, tem 61 anos, gosta de falar de forma empolada e, mesmo quando se trata de assuntos informais, adota uma linguagem barroca.

Ellen Gracie

Atual presidente do STF, foi a primeira mulher ministra. Foi indicada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Aos 59 anos, é considerada conservadora, inclusive pelos colegas.

Gilmar Mendes

Ex-advogado-geral da União do governo FHC (por quem foi indicado para o STF), o mato-grossense de 52 anos vive às turras com o Ministério Público.

Cezar Peluso

Ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, 65 anos, foi o primeiro ministro do STF indicado pelo presidente Lula, em 2003. Tem perfil conservador e corporativo.

Carlos Britto

Ex-filiado do PT, o sergipano Carlos Britto, 65 anos, é considerado a indicação mais partidária feita por Lula. Mantém, contudo, uma posição independente.

Joaquim Barbosa

Indicado por Lula, é o primeiro negro a ocupar o cargo de ministro do virou o ministro do STF. Aos 53 anos, virou ministro do "mensalão".

Eros Grau

Apontado como um dos grandes constitucionalistas do País. Eros Grau, 67 anos, é esquerdista e o mais ideológico dos ministros do STF.

Ricardo Lewandowski

Aos 59 anos, tem se firmado como um ministro técnico e contrário ao senso comum. Foi indicado pelo presidente Lula depois de consulta feita à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).


Carmem Lúcia

Indicada por Lula, é ex-procuradora do estado de Minas Gerais. Tem 50 anos e é a mais jovem ministra do Tribunal. É conhecida por atuar nas comissões da OAB e em movimentos pela reforma política.

Carlos Alberto Direito

Tem 65 anos. Antes de ser indicado por Lula ao STF, foi ministro do STJ, por 11 anos e extremamente católico, por isso mesmo apelidado de "carola" pelos colegas.

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Na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Arlindo Chinaglia (PT-SP), tem se mostrado tolerante com o ativismo do Judiciário. Em março, acatou a ação dos deputados interessados em desarquivar o requerimento de criação da CPI do Apagão Aéreo. Antes, o STF havia decidido pela instalação da CPI dos Bingos, no Senado. "Isso nada tem de interferência do Poder Judiciário nos assuntos do Legislativo", disse o deputado, após o desarquivamento autorizado pelo ministro Celso de Mello. "Os poderes devem ser harmônicos e devem se respeitar", prega o presidente da Câmara.

Presidente da Associação Nacional dos Juízes Federais (Ajufe), o juiz Walter Nunes da Silva Júnior acha positiva a ação do Judiciário nesses casos. "O ativismo é um movimento mundial irreversível", avalia. Segundo ele, a Constituição brasileira, por ser muito recente, ainda precisa ser consolidada em muitos aspectos, mas o Parlamento tem muitas dificuldades para levar esse trabalho adiante. "É razoável, portanto, que essas questões sejam enfrentadas pelo Judiciário", afirma. Para Silva Júnior, o caso da fidelidade partidária é emblemático. "Esse tema é reclamado pela sociedade há muitos anos, mas o Congresso nunca tomou uma posição."

O ativismo do STF não dá mostras de cansaço. Na semana passada, o Supremo decidiu julgar o ex-deputado, ex-senador e ex-governador da Paraíba, o tucano Ronaldo Cunha Lima, por tentativa de homicídio contra o também ex-governador Tarcísio Buriti, em 1993. Cunha Lima havia renunciado ao mandato de deputado federal, cinco julgamento, para perder o foro especial e se beneficiar com a morosidade do Tribunal de Justiça da Paraíba. No dia 6, o Tribunal decidiu julgá-lo assim mesmo. "Essa renúncia tem caráter de fraude", resumiu o ministro Cezar Peluso.

O STF só não iniciou o julgamento de imediato porque a ministra Cármen Lúcia pediu vistas ao processo com o objetivo de dar mais tempo aos colegas de avaliar os autos.

Comparato: "A função do STF é preservar o espírito da República e da democracia"

"A função do STF é corrigir os desvios graves do Estado de Direito, de modo a preservar o espírito da República e da democracia", afirma Fábio Konder Comparato, presidente da Comissão de Defesa da República e Democracia da Ordem dos Advogados do Brasil. Segundo ele, isso tem sido feito com base nas normas de princípio presentes na Constituição. "Não vejo abusos por parte do Supremo", diz. Para ele, é preciso apenas evitar abusos de procedimentos e garantir a aplicação correta do texto constitucional.

Para o jurista Dalmo Dallari, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, a maior presença do Supremo no cenário político, hoje, é conseqüência de "falhas graves" do Poder Legislativo. "O Legislativo é omisso, muitas das leis criadas são inconstitucionais, e decisões são tomadas por critérios políticos, em função de interesses imediatos", avalia Dallari. Segundo ele, a mudança na composição do STF, a partir do governo Lula, fez o Supremo mudar de atitude. "Essa atuação do Supremo terá reflexo no Legislativo e os políticos vão perceber que é preciso levar mais em conta a Constituição", diz o jurista.

Fonte: Vi o Mundo

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