terça-feira, 12 de agosto de 2008

O bloco dos napoleões retintos

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O Brasil mudou, e nossos militares têm de se preparar para estar ao lado do povo, defendo nossas águas, fronteiras e nossa soberania nacional. As Forças Armadas têm de sepultar de vez a era do entreguismo, banir de sua farda velhas medalhas conquistadas com a humilhação de seus irmãos de sangue, em nome da submissão aos interesses escusos de outros países e “senhores”.

“Que o senhor ministro da Justiça ou desapeie do cavalo ou monte direito, porque, se não, nós vamos tirá-lo de lá! Ou ele sai por voto ou sai porque nós vamos para a praça pública e para a frente do Palácio do Planalto!”. Dirigidas ao ministro Tarso Genro, as ameaças feitas pelo ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Waldemar Zveiter deram o tom _ entre o ultrajante e o burlesco _ da pajelança realizada quinta-feira (7) no Rio de Janeiro por militares e simpatizantes que se sentiram ofendidos quando Tarso defendeu punição para aqueles que praticaram crime de tortura durante a ditadura militar brasileira.

Com seus assentos tomados em maioria por militares da reserva e figurões da velha guarda, o salão nobre do Clube Militar pareceu voltar ao passado. Talvez tenha sido essa sensação de volta aos “bons tempos” o que permitiu a montagem de um circo que lembrou a ditadura. Ao microfone, o general da reserva Sérgio Augusto Coutinho, aparentando excitação juvenil, leu para os presentes as “fichas” de Tarso e também do secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, outro que defendeu punição para os torturadores.

O “elemento” Tarso participou da ala vermelha do PCB e já foi obrigado a depor por duas vezes no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS): “Ainda assim, não temos justificativas para classificá-lo como terrorista”, disse o inspirado general Coutinho. O “elemento” Vanucchi, segundo sua “ficha”, seria ainda mais suspeito, pois no passado teve participação direta em reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização com “influências terroristas”.

Ah, se ainda estivéssemos nos “bons tempos” a caçada aos dois “elementos” começaria imediatamente. Como, desafortunadamente, eles agora são ministros de Estado, a ação dos velhos falcões de pijama veio em forma de notas e contundentes declarações: “A proposta de Tarso Genro e Paulo Vanucchi é maléfica”, disse o presidente do Clube Militar, Gilberto Figueiredo. Em nota conjunta, os clubes Militar, da Marinha e da Aeronáutica afirmaram que a iniciativa dos ministros é “extemporânea, imoral e fora de propósito”, além de “um desserviço prestado ao Brasil e, com certeza, ao próprio governo a que pertencem”.

O leve tom de ameaça presente no documento e o desrespeito sugerido pela leitura das “fichas” dos ministros geraram uma bola de neve que inspirou intervenções dantescas na platéia, com destaque para a ameaça de golpe que abre este artigo. Entre os figurões presentes ao ato, estavam os ex-ministros do Exército Zenildo Lucena e Leônidas Pires Gonçalves.

Estrela involuntária do evento, também marcou presença o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi chefe do DOI-Codi na cidade de São Paulo. Apontado por diversos grupos de defesa dos direitos humanos como responsável por torturas e assassinatos durante a ditadura, Ustra é alvo da ação civil pública que suscitou as palavras de Tarso e de Vanucchi a favor da punição para os torturadores.

Forças (mal) Armadas

Enquanto as velhas bruxas demonstram sua indignação, na vida real o comando das Forças Armadas tem coisas muito mais sérias com o que se preocupar. A começar pela carência de recursos ou pelo sucateamento de nossas armas e equipamentos num momento em que uma certa tensão começa a tomar conta da América Latina graças à presença da IV Frota Naval dos Estados Unidos (e seus mísseis nucleares) logo ali após a arrebentação.

Assim que foi confirmada a reativação da IV Frota o comandante da Marinha, almirante Júlio Soares de Moura Neto, procurou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para dizer que a força “não tem condições de cumprir suas atribuições constitucionais”. Concretamente, o almirante disse ao presidente que, se os EUA resolverem bloquear passagens de barcos ou até mesmo entrar em nossas águas territoriais, a Marinha não terá muito o que fazer.

Moura Neto lembrou que o mar territorial do Brasil tem uma área de 3,5 milhões de quilômetros quadrados, sem falar na nova área marítima de 950 mil quilômetros quadrados que está sendo reivindicada pelo governo brasileiro: “É preciso fazer o patrulhamento da costa brasileira, e a Marinha não tem atualmente embarcações para realizar essa tarefa”, disse. Outro problema _ que se estende também ao Exército e à Aeronáutica _ é a carência de recursos orçamentários. Este ano, o orçamento da Marinha é de R$ 1,5 bilhão, verba equivalente à manutenção anual de dois porta-aviões dos EUA.

A IV Frota vem aí

Que Deus proteja o nosso pré-sal, não é mesmo? Católico, o ministro da Defesa, Nélson Jobim, participou na semana passada de um encontro com o chefe do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, James Starvidis, para ouvir deste aquilo que a muita gente já desconfiava: as razões da reativação da IV Frota não são “nem humanitárias nem de combate ao narcotráfico”.

Starvidis disse a Jobim que o objetivo da IV Frota é “reforçar a segurança no Atlântico Sul” e que com a “instabilidade permanente” no Oriente Médio, os EUA, pasmem, querem “proteger” as reservas de petróleo brasileiras. Com a descoberta do pré-sal, segundo Starvidis, “o Brasil poderá até mesmo substituir a Arábia Saudita como principal fornecedor de petróleo aos EUA”.

É de apavorar, mas nosso ministro da Defesa voltou ao Brasil sem fazer qualquer pronunciamento sobre esse assunto. Preferiu atuar como bombeiro na contenda entre a velha guarda militar e os ministros Tarso e Vanucchi. Disse, lembrou e reiterou que “a Lei de Anistia é para todos” e que não se deve mexer nesse lodaçal. Sobre a IV Frota, nenhuma palavra.

Novo sentido

Cabe ao ministro, ao governo e, sobretudo, aos comandantes da ativa utilizarem esse momento para dar às nossas Forças Armadas um novo sentido histórico. Que os jovens oficiais e comandantes espalhados pelo país lutem por melhorar suas condições de treinamento e combate, lutem por equipar Exército, Marinha e Aeronáutica para defender de fato o país se isso for preciso.

O Brasil mudou, e nossos militares têm de se preparar para estar ao lado do povo, defendendo nossas águas, fronteiras e nossa soberania nacional. As Forças Armadas têm de sepultar de vez a era do entreguismo, banir de sua farda velhas medalhas conquistadas com a humilhação de seus irmãos de sangue, em nome da submissão aos interesses escusos de outros países e “senhores”.

A punição aos militares torturadores da ditadura deve acontecer, sim, porque tortura não é crime de guerra. Se a simples menção a essa lógica provoca nas velhas bruxas tantas reações iradas e ameaças, que ao menos isso sirva para mostrar à sociedade o quão distantes estão hoje em dia estas figuras dos verdadeiros anseios e desafios de nossas Forças Armadas.

Maurício Thuswohl é jornalista.

Fonte: Agência Carta Maior

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