Por Paulo Lima
Eu deixei de ser um homem isolado ou, para os antropólogos, pertencente a um povo isolado. Isso em parte, porque desde menino tenho quase fascinação por rádios, ondas curtas, radioamadorismo, propagação, antenas etc. Com o tempo, acumulei algum conhecimento sobre o assunto e, em razão disso e de estar no lugar certo na hora certa, acabei recebendo o convite para avaliar a implementação de um sistema de comunicação via rádio junto aos zoés.
Não se trata de uma viagem trivial. É preciso pegar um avião monomotor e, depois de uma hora de bastante emoção, pousar numa pista de pouso de chão batido, na Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema. Lá está a vida dos zoés, um grupo indígena de cerca de 250 pessoas que preserva em muito as suas tradições e modo de viver.
A reserva etnoambiental fica nos municípios de Óbidos e Alenquer, a 253 quilômetros de Santarém, Pará. Não existe acesso fluvial, só aéreo ou depois de dias de pernada, como se diz entre os indigenistas. Na reserva, só se pode entrar com autorização da Funai e o que você faz lá dentro é acompanhado de perto pelo coordenador do posto, João Lobato, e pelos cinco funcionários da Funai. Lobato, aliás, é uma figura de grande importância na manutenção da cultura zoé e no controle dos contatos deles com a cultura ocidental. Voltarei a falar dele mais adiante.
Os zoés tiveram contato “oficial” com os não-índios em meados da década de 1980. São caçadores, coletores e cultivam a mandioca. No primeiro momento, quando você sai do apertado monomotor, os zoés logo se aproximam, curiosos para saber quem são os visitantes e o que trazem. Já nesse primeiro contato a sensação é de descoberta de uma estética e uma forma de se relacionar impactante. Os zoés são grandes, porte físico bem definido e uma enorme facilidade em sorrir. Os adornos que usam abaixo do lábio inferior são a sua marca étnica e são gradualmente colocados como alargadores a partir da segunda dentição. Chamam-se m’berpót e são feitos a partir de uma árvore nativa, o poturu.
Não usam vestimentas, apenas um laço no pênis e as mulheres uma tiara. Aparentam o que se pode imaginar como um estado de constante felicidade. A curiosidade é maior que tudo e as primeiras perguntas são acompanhadas do toque daquilo que é incomum a eles. O tato sobre minha farta calva é diversão na certa.
Os zoés têm uma especial curiosidade sobre a família ou sobre como nos organizamos como agrupamentos. Os funcionários da Funai possuem algum domínio do idioma, já o coordenador do posto tem um conhecimento bastante aprimorado e a todo instante negocia temas dos mais comezinhos a questões complexas, como o contato com os índios wai-wais que tentam levar a mensagem missionária evangélica para dentro da reserva.
As perguntas aos visitantes, ainda no caminho até a sede da Frente, continuam. Na língua deles, querem primeiro saber seu nome. Ao ouvi-lo quase todos que estão por perto o repetem. Como os orientais, têm dificuldades de pronunciar o som da letra “l”, daí que ouvi muito, “Pauro, Pauro, Pauro”, acompanhado por um abraço ou uma mão de criança sugerindo caminhar junto. Depois, vem o interesse sobre esposa e filhos. Sempre riem quando a resposta é uma esposa ou um filho só. Aplicada a pergunta a eles, tanto homens como mulheres respondem muitas vezes três para maridos ou esposas e cinco, com muito orgulho na expressão, sobre filhos. Os zoés quando contatados eram 133 em 1991.
Cores, flechas e adornos
A curiosidade e a liberdade com que vivem no contato com a natureza e com seus corpos é igualmente desafiadora para quem traz as culpas e as travas da religião. As cores com que algumas vezes se pintam (como algumas mulheres completamente cobertas com o vermelho de urucum) impressionam pela beleza e graça. João Lobato, coordenador da Frente há cerca de 12 anos, orienta o visitante sobre o comportamento que devemos ter entre os zoés. Entrega duas páginas impressas com um conjunto de “mandamentos” para a fruição, sem danos, da cultura, modo de viver e desenvolvimento daquela gente.
A Frente tem um cuidado paisagístico impressionante. Lobato e sua equipe fizeram, ao longo desse tempo, intervenções que surpreendem o olhar de um observador que tinha a expectativa de condições precárias que se imagina para populações isoladas. Tudo é de muito bom gosto. Depois de ter ganho o dia com a caça, os índios ficam sentados no chão, conversando entre si e sobre o tema de nossas famílias durante algum tempo. Às vezes são uns 40 ali, no entorno da sede da Frente, brincando com sua barba ou querendo entender porque a mulher branca esconde o seio.
As flechas dos zoés são ricamente decoradas e devem ter alto grau de precisão, já que na região se encontra com certa facilidade pacas, tatus, porcos-do-mato e macacos. No fim do inverno, começa a temporada de caça aos macacos, que nessa época estão mais bem alimentados. Em abril, saem para caçar urubu-rei e, em caso de fracasso, os homens ficam em maus lençóis. Isso porque toda mulher usa tiaras feitas de penas de urubu-rei e a renovação do estoque de penas é tema crucial da afirmação masculina nas relações conjugais.
As crianças, com cinco anos, já começam a brincar com os seus arcos e sabem manejar facas para afiar as flechas. E surpreendem a cada momento com sua capacidade de aparecer e desaparecer de um segundo para o outro. Logo quando surgem, repetem seu nome e fazem caretas, como que convidando para brincar. Sentam no seu colo e gostam de ouvir os nomes em português das partes do corpo em seguida do toque de seus dedos. Não é para aprender as palavras porque logo voltam a tocar na ponta do seu nariz ou puxar a sua barba e cair na risada. A calva é a parte do corpo mais demandada, entre carinhos, beijos, tapas e tentativas de beliscões.
O contato com a religião
A sociedade zoé é poligâmica e poliândrica. Como nos diz Rosa Cartagenes, indigenista, “o casamento poligâmico, tanto masculino quanto feminino, é um dos pilares fundamentais da extensa rede de alianças entre os diversos grupos familiares, com relevância para a poliandria, que entre os zoés é altamente estimulada e desejável socialmente como esteio das relações familiares e políticas. Ressalte-se que entre os zoés a poliandria não é eventual nem apenas ‘tolerada’ como mecanismo de equilíbrio demográfico.” O mais interessante é a relação com os filhos. Uma mulher pode ter filhos de outros maridos, mas os seus filhos são igualmente filhos dos pais dos irmãos. Ou seja, uma criança zoé é cuidada por dois ou três pais, por exemplo.
Outro tema muito importante para entender a complexidade do universo zoé é a ausência de hierarquia. Não existem pajés ou caciques. O contato com os índios wai-wais, que vez por outra invadem a reserva, é uma das principais fontes de tensão na área. Os wai-wais são contatados há muito tempo e têm relações com missionários evangélicos. Na Funai, há 54 missões religiosas cadastradas, mas o número pode ser maior, já que muitos missionários conseguem se infiltrar entre os indígenas, sem o conhecimento do órgão.
Para exemplificar o problema, basta conhecer a que se propõem as grandes missões internacionais evangelizadoras. A Jovens com uma Missão (Jocum) está no Brasil desde 1960 e mantém centenas de missionários espalhados pelo país, levando a idéia de família monogâmica, da necessidade da vestimenta e de hierarquia, já que é mais fácil controlar um agrupamento social controlando e negociando com um só líder.
Outras missões importantes são a Missão Evangélica aos Índios do Brasil (Meib), organizada em 1967, que tem o objetivo de expandir o evangelho de Jesus Cristo, promover o estudo da Bíblia e a educação em geral, praticar a beneficência e organizar igrejas entre a população indígena. Há ainda a New Tribes que é uma das maiores missões evangélicas em atuação no Brasil e está presente em 47 aldeias de todas as regiões do país. Na luta contra essa distorção da tradição cultural zoé, João Lobato é um resistente, até o momento com muito sucesso, com seu estilo próprio e obstinado.
Para tentar entender o que se está fazendo na Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema é preciso rever a perspectiva com que você leu este texto. Posso ser entendido como católico que somente cita os evangélicos como vetor de problemas para a “harmonia” política e cultural dos zoés. Não é fato, nessa reserva especificamente há muito tempo não existe contato com missões católicas, como o Conselho Indigenista Missionário. Mas sim, concordo com a intervenção do Estado na gestão do isolamento dos zoés como fundamental para sua preservação e me encanto pelo trabalho lá feito no campo da saúde indígena.
A preservação daquela cultura e daquele modo de viver é dever do Estado brasileiro. A identidade cultural brasileira é também zoé, por mais que nosso comportamento globalizado e ocidental a negue. O suspiro de originalidade que eles representam precisa ser ressignificado para o que é ser brasileiro. E, se ser brasileiro for também ser zoé, ser brasileiro há de ser melhor.
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