segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A dignidade de Allende

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por Emir Sader

Mais de uma vez eu ouvi Salvador Allende utilizar duas citações de sua preferência. Uma de um poema de Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar". A outra, a dedicatória do Che em um livro que este lhe deu de presente: “Para Salvador, que luta por outros meios pelos mesmos objetivos”. A combinação de ambos permite perceber como Allende dedicou sua vida política à busca de um novo caminho estratégico para a esquerda.

Um caminho que ele mesmo tinha ajudado a construir quando, como jovem médico, foi ministro da Saúde do governo da Frente Popular, no final dos anos 30 do século passado. Um caminho que tinha se iniciado muito antes, em 1830, com uma continuidade institucional inédita não apenas no nosso continente, que só foi interrompida em 1891 e entre 1927 e 1931, antes do golpe de 1973, em processos de alternância, que fazia crer que o vencedor nas eleições poderia cumprir seu mandato. Foi acreditando nessa legitimidade institucional que Allende se propôs liderar um processo de transição institucional ao socialismo.

Ele não poderia imaginar a cena final do golpe militar, com Allende cercado no Palácio de La Moneda, bombardeado por aviões, empunhando um fuzil soviético que lhe havia presenteado Fidel e capacete recebido de trabalhadores mineiros chilenos. Era o último homem a defender a democracia, entregando a vida pelo mandato que havia jurado cumprir até o final ou morrer na sua defesa.

Sua tentativa era difícil, porque foi eleito com um programa anticapitalista, que se centrava na nacionalização dos 150 maiores conglomerados econômicos, recebendo porém apenas 34% dos votos. Ao não conseguir incorporar um setor significativo da esquerda da Democracia Cristã, o bloco socialista-comunista ficou isolado, conseguiu, pouco meses antes do golpe, depois de um brutal campanha interna e externa contra, 44% dos votos. A alternativa que tinha Allende era a de tentar avançar o programa socialista com o qual tinha sido eleito ou abandoná-lo, por não dispor de maioria, porém traindo os votos que o tinham eleito.

Allende pretendia que o executivo conquistado na eleição, introduzisse uma cunha no aparato de Estado, que permitisse ir ampliando-se, gerando um instrumento de poder de transformação anticapitalista. O que aconteceu foi o contrário: Allende foi cercado e afogado dentro do aparato estatal, pelas outras instâncias – o Parlamento, o Judiciário, a burocracia e as Forças Armadas.

O golpe militar de Pinochet encerrou a longa tradição democrática chilena, com a ditadura militar destruindo o movimento popular e a institucionalidade do país, em todas as suas dimensões. De símbolo de um projeto de transição democrática ao socialismo, o Chile passou a ser exemplo mundial de regime de terror. E o país, que era um dos menos desiguais no continente, passou a ser aproximar do pólo oposto, tornando-se um dos mais injustos.

Os 100 anos do nascimento de Allende merecem ser comemorados pela dignidade da sua vida e da sua luta.

Fonte: Blog do Emir Sader

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