por Ivana Bentes
Custou, mas apareceu, o "manifesto" dos Publicitários, se dizendo ameaçados pela tentativa de regulamentação da publicidade por parte dos órgãos de defesa do consumidor e da saúde pública.
A retórica e estratégia são conhecidas: qualquer tentativa do Estado de regular a mídia, seja a faixa etária indicativa de programas na TV, seja a veiculação de publicidade de cigarros, bebida alcoólica, gordura trans ou uma cota de filmes brasileiros na TV, qualquer movimento social que ameace os lucros exorbitantes da publicidade e a liberdade de empresa, são considerados "censura" e "ataque a liberdade de expressão".
Em nova embalagem, a velha retórica. De forma grosseira, as emissoras de TV já tinham veiculado anúncio dizendo que o governo queria "tirar o direito do telespectador de escolher seus programas", diante da proposta em votação no Congresso de uma cota para conteúdo brasileiro nas TVs a cabo.
Como se os pacotes com enlatados e programas comprados pelas emissoras tivessem algum grau de "escolha" e participação do espectador, obrigado ainda a levar no pacotão que compra uma porcentagem de lixo cultural adicional.
Mas o manifesto dos publicitários vai mais longe. Faz uma inversão ainda mais espetacular ao esvaziar totalmente o lugar de poder que está nas mãos (o zapping é um deles) da audiência e do público. O verdadeiro "produto" que é "vendido" para os anunciantes a peso de ouro e que sequer é mencionado no texto.
O manifesto tenta nos convencer do contrário. Não, não é a audiência e o espectador, o público, e a sociedade, nós, que sustentamos o mercado e a mídia e sim "a publicidade" em si. São eles, os mediadores, os publicitários, diz o manifesto, os verdadeiros protagonistas dessa história.
Transformados em arautos da democracia e da "livre expressão", os publicitários defendem no seu manifesto que "é a publicidade que viabiliza do ponto de vista financeiro a liberdade de imprensa e a difusão de cultura e entretenimento para toda a população. É a publicidade que torna possível a existência de milhares de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, assim como de outras expressões da mídia." (!!!)
Ou seja, para os publicitários estamos num cenário em que os mediadores são os protagonistas todo-poderosos da sociedade! Para eles, é a publicidade o esteio da democracia e não o contrário, a radicalização da democracia que vai democratizar inclusive a publicidade corporativa! Que vende quase qualquer coisa, que cria necessidades, fidelidades, hábitos e valores, estilos mais ou menos predadores...É essa publicidade que quer se "auto-regulamentar"?
Os publicitários escamoteiam que é o espectador, a audiência, o público, a sociedade que produz valor simbólico e real, conteúdos, opiniões, produtos, mídia, inclusive de graça e de forma colaborativa, hoje, com as novas formas de produção e difusão da cultura livre pós-internet, produtos que podem ser acessados diretamente, sem a mediação da publicidade tradicional, inclusive!
O manifesto dos publicitários não discute o que poderia ser uma publicidade democrática ou com objetivos "públicos" e não simplesmente predadora ou visando o lucro imediato.
Também sequer cogitam a emergência de uma série de movimentos e ativistas que batalham no campo do consumo. Exigindo rótulos explicativos e indicativos dos venenos que ingerimos e que a publicidade vende sob um lindo design e letras miúdas.
Movimentos que exigem saber a origem da mão de obra de certos produtos, a forma de produção, a origem natural ou modificada, transgênica ou não, com ou sem agrotóxicos, etc. Ou seja, a liberdade de sabermos o que afinal ingerimos, calçamos, vestimos, lemos, vemos, consumimos.
Movimentos que mostram que o preço embutido da publicidade encarece os produtos de forma exorbitante! O que também não é dito no manifesto, ou seja, que somos nós que pagamos a própria publicidade que consumimos.
Incutindo o medo. Com décadas de atraso em relação a outros países, e apesar do lobby poderoso, a propaganda de cigarros foi proibida na mídia brasileira. O que não levou a falência nem as emissoras de TV e jornais nem as fábricas de cigarros (que passaram a apoiar Festivas de música e produtos culturais).
O fim da propaganda de cigarro também não levou a uma diminuição da "liberdade de expressão" de ninguém, quem quer fuma, mas diminuiu-se sim os riscos de câncer de pulmão em nível planetário.
Agora a batalha é proibir a publicidade de bebidas alcoólicas, sendo o alcoolismo uma epidemia no Brasil de ricos e pobres. Ninguém deixará de tomar sua cerveja, cachaça, vinho, whisky, o que for, mas sem dúvida o consumo será balizado por outras forças que não simplesmente o bombardeamento diário da publicidade ostensiva e reiterativa.
Ao neutralizarem a força do consumidor e se colocarem na "origem" da liberdade de expressão e como fonte primordial de sustentação da mídia democrática, os publicitários fazem uma peça de marketing ruim e corporativa, distorcida.
Esquecem, que o telespectador e a audiência, o público, o "prossumidor" (o consumidor que se tornou produtor e publicista) está mobilizado e é a nova forca de transformação no capitalismo midiático e imaterial.
A Mídia somos nós, a liberdade de expressão não tem nada a ver com propaganda de cerveja ou de gordura trans! Mesmo parados diante da TV estamos trabalhando para a audiência. O poder de consumo, de produção, criação e difusão está em toda a sociedade. É a sociedade que deve ser emponderada! Ao invés da defesa incondicional da "perenidade" do mercado publicitário, principalmente num capitalismo da abundância e da emergência da economia da gratuidade.
O estágio atual é de politização do consumo! Não precisamos de manifesto de publicitários defendendo sua corporação e propondo "adequar" os Cursos de Comunicação as suas exigências, adestrando os jovens a um complexo industrial/publicitário em crise. Quando precisamos de uma nova publicidade, de democratização, colaborativa e feita pelo próprio consumidor.
O que falta são mais movimentos de consumidores, de telespectadores que pudessem exigir, opinar, protestar e pressionar os fabricantes de produtos e os publicitários. Algo que o anonimato e a impessoalidade da audiência não estimulam.
Como dar credibilidade a um manifesto que apaga o consumidor como fonte de poder e valor e colocar no seu lugar...os publicitários, ou que demoniza o Estado que quer regular e restringir certas propagandas?
O Manifesto dos Publicitários se torna uma jogada de marketing ruim, pois:
Para os publicitários, não existe comunicação sem publicidade!
Para os publicitários, a proibição de anunciar bebida alcoólica vai levar a mídia a falência!
Para os publicitários, sem a publicidade não existe "liberdade de expressão"!
Para os publicitários, para não "desaquecer" o mercado não se pode intervir nem restringir certos anúncios, como o de "bebidas alcoólicas, remédios, alimentos, refrigerantes, automóveis, produtos para crianças, entre outras".
Seria o equivalente a dizer que para não "desaquecer" o mercado de drogas não se pode intervir no sistema de venda, de tráfico de armas e de corrupção existente. Pois esse é um mercado aquecidíssimo e que movimenta zilhões, sem publicidade!
"Seria demais pedir a um anunciante que proponha o desestímulo ao consumo", nas palavras de Gilberto Leifert, presidente do Conar, ao vender o texto, ou melhor, a publicidade dos publicitários. Perfeito, é essa a lógica do Manifesto!
"O objetivo central é sempre o fortalecimento da indústria da comunicação", completa o texto, ou seja, a manutenção de um mercado publicitário "perene" a qualquer custo. A mesma lógica "desenvolvimentista" que ainda é dominante na política, apesar de ultrapassada e discutível.
Os publicitários querem criar uma confusão entre as liberdades individuais, o "risco escolhido" (consumir, viver e morrer, ter prazer fumando cigarro, ingerindo gordura trans, bebendo ou usando drogas leves e pesadas, por vontade própria), a "liberdade de expressão" (que tem a ver com a possibilidade da pluralidade e da autonomia) e capturam a defesa legítima dessas liberdades com a sua defesa de "liberdade comercial", mesmo que essa liberdade das empresas afronte a saúde pública e a construção do comum.
É muito preocupante que os publicitários transformem a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Congresso em inimigos públicos número um dos publicitários! Ou seja, o que está sendo descartado são as questões de saúde pública! E a construção do interesse "comum".
Estranhamente os publicitários não falam em democratizar as verbas públicas destinadas as suas empresas e que são repartidas entre uns poucos veículos de comunicação. Essa repartição pouco democrática do bolo nem sequer é mencionada. Ou seja, o Estado só incomoda quando quer regular para todos, não quando privilegia poucos.
O manifesto dos publicitários que ganhou ampla repercussão na própria TV, em horário nobre, teve dois garotos propaganda de peso, um Civita e um Marinho, donos de corporações de mídia e TV, com seus ternos cinzas, voz monocórdia e rosto descansado, adentraram a nossa casa, pela concessão pública que lhes demos, para fazer a sua própria publicidade e anunciar essa estranha contrafação.
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Outros Links:
Fórum de Mídia Livre
Artigo de Karina Grou, Coordenadora de Ações Judiciais do Idec
Fonte: Carta Capital
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