segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Conflitos por terra atentam contra direitos humanos no Brasil

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Foto: Dorothy Stang, missionária assassinada no Pará.

OFENSIVA CONSERVADORA (matéria originalmente publicada em 09/05/2008)

Conflitos por terra atentam contra direitos humanos no Brasil

Atentado contra indígenas, absolvição de mandante do assassinato de Dorothy Stang e humilhação e destruição de acampamentos de trabalhadores sem-terra sinalizam retomada de onda radical de violações de direitos humanos.

SÃO PAULO – Essa semana o Brasil se chocou com a absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos Moura, o Bida, acusado de ser o mandante do assassinado da missionária Dorothy Stang em 2005. Dorothy era conhecida por seu trabalho em defesa da reforma agrária, pelo reflorestamento de áreas degradadas e pelo trabalho na minimização dos conflitos do campo no estado do Pará. A absolvição de Vitalmiro acontece na mesma semana em que indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol são atacados e baleados por capangas supostamente contratados por outro fazendeiro, Paulo César Quartieiro, desta vez do estado de Roraima. Quartieiro, que também é prefeito de Pacairama, foi preso pela Polícia Federal.

A absolvição de Vitalmiro contrariou as expectativas de organizações não-governamentais, movimentos sociais e representantes políticos que acreditavam na condenação. Bida havia sido condenado em primeiro julgamento realizado em maio de 2007 a uma pena de 30 anos, mas foi absolvido pelo júri no segundo julgamento realizado na última terça-feira, 6 de maio. O fazendeiro teve direito a novo júri porque a pena anterior ultrapassou os 20 anos.

A morosidade da Justiça em processar os responsáveis e ouvir as testemunhas foi preponderante para o desfecho do caso e para a construção da impunidade. É o que aponta Sandra Carvalho, da organização Justiça Global, uma das principais entidades de defesa dos direitos humanos no país. “Houve tempo para que os mandantes cooptassem os pistoleiros, oferecendo vantagens financeiras e também com advogados”. Só para se ter uma idéia, o pistoleiro Rayfran das Neves, o Fogoió, - condenado a 28 anos de prisão - mudou seu depoimento 14 vezes ao longo do processo.

Segundo acompanhamento feito pela Justiça Global, já há indícios suficientes que comprovam a existência de um “consórcio de fazendeiros para encomendar este tipo de crime”. Para Sandra, estamos vivendo “momentos difíceis em que há um acirramento dos conflitos por terras”, causado, sobretudo, por políticas econômicas voltadas ao fortalecimento do agronegócio e à morosidade da Justiça em fazer demarcação de terras para a reforma agrária e titulação de terras indígenas e quilombolas.

Defensores dos direitos humanos no Pará temem pela naturalização da violência ocasionada pela impunidade. O assassinato da irmã Dorothy não é um caso isolado de assassinato de trabalhadores sem-terra e defensores dos direitos humanos no país.

Segundo o relatório dos Conflitos no Campo do Brasil, promovido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2007 foram mortas 28 pessoas em conflito por terra no país, em 2006 foram 39 mortes, sendo 24 somente no estado do Pará. De acordo com a CPT, existem hoje 75 pessoas (com nomes listados) sofrendo algum tipo de ameaça no estado. Além de trabalhadores rurais, a lista conta com lideranças sindicais e comunitárias e religiosos, como o caso do Padre Amaro, coordenador da CPT em Anapu, Dom Erwin Krautler e Frei Henri Roziers, esses dois últimos com proteção policial 24 horas.

Em Roraima, os conflitos se intensificaram com o atentado contra os indígenas ocorrido no dia 5 de maio. Nesta quinta-feira (08), foram suspensas as aulas em todas as escolas indígenas do estado. Os indígenas também realizaram protestos, com o trancamento da Rodovia BR- 318, principal via de escoamento de arroz e insumos. Eles alegam que o governo de Roraima usou argumentos falsos para conseguir a liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu a Operação Upatakon 3, realizada pela Polícia Federal para retirar não-índios da reserva - incluindo arrozeiros proprietários de terras.

A liminar foi concedida sob a justificativa de que a reserva indígena, por se tratar de uma área continua em região de divisa com Venezuela e Guiana, poderia dificultar a fiscalização das fronteiras. De acordo com o líder indígena Jaci José de Souza Macuxi, do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), a demarcação da reserva em área contínua não representa risco à soberania nacional. Para ele, a ação do governador José de Anchieta Júnior (PSDB) tem como objetivo beneficiar os grandes fazendeiros. A Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi demarcada em 1998 e teve sua homologação assinada em 2005 pelo presidente Lula, mas apenas no início deste ano teve início a operação para retirar os não-indígenas. Atualmente, há 18.992 indígenas, de cinco povos, que vivem a região da Raposa Serra do Sol há mais de 4 mil anos.

De acordo com Darci Frigo, coordenador da Terra de Direitos, o Judiciário, nesse momento, “passa a ter um papel de novo de guardião dos interesses patrimonialistas”. “Me preocupam as declarações dadas recentemente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, quando ele criticou a ocupação de prédios públicos por movimentos sociais”. Para Frigo, trata-se de uma tese conservadora, que aponta para os movimentos sociais, mas não diz nada sobre os verdadeiros invasores de terras indígenas, quilombolas, sobre os grileiros que invadem terras públicas, nem para os que utilizam trabalho escravo em suas fazendas. “O papel do Judiciário é conservador, reforça a desigualdade que existe no país, quando deveria ser o de um grande árbitro para garantir a igualdade e a justiça”, completa.

A violência não pára
Em janeiro deste ano a organização não-governamental Human Rights Watch (HRW) divulgou relatório em que afirmava que a violência no Brasil tem migrado dos grandes centros urbanos para o interior dos estados. Cidades como Tailândia, no estado do Pará, e Colniza, em Mato Grosso, estão se tornando bastante violentas. A impunidade é a principal causa da violência no campo, observa o relatório.

Para Frigo, da Terra de Direitos, há também uma articulação nacional, pautada, sobretudo, por uma ofensiva da bancada ruralista no Congresso, para impedir a demarcação de terras tanto para a reforma agrária, quanto para povos originários. Aliado a isso, a escolha de um modelo econômico baseado no agronegócio tem contribuído para o aumento dos conflitos por terra, aponta Sandra, da Justiça Global.

Na quinta-feira, um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que fica na Fazenda São Paulo II, em São Gabriel (RS), foi invadido por cerca de 1.200 policiais da Brigada Militar. Cinco integrantes do movimento foram presos. Alguns acampados informaram que sofreram humilhação, tendo ficado por mais de 8 horas seminus, sem água ou alimentação. Durante a madrugada, no Paraná, uma milícia armada invadiu um acampamento do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), localizado na BR 369, entre os municípios de Cascavel e Corbélia, no estado do Paraná. Com uma espécie de “caveirão” – um caminhão com carroceria blindada com pequenas janelas de onde os pistoleiros atiravam –, eles destruíram a estrutura do acampamento, inclusive uma igreja e uma escola.

Fonte: Agência Carta Maior

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Ministério da Justiça promove simpósio para discutir Raposa Serra do Sol



O Ministério da Justiça realiza nesta segunda-feira (4), a partir das 9h, o simpósio "A terra indígena Raposa Serra do Sol". O encontro reunirá no auditório Tancredo Neves autoridades federais e estaduais, antropólogos, juristas e especialistas internacionais para discutir todos os temas relacionados à reserva: desde a história das etnias locais até a homologação pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O objetivo é ampliar o volume de informações disponíveis sobre o assunto, no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para decidir sobre a constitucionalidade de demarcações de terras indígenas em áreas contínuas, caso da reserva Raposa Serra do Sol.

O simpósio será divido em três painéis de exposições. O primeiro será mediado pelo secretário-executivo do Ministério, Luiz Paulo Barreto, e terá a participação de Dalmo Dallari e de três antropólogos: Manuela Carneiro, professora titular da Universidade de Chicago; Nádia Farage, professora da Universidade Estadual de Campinas; e Paulo José Santilli, professor da Universidade Estadual Paulista.

Os especialistas discutirão aspectos históricos e etnográficos relativos à Raposa, além de direitos indígenas. Depois das apresentações, o evento será aberto a perguntas do público presente. À tarde, as discussões serão retomadas, às 14h, com o segundo painel. O mediador será o secretário de Assuntos Legislativos do MJ, Pedro Abramovay.

Temas como meio ambiente, soberania e faixas de fronteira serão debatidos com o advogado-geral da União, José Antonio Toffoli, a senadora Marina Silva e o governador José de Anchieta Júnior. O público poderá novamente questionar os participantes.

A questão do federalismo e os aspectos geográficos envolvendo a demarcação da reserva serão assuntos de debate no terceiro e último painel. Dele participam o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira; o líder indígena Macuxi Jacir de Souza; o procurador-geral do Paraná e ex-presidente da Funai, Carlos Marés; e o senador por Roraima Mozarildo Cavalcanti (PTB).

O encerramento está previsto para as 18h. Entre os convidados como ouvintes estão: ministros do STF, deputados, senadores e governadores da região Norte, além de representantes da sociedade civil, organizações não-governamentais e a imprensa.

Histórico

Localizada em Roraima, a área da reserva é alvo de disputa entre os índios e seis arrozeiros. O STF deve decidir até o final de agosto sobre a constitucionalidade da demarcação de terras indígenas em áreas contínuas. Por enquanto, por decisão do Supremo, a retirada dos não-índios da reserva está suspensa.

Veja a programação.

Publicado originalmente no site do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).

Fonte: Correio da Cidadania


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Amazônia - Há cinco anos, o Brasil tenta tirar uma ONG dos EUA de áreas indígenas

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Contágio nas matas


Amazônia - Há cinco anos, o Brasil tenta tirar uma ONG dos EUA de áreas indígenas

Por Felipe Milanez

Numa área pouco povoada entre os rios Purus e Juruá, dois grandes afluentes da margem direita do Amazonas, próximo à cidade de Lábrea, a aldeia suruwahá vive um drama que ameaça levá-la à extinção. Localizados em meio a um mosaico de 24 terra indígenas, próximo ao gasoduto Urucu-Porto Velho, os suruwahá têm convivido com uma onda de suicídios atribuída ao contato com os brancos. Diante da ausência do Estado, eles dependem exclusivamente de uma missão evangélica norte-americana, a Jocum (Jovens com uma Missão), que há anos mantém contato com os índios, levando a "palavra do Senhor".
Há mais de cinco anos o Ministério Público e a Funai tentam retirar os missionários, a quem atribuem uma série de ilegalidades. Documento interno da Funai, ao qual Carta Capital teve acesso, intitulado Missão: o veneno lento e letal dos suruwahá, reúne graves denúncias contra a Jocum. Assinado pelo indigenista Antenor Vaz, da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai, acusa a missão de proselitismo religioso, evangelização e desestruturação da comunidade suruwahá, hoje às voltas com uma onda de suicídios.

Entre as acusações, a de escravizar indígenas, extração ilegal de sangue dos índios, contrabando de sementes, construção de pistas de pouso clandestinas, uso de radioamador pirata, venda ilegal de madeira, remoção de indígenas de seu território sem autorização da Funai, adoção suspeita de crianças, realização de expedições veladas em busca de aborígenes isolados e o uso indevido de imagens dos suruwahá. Também é acusada de incitar os índios contra os representantes do Estado brasileiro, no caso a Funai e Funasa. Os funcionários das duas fundações têm sido ameaçados de morte.

"É uma atuação muito complicada. Eles fazem o que querem sem prestar contas a ninguém", afirma o presidente em exercício da Funai, Aloysio Guapindaia. Os missionários são os únicos a falar a língua dos suruwahá. E resistem a sair com o argumento de que os índios desejam sua companhia.
A Jocum, junto com outras entidades evangélicas, como a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), e a Sociedade Internacional de Lingüística atuam intensamente na maioria dessas aldeias. Contam com a logística necessária para fazer a mediação cultural com os índios e controlar o fluxo de pessoas. E também com o respeito dos nativos, complicando o trabalho dos funcionários da Funai, que estão longe de deter o controle do território dos suruwahá. Na verdade, até bem pouco tempo atrás, a Funai contava com apenas um funcionário para atender toda a região. Recentemente, contratou-se outro.
Em maio de 2003, o então procurador da República no Amazonas Sérgio Lauria Ferreira determinou a expulsão dos missionários da Jocum e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Até hoje a Jocum se nega a sair e impõe condições. A ONG evangélica também está na mira da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) considera que a Jocum "ameaça identidade étnica e interfere na 'cosmodivisão' dos índios, por introduzir rituais religiosos e entidades místicas estranhas à cultura suruwahá.

Presidente da Jocum, Bráulia Ribeiro nega as acusações, ao justificar por que se recusa a sair da terra indígena. "Somos parte da família dos índios. Nosso papel é promover o bem-estar. Não pregamos religião, mas os índios têm o direito de ouvir e escolher se querem se evangelizar. A pregação é pelo relacionamento, no convívio", afirma a missionária. A Jocum consegue manter uma equipe na aldeia, transportada em hidroaviões e aeronaves. Estas utilizam pistas de pouso construídas em associação com outras missões, em aldeias próximas às do suruwahá, como a dos deni.
Criada pelo pastor fundamentalista norte-americano Loren Cunningham, em 1960, a Jocum chegou ao Brasil em 1975. Entrou em contato com os suruwahá em 1984, com a justificativa de proporcionar assistência médica aos indígenas. A avaliação da Funai é que a assistência é ineficiente e funciona apenas como álibi para a evangelização.

Desde o primeiro contato da Funai com os suruwahá, em 2000, ficou claro que alguma coisa estava errada na aldeia, conta Izac Albuquerque, o primeiro funcionário a alcançar a área. "Assim que cheguei, um grupo me cercou. Apontavam flechas envenenadas, me ameaçavam. Eles falavam que não gostavam da Funai, que a Funai matava e fazia tudo de ruim". Mais tarde se deu conta de que a recepção hostil tinha sido inflada pelos missionários.
Para o Ministério Público Federal, as duas missões, evangélica e católica, são irregulares e devem retirar-se. Rivais, as duas entidades trocam acusações. O Cimi deu início às denúncias contra a atuação da Jocum, há dez anos, acusando-a de espalhar a gripe na região. Para se aproximar dos indígenas, a Jocum contara com um casal de missionários Edson e Márcia Suzuki, que aprenderam a língua. Em seguida, começaram a traduzir para o suruwahá conceitos cristãos e a intensificar o processo de evangelização. Foi nesse ponto que o Cimi denunciou a ação da Jocum.
O que as missões não esperavam enfrentar é um drama ainda maior, no caso dos suruwahá em relação a outros povos, ainda não compreendido: o altíssimo índice de suicídio. Os suruwahá morrem voluntariamente. A taxa de suicídio de 8% ao ano é impressionante. No contrafluxo da tendência nacional, a população suruwahá está caindo nos últimos anos. Hoje são 137, em 2004 eram 145.
Para o antropólogo João Dal Poz, que pesquisou o tema do suicídio entre os suruwahá, esse distúrbio tem origem em uma dinâmica de transformação sociológica, do modo de vida desse povo após a chegada dos brancos na região. Eles cultivavam uma relação belicosa e complexa com seus vizinhos, nutrida por magias e feitiçarias. "Sempre houve suicídio, mas nunca numa taxa tão alta. Parece-me que são reflexos da guerra religiosa entre católicos e evangélicos, instaurada inclusive entre as lideranças locais. Eles tentam se matar e muitas vezes se matam por qualquer bobagem", afirma Dal Poz.
A análise da pirâmide demográfica atualmente é assustadora: não há adultos homens entre 45 e 60 anos. Para o Cimi, a Jocum e o descaso do governo federal são os maiores responsáveis. "É provável que esse aumento dos suicídios tenha a ver com as constantes saídas dos índios para as cidades, promovidas por alguns missionários evangélicos com o apoio da Funai e da Funasa", diz Josefa Alves, do Cimi. Ela defende o contato dos suruwahá com outro indígenas, o que os ajudaria a superar o etnotrauma, como define, decorrente do contato com seringueiros desde os anos 1980.
Para a Jocum, a saída passa necessariamente pela "salvação religiosa". Os índios estão dominados por demônios e precisam "encontrar Jesus", como diz Bráulia Ribeiro. Por esse motivo, missionários da Jocum começaram a fazer rituais de exorcismo dentro da aldeia. O Cimi sustenta que a missão evangélica trouxe da Nova Zelândia dez xamãs da etnia maori, cujos rituais desagradaram aos pajés locais, que se sentiram desprestigiados.

Bráulia revida para afirmar que quando os índios são retirados das aldeias sempre há o consentimento da Funai e da Funasa. Os dois órgão negam. Mas a questão se tornou ainda mais emblemática em 2005, quando os missionários levaram para tratamento em São Paulo as pequenas Iganani e Sumawani, que, segundo eles, conforme costumes locais, seriam assassinadas por apresentarem deficiências físicas. Levaram também os pais da última, Kusiama e Naru. Diante da repercussão, dirigentes da Jocum tiveram de depor em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, para explicar a retirada sem autorização das crianças da aldeia. Conseguiram angaria a simpatia de alguns parlamentares.
Em Rondônia, onde a Jocum também é bastante ativa e mantém sua sede, a Associação do Povo Uru-eu-uau-uau, da região do rio Jupaú, denunciou que os missionários estariam comercializando sementes de mogno para o exterior ilegalmente. Para a Jocum, tratava-se de uma operação ligada a um convênio que seria firmado com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). A Embrapa não confirma a informação.
" Nossa expectativa é que se avaliem as práticas do Cimi e a da Jocum e se identifiquem quem faz agressões culturais e comete ilegalidades. Não se trata de duas missão religiosas disputando espaço", afirma Francisco Loebens, coordenador do Cimi Norte, com atuação na região amazônica.
Alguns anos atrás, três jovens missionários da Jocum - Júlio Nova, Nilson Carvalheiro e Nivaldo Carvalho - foram apanhados no meio de uma expedição ilegal. Tentavam estabelecer contato com o povo isolado hi-merimã, próximo aos suruwahá, contrariando a política da Funai de evitar o contato com os povos isolados.

A dinâmica da evangelização surpreende, ao se referir a temas inusitados. Há relato de um jovem suruwahá que ora para Jesus pedindo boas caçadas. "Um rapaz novo fez isso e matou, num só dia, as duas primeiras antas de sua vida."
No documento da Funai, há relatos variados de interferência cultural. Vizinhos dos suruwahá e também falantes da língua arawa, os banawa tinham o costume de abandonar o lugar onde moravam sempre que uma pessoa morresse. Após a morte, enterravam todos os haveres do morto, para que seu espírito não amedrontasse os vivos. Só a morte de uma velha banawa acabaria com a maldição. Certa vez, uma missionária da Jocum, conhecida por Fátima, depois do enterro, convenceu os indígenas de que se todos ficassem rezando a Deus o espírito da falecida não voltaria. Segundo o relato da Funai, os índios ficarm rezando a noite toda. Para a missionária, foi a oportunidade de fazê-los sentir "o poder de Deus e a sua superioridade".
Diante da diversidade de povos indígenas próximos e da presença rarefeita da Funai, o antropólogo Dal Poz sugere analisar em termos genéricos a presença das missões na região. "A atuação dessas missões vincula-se aos objetivos ideológicos dos fundamentalismo evangélico norte-americano, em seus esforços de evangelizar e converter os índios." Débora Duprat, subprocuradora-geral da República, concorda que a gravidade da questão se deve à ausência do Estado na Amazônia. "Várias comunidades são assediadas pelas missões. E neste caso dos suruwahá os missionários têm efetivamente o domínio, inclusive espiritual do grupo", afirma. A procuradora está preocupada com a repercussão que o filme lançado recentemente pela Jocum poderá causar. Hakani: Incinerado Vivo - A história de um sobrevivente chocou antropólogos e indigenistas no Brasil pelo forma como os índios são retratados.
Dirigido por David Cunningham - filho do fundador da Jocum - , o filme conta a história da menina Hakani, sobrevivente a uma tentativa de infanticídio. Seus pais e alguns parentes teriam se suicidado por causa disso. Hakani foi entregue aos missionários e com eles vive até hoje. Trata-se de um libelo contra o que os antropólogos e a própria Funai vêem como um elemento da cultura suruwahá.
Para a procuradora, cabe uma ação de danos morais pela forma como os povos indígenas são tratados. "Denigre a imagem dos índios, acirra os preconceitos e usa-os para uma batalha da Jocum, que é a aprovação de uma lei despropositada que criminaliza a prática de infanticídio."
Em seu blog, o ex-presidente da Funai Mércio Gomes considerou o filme "criminoso". E pediu que se fizesse uma denúncia para a "Polícia Federal, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos, a Funai, o Supremo Tribunal Federal e todas as instâncias judiciais, jurídicas e éticas do Brasil". A Funai diz que investiga o caso e estuda medidas judiciais contra a Jocum.

A expulsão da missão evangélica da terra indígena é dada como certa, mas já se passaram cinco anos desde que o Ministério Público Federal se pronunciou nesse sentido. O MP alega que o grupo indígena vive uma situação de vulnerabilidade, pelo contato recente. " A Jocum manipula os índios, coloca-se como amiga. Mas é um discurso para fora, na verdade os missionários desqualificam os índios, tratam-nos como selvagens, são preconceituosos", afirma Rodrigo Lines, que cobra da Funai a retirada dos missionários e defende a adoção de um programa de proteção.
O temor geral é que ocorram novos suicídios caso a missão saia. "Se for preciso, vamos buscar uma medida mais enérgica entrar com uma ação, cobrando multa e medidas coercitivas. Isso em última instância, para não azedar e dificultar ainda mais a relação de confiança que a Funai e a Funasa devem estabelecer com os indígenas", diz Lines.
Com a saída da Jocum, a Funai retomaria o controle da área para aplicar o modelo de atuação implantado junto ao povo zoe, visto como exemplar pela fundação. Os zoe viveram momentos parecidos, mas sob o domínio de outra missão, a MNTB, já expulsa. Agora, a Funai percebe uma situação mais tranqüila, com recuperação demográfica e bem-estar social, sob a supervisão do indigenista João Lobato, nos mesmos moldes das operações realizadas pelos irmãos Villas-Boas.
De acordo com o presidente em exercício da Funai, Aloysio Guapindaia, enquanto a Funai for fraca, não haverá muito a ser feito, e o Brasil terá de conviver com esse tipo de ameaça à soberania política. " A sociedade tem de ter como objetivo a reestruturação do órgão indigenista", afirma.
Hoje, caso a Petrobrás pretenda discutir os impactos do gasoduto Urucu-Porto Velho com os índios suruwahá, terá como interlocutora uma Funai "surda", incapaz de consultar os índios por sua conta, ou se submeter à tradução dos missionários evangélicos de uma organização norte-americana. Em terras da União, em pleno território amazônico, cuja soberania nos últimos tempos tem inflamado tantos ânimos.

Fonte: Carta Capital - edição 505 - 23 de julho de 2008

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Povos isolados, um tema que o Brasil precisa entender

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Por Paulo Lima

Eu deixei de ser um homem isolado ou, para os antropólogos, pertencente a um povo isolado. Isso em parte, porque desde menino tenho quase fascinação por rádios, ondas curtas, radioamadorismo, propagação, antenas etc. Com o tempo, acumulei algum conhecimento sobre o assunto e, em razão disso e de estar no lugar certo na hora certa, acabei recebendo o convite para avaliar a implementação de um sistema de comunicação via rádio junto aos zoés.
Não se trata de uma viagem trivial. É preciso pegar um avião monomotor e, depois de uma hora de bastante emoção, pousar numa pista de pouso de chão batido, na Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema. Lá está a vida dos zoés, um grupo indígena de cerca de 250 pessoas que preserva em muito as suas tradições e modo de viver.
A reserva etnoambiental fica nos municípios de Óbidos e Alenquer, a 253 quilômetros de Santarém, Pará. Não existe acesso fluvial, só aéreo ou depois de dias de pernada, como se diz entre os indigenistas. Na reserva, só se pode entrar com autorização da Funai e o que você faz lá dentro é acompanhado de perto pelo coordenador do posto, João Lobato, e pelos cinco funcionários da Funai. Lobato, aliás, é uma figura de grande importância na manutenção da cultura zoé e no controle dos contatos deles com a cultura ocidental. Voltarei a falar dele mais adiante.
Os zoés tiveram contato “oficial” com os não-índios em meados da década de 1980. São caçadores, coletores e cultivam a mandioca. No primeiro momento, quando você sai do apertado monomotor, os zoés logo se aproximam, curiosos para saber quem são os visitantes e o que trazem. Já nesse primeiro contato a sensação é de descoberta de uma estética e uma forma de se relacionar impactante. Os zoés são grandes, porte físico bem definido e uma enorme facilidade em sorrir. Os adornos que usam abaixo do lábio inferior são a sua marca étnica e são gradualmente colocados como alargadores a partir da segunda dentição. Chamam-se m’berpót e são feitos a partir de uma árvore nativa, o poturu.
Não usam vestimentas, apenas um laço no pênis e as mulheres uma tiara. Aparentam o que se pode imaginar como um estado de constante felicidade. A curiosidade é maior que tudo e as primeiras perguntas são acompanhadas do toque daquilo que é incomum a eles. O tato sobre minha farta calva é diversão na certa.
Os zoés têm uma especial curiosidade sobre a família ou sobre como nos organizamos como agrupamentos. Os funcionários da Funai possuem algum domínio do idioma, já o coordenador do posto tem um conhecimento bastante aprimorado e a todo instante negocia temas dos mais comezinhos a questões complexas, como o contato com os índios wai-wais que tentam levar a mensagem missionária evangélica para dentro da reserva.
As perguntas aos visitantes, ainda no caminho até a sede da Frente, continuam. Na língua deles, querem primeiro saber seu nome. Ao ouvi-lo quase todos que estão por perto o repetem. Como os orientais, têm dificuldades de pronunciar o som da letra “l”, daí que ouvi muito, “Pauro, Pauro, Pauro”, acompanhado por um abraço ou uma mão de criança sugerindo caminhar junto. Depois, vem o interesse sobre esposa e filhos. Sempre riem quando a resposta é uma esposa ou um filho só. Aplicada a pergunta a eles, tanto homens como mulheres respondem muitas vezes três para maridos ou esposas e cinco, com muito orgulho na expressão, sobre filhos. Os zoés quando contatados eram 133 em 1991.

Cores, flechas e adornos

A curiosidade e a liberdade com que vivem no contato com a natureza e com seus corpos é igualmente desafiadora para quem traz as culpas e as travas da religião. As cores com que algumas vezes se pintam (como algumas mulheres completamente cobertas com o vermelho de urucum) impressionam pela beleza e graça. João Lobato, coordenador da Frente há cerca de 12 anos, orienta o visitante sobre o comportamento que devemos ter entre os zoés. Entrega duas páginas impressas com um conjunto de “mandamentos” para a fruição, sem danos, da cultura, modo de viver e desenvolvimento daquela gente.
A Frente tem um cuidado paisagístico impressionante. Lobato e sua equipe fizeram, ao longo desse tempo, intervenções que surpreendem o olhar de um observador que tinha a expectativa de condições precárias que se imagina para populações isoladas. Tudo é de muito bom gosto. Depois de ter ganho o dia com a caça, os índios ficam sentados no chão, conversando entre si e sobre o tema de nossas famílias durante algum tempo. Às vezes são uns 40 ali, no entorno da sede da Frente, brincando com sua barba ou querendo entender porque a mulher branca esconde o seio.
As flechas dos zoés são ricamente decoradas e devem ter alto grau de precisão, já que na região se encontra com certa facilidade pacas, tatus, porcos-do-mato e macacos. No fim do inverno, começa a temporada de caça aos macacos, que nessa época estão mais bem alimentados. Em abril, saem para caçar urubu-rei e, em caso de fracasso, os homens ficam em maus lençóis. Isso porque toda mulher usa tiaras feitas de penas de urubu-rei e a renovação do estoque de penas é tema crucial da afirmação masculina nas relações conjugais.
As crianças, com cinco anos, já começam a brincar com os seus arcos e sabem manejar facas para afiar as flechas. E surpreendem a cada momento com sua capacidade de aparecer e desaparecer de um segundo para o outro. Logo quando surgem, repetem seu nome e fazem caretas, como que convidando para brincar. Sentam no seu colo e gostam de ouvir os nomes em português das partes do corpo em seguida do toque de seus dedos. Não é para aprender as palavras porque logo voltam a tocar na ponta do seu nariz ou puxar a sua barba e cair na risada. A calva é a parte do corpo mais demandada, entre carinhos, beijos, tapas e tentativas de beliscões.

O contato com a religião

A sociedade zoé é poligâmica e poliândrica. Como nos diz Rosa Cartagenes, indigenista, “o casamento poligâmico, tanto masculino quanto feminino, é um dos pilares fundamentais da extensa rede de alianças entre os diversos grupos familiares, com relevância para a poliandria, que entre os zoés é altamente estimulada e desejável socialmente como esteio das relações familiares e políticas. Ressalte-se que entre os zoés a poliandria não é eventual nem apenas ‘tolerada’ como mecanismo de equilíbrio demográfico.” O mais interessante é a relação com os filhos. Uma mulher pode ter filhos de outros maridos, mas os seus filhos são igualmente filhos dos pais dos irmãos. Ou seja, uma criança zoé é cuidada por dois ou três pais, por exemplo.
Outro tema muito importante para entender a complexidade do universo zoé é a ausência de hierarquia. Não existem pajés ou caciques. O contato com os índios wai-wais, que vez por outra invadem a reserva, é uma das principais fontes de tensão na área. Os wai-wais são contatados há muito tempo e têm relações com missionários evangélicos. Na Funai, há 54 missões religiosas cadastradas, mas o número pode ser maior, já que muitos missionários conseguem se infiltrar entre os indígenas, sem o conhecimento do órgão.
Para exemplificar o problema, basta conhecer a que se propõem as grandes missões internacionais evangelizadoras. A Jovens com uma Missão (Jocum) está no Brasil desde 1960 e mantém centenas de missionários espalhados pelo país, levando a idéia de família monogâmica, da necessidade da vestimenta e de hierarquia, já que é mais fácil controlar um agrupamento social controlando e negociando com um só líder.
Outras missões importantes são a Missão Evangélica aos Índios do Brasil (Meib), organizada em 1967, que tem o objetivo de expandir o evangelho de Jesus Cristo, promover o estudo da Bíblia e a educação em geral, praticar a beneficência e organizar igrejas entre a população indígena. Há ainda a New Tribes que é uma das maiores missões evangélicas em atuação no Brasil e está presente em 47 aldeias de todas as regiões do país. Na luta contra essa distorção da tradição cultural zoé, João Lobato é um resistente, até o momento com muito sucesso, com seu estilo próprio e obstinado.
Para tentar entender o que se está fazendo na Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema é preciso rever a perspectiva com que você leu este texto. Posso ser entendido como católico que somente cita os evangélicos como vetor de problemas para a “harmonia” política e cultural dos zoés. Não é fato, nessa reserva especificamente há muito tempo não existe contato com missões católicas, como o Conselho Indigenista Missionário. Mas sim, concordo com a intervenção do Estado na gestão do isolamento dos zoés como fundamental para sua preservação e me encanto pelo trabalho lá feito no campo da saúde indígena.
A preservação daquela cultura e daquele modo de viver é dever do Estado brasileiro. A identidade cultural brasileira é também zoé, por mais que nosso comportamento globalizado e ocidental a negue. O suspiro de originalidade que eles representam precisa ser ressignificado para o que é ser brasileiro. E, se ser brasileiro for também ser zoé, ser brasileiro há de ser melhor.

Fonte: Revista Fórum

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Índios e capitalismo de faroeste

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Por Anselmo Massad e Renato Rovai


No dia 22 de maio, no programa Linha de Frente, da rádio Jovem Pan de São Paulo, do qual Rubens Ricupero participa semanalmente, colocou-se o tema da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Inquirido sobre o risco às fronteiras brasileiras, o embaixador desafiou a se apontar qualquer caso de dificuldade imposta por indígenas à segurança das fronteiras. O discurso inesperado foi o mote da entrevista que se segue.
O currículo relacionado às fronteiras e à região amazônica foi o que o levou, durante o governo de Itamar Franco, a acumular os ministérios do Meio Ambiente e da Amazônia. Ricupero seria ainda ministro da Fazenda de março a setembro de 1994, período de implantação do real como moeda. Sua queda deveu-se a um episódio da transmissão acidental, captada por assinantes com antenas parabólicas, dos bastidores de uma entrevista ao jornalista Carlos Monforte. Atualmente, Ricupero dirige a Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e é presidente do Conselho do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.
Ricupero desqualifica o discurso dos que “se embrulham” na bandeira e critica o modelo do agronegócio, qualificado como “capitalismo de faroeste”. A demarcação de Raposa Serra do Sol foi anunciada em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e homologada em 2005, no primeiro mandato do presidente Lula. São 1,8 milhão de hectares para ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e wapixanas, parte deles ocupados por arrozeiros desde os anos 1980. Confira a entrevista a seguir.

Fórum – Como o senhor vê o questionamento a respeito das dificuldades que uma reserva como Raposa Serra do Sol representa para a demarcação de fronteiras?
Rubens Ricupero –
O fundamental é que os povos indígenas nunca representaram nenhum tipo de problema para as fronteiras, foram colaboradoras valiosíssimas das comissões demarcadoras. No trabalho das comissões demarcadoras, os índios foram indispensáveis, porque conheciam o terreno, serviam de canoeiros e de guias. Conheço bem o tema e desafio qualquer pessoa a citar um caso concreto em que não pudemos delimitar um metro de divisas porque havia uma reserva indígena. É bom explicar que elas dependem basicamente do Itamaraty, sempre o encarregado de negociar e de posicionar no terreno os postes que sinalizam a separação dos países. Para isso, no meu tempo, havia a Divisão de Fronteiras do Itamaraty, da qual o grande chefe foi Guimarães Rosa durante muitíssimo tempo [de 1962 a 1967]. Fui sucessor dele muito tempo depois [de 1977 a 1980] como chefe interino desta e da Divisão da América Meridional II ao qual ela estava subordinada.
Em toda minha vida, sempre trabalhei com isso, junto de duas comissões demarcadoras de limites, porque temos dez vizinhos. Não há relação direta com o tamanho do território, porque o Canadá só faz divisa com os Estados Unidos, e a Austrália com nenhum, porque é uma ilha. Só Rússia, China e Índia têm um número grande de vizinhos, e é uma constante para esses países passar a história em guerra. O Brasil é um caso único. Em 2008, comemoramos 138 anos de paz ininterrupta com todos os países limítrofes. A última guerra no sentido nacional é a da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que termina no dia 1º de março de 1870, com a morte do Francisco Solano Lopez. Conheço bem a data porque é o dia de meu aniversário (risos).
Na questão do Acre, em [17 de novembro de] 1903, houve momentos de tensão, mas nunca choque armado nem invasão. Na exposição de motivos do Tratado de Petrópolis, o Barão do Rio Branco diz: “O Brasil nunca contemplou as portas de uma guerra de conquista, porque isso se afastaria inteiramente de nossa tradição”. Hoje se diz que o tratado foi contra a Bolívia, mas na época a oposição no Brasil acreditava ter havido muitas concessões. Rui Barbosa era um dos [ministros] plenipotenciários e se demitiu, porque achava que tinha havido muitas concessões. O Barão dizia: “foi transigindo com os vizinhos que o Brasil sempre evitou conflitos”. Era um negociador antes de mais nada.

Fórum – O senhor consegue identificar as motivações dos militares que manifestaram preocupação no caso de Raposa Serra do Sol?
Ricupero –
Acredito que há uma mescla de motivações. Um primeiro problema é que muitos deles conservaram até hoje a visão de desenvolvimento a qualquer custo que era dos governos militares. A ingenuidade de que vai trazer desenvolvimento. Só se for para o governador do Mato Grosso. Não conseguem pensar em desenvolvimento sustentável que é atender às necessidades atuais sem comprometer as futuras gerações. Ou não se preocupam ou minimizam o perigo de comprometer as gerações futuras. A formação cultural e científica é desatualizada.
Eu era o representante do Itamaraty no Conselho da Sudam [Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, atual Agência de Desenvolvimento da Amazônia] quando fui chefe da Divisão da América Meridional II, nos anos 70. Eu já era crítico dessa visão. O lema do governo militar era “É a pata do boi que vai conquistar a Amazônia”. Infelizmente, até hoje, os financiamentos do Banco da Amazônia, assim como do Bndes, são para frigoríficos e empreendimentos pecuários que estão na origem do desmatamento. São pouquíssimos para atividades sustentáveis. É preciso entender, agora que a Marina Silva saiu [do Ministério do Meio Ambiente], que os governos há 30 anos ininterruptos criaram um sistema frondoso de subsídios diretos e indiretos sem os quais praticamente nenhuma atividade econômica seria rentável na Amazônia. Excetuada a extração de ouro e de diamantes, nada se manteria sem as taxas de juros subsidiadas no crédito do Banco do Brasil, que ainda assim não é pago, por meio de anistias e renegociações.
A destruição serve para se apoderar da terra. É uma distorção enorme no Brasil, o sistema é perverso e estimula a destruição. No processo junto ao Judiciário, a floresta não prova nada, mas se destruir, sim. Não serve como garantia para um crédito no Banco do Brasil, mas uma “benfeitoria” – pôr fogo nela –, aí serve.
Não é verdade que os governos não podem evitar a destruição da Amazônia, é que não querem. Ou, para ser mais claro, quereriam. Para terminar com os subsídios haveria enormes reações das bancadas, a inércia leva à manutenção desse sistema.
Quando houve o anúncio de que o desmatamento havia aumentado [em 18 de outubro de 2007], o presidente Lula convocou o gabinete de ministros, mas, poucos dias depois, a ministra Marina estava em Mato Grosso e o presidente tirou-lhe o tapete debaixo dos pés. Ele havia conversado com o governador [Blairo Maggi] e disse que era muito alarde. O presidente atira para todos os lados, como uma metralhadora giratória, ao mesmo tempo diz uma coisa e seu contrário. Em um intervalo de oito dias não é possível que esteja certo nas duas, nada aconteceu que tenha alterado a situação. Infelizmente, a nossa imprensa não é capaz de acompanhar a realização das medidas anunciadas.

Fórum – Há outras pessoas, como o deputado Aldo Rebelo (PCdoB), com uma posição...
Ricupero –
Ele tem a idéia do culto dos heróis, do Floriano Peixoto. Vou dizer uma coisa altamente provocativa. Há os genuinamente patriotas, como Aldo Rebelo e o general [Augusto] Heleno, homens de uma extraordinária boa fé, que acreditam mesmo na crítica que fazem. E há outros ao qual se aplica a frase do doutor [Samuel] Johnson, o grande dicionarista do século XVIII, que dizia que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.
Embrulham-se na bandeira e enganam os que são de boa fé. Na verdade, são uma coisa que existe no Brasil há séculos, grileiros. E isso ocorreu inclusive na região do Pontal do Paranapanema, e em todo o Oeste do Paraná, especialmente na época do governador Moysés Lupion [1947 a 1951, pelo PSD]. A história das terras no Brasil tem duas grandes vertentes. Uma são as concessões, iniciadas pela coroa portuguesa, com as sesmarias, que continuaram no Império com a Lei de Terras [de 1850]. Com a Lei de Terras, boa parte dos domínios da União passou a particulares. O que não foi por doação, foi pelo grilo, por ocupações para se apoderar de extensões de terra do tamanho da Bélgica sem ter título. Sempre houve a idéia de usucapião, de se estabelecer na terra. As fronteiras brasileiras avançaram em terras que eram de nós todos.

Fórum – Em entrevista à rádio Jovem Pan o senhor se referiu a fazendeiros em Roraima nessa condição. Quem seriam?
Ricupero
– Não me referi a Roraima, mas de modo geral. Em 1993, quando era ministro do Meio Ambiente e da Amazônia, fui convocado pela bancada do Mato Grosso no Congresso. E me fizeram esta provocação: “O senhor não acha que é muita terra para pouco índio?”. Respondi que achava interessante terem introduzido um conceito que se deveria adotar no Brasil, um limite quantitativo de terras por pessoa. “Os senhores aceitariam isso em caráter pessoal nas suas próprias propriedades?” Eles justificam dizendo que estão promovendo desenvolvimento. Para o PIB brasileiro, é pífio. Segundo o Carlos Nobre [pesquisador do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], as atividades agrícolas na Amazônia respondem por menos de 1% do PIB brasileiro. No entanto, 75% da responsabilidade brasileira em emissão de dióxido de carbono brasileiro vêm de queimadas na Amazônia e no cerrado brasileiro, aliás, sempre esquecido apesar da destruição enorme. Aquela área que poderia ter um valor enorme, especialmente se conseguirmos transformar em créditos de carbono a floresta em pé, torna-se literalmente fumaça.

Fórum – Como o senhor avalia a presença de ONGs estrangeiras na Amazônia colocada como ameaça à soberania nacional?
Ricupero
– Não conheço ONG estrangeira que tenha posto fogo em um metro quadrado ou se apoderado, com documentos falsos, de um metro quadrado de terras da União, feito pecuária, matado índios, invadido reservas para extrair mogno ou ouro. E há um dossiê fartíssimo, se poderia fazer um livro negro da Amazônia com crimes cometidos nos últimos 30 ou 40 anos por muitos brasileiros “civilizados”. De mil casos, se houver um em que o indivíduo foi preso, é muito. Se o Exército e o governo querem impedir as atividades ilícitas, porque não reprimem estas? Há uma xenofobia absurda nesse caso. E se fosse verdade que estrangeiro é tão ruim, por que o Banco Central eliminou as taxas para entrada de capitais especulativos?

Fórum – E grupos estrangeiros que captam recursos para comprar áreas na Amazônia prometendo transformá-las em reservas?
Ricupero
– Existem algumas grandes ONGs ambientalistas que fazem isso não só no Brasil. Tomam doações para compra de terras que se transformam em reservas naturais. Todos concordam que precisamos aumentar áreas de proteção. Que mal existe, na Amazônia, na Serra da Bocaina [RJ] ou em Alagoas, que um estrangeiro esteja disposto, e nós não, a imobilizar seu capital para que aquela mata não seja destruída? Se não está cometendo ilegalidades, nem extraindo biodiversidade, não há mal. Do contrário, tem de se aplicar a lei.
O problema dos direitos humanos hoje, assim como o da destruição da Amazônia, é muito parecido com o tráfico de escravos e a escravidão. No século XIX, a potência dominante, Inglaterra, queria pôr fim ao tráfico. Por pressão, o Brasil assinou vários tratados, mas não cumpriu. A começar pelo imperador, não se defendia o tráfico nem a escravidão, mas se dizia que o país não estava pronto, que não tinha recursos. De vez em quando se fazia uma apreensão de africanos, como se dizia à época, que tinham se desembarcado. A expressão “para inglês ver”, vem dessa época. Pela lei, como esses homens tinham sido reduzidos à escravidão ilegalmente, éramos obrigados a restitui-los à África ou dar liberdade aqui, mas eram distribuídos como favor, inclusive para jornalistas. Era uma forma de “mensalão”.
Os ingleses sabiam dessas coisas, tanto que o Lorde Aberdeen fez passar no Parlamento [em 1845] o Aberdeen Act, que dava à marinha inglesa o direito de apreender navios em águas interiores do Brasil – nas internacionais, antes disso, foram apreendidas centenas para serem adjudicadas na corte de Serra Leoa, na costa da África. Houve um episódio célebre em que puseram a pique um iate em Paquetá, em plena baía da Guanabara. O negócio ficou tão intolerável, que o governo votou a Lei Eusébio de Queirós, em 1850. Em dois ou três anos, acabou o tráfico.
Historiadores brasileiros e esse pessoal patriota se incomodam. A mim também. Mas como está em jogo um valor supremo, prefiro que tenha sido desta forma. Em “O Navio Negreiro”, de Castro Alves, um dos poemas mais fantásticos que temos, ele diz: “Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança...” O poeta vê a bandeira em um navio negreiro e prossegue: “Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!”. A bandeira não pode dar proteção a quem mercadeja carne humana. Seria preferível ser derrotado por estrangeiros do que dar cobertura a isto.
Aplique, hoje em dia, a ONGs e a pressões estrangeiras. O maior interesse em preservar a floresta e proteger os índios é nosso. Digo sinceramente: se não formos capazes e continuarmos assim, acho bom que haja pressão internacional. Sou favorável a que se apliquem sanções à soja ou à madeira ou à carne comprovadamente procedentes de áreas desmatadas contra a lei brasileira.

Fórum – A demarcação de terras indígenas poderia até impedir o avanço dessas compras de terras, porque a propriedade é da União.
Ricupero
– Aí está um ponto central que convém destacar. Um índio não tem a propriedade da terra. Pela Constituição brasileira, não pode vender, alienar nem nada, a não ser ele mesmo usufruir. Os arrozeiros querem a propriedade, querem esbulhar o povo brasileiro, porque vão especular, vender, alugar. A diferença fundamental é que qualquer atividade dentro de uma reserva tem de ser aprovada, o governo não permite de outra forma.

Fórum – O que pode acontecer se o processo no Supremo Tribunal Federal frear a retirada dos arrozeiros?
Ricupero
– O perigo é muito grande. Uma coisa seria alguém com uma propriedade comprada legalmente e melhorada com seu próprio esforço que, de repente, se quereria tirar. Seria uma violência. Outra coisa é o caso desse pessoal, porque na origem dessa “propriedade” existe uma ilegalidade. Quase que invariavelmente houve grilagem. Não se pode dizer que é o sacrossanto princípio da propriedade privada, mas na maior parte desses casos se aplica a frase de [Pierre-Joseph] Proudhon de que “a propriedade é um roubo”. Ou foi comprada de alguém que fez um ato ilegal. De um lado, os que estavam aqui muito antes de os europeus chegarem, que foram massacrados. Hoje, 1 milhão de quilômetros são reservas indígenas, mas e os 7,5 milhões de quem eram? Compramos?
Fórum – O que está por trás dos arrozeiros?
Ricupero – É o que um amigo chama de “modelo gaúcho de agricultura”, onde há terras, os colonos vão ocupando, devastando. Em algumas regiões não tem tanto problema, porque compraram a terra. Em outras não. O que existem são grupos de grandes agricultores de capital intensivo, o agronegócio. Mas não é isso que vai resolver a fome do mundo. Gostaria, até por curiosidade, que se fizesse uma audiência pública imparcial para examinar os títulos de terras dos arrozeiros para investigar a presença deles ali [em Roraima]. Pode ser que não tenha sido o atual dono, que já comprou de outro, mas há 25 ou 30 anos, em um ponto, há uma ilegalidade.

Fórum – Eles são criminosos?
Ricupero
– Não acredito que devam ser consideradas como bandidos. São empresários de um tipo que o sistema do capitalismo selvagem brasileiro permite. Estão atuando no que consideram ser as regras do jogo, porque aqui o capitalismo é de faroeste.

Fonte: Revista Fórum

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Raposa Serra do Sol: um lugar de direito

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foto: Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil
Raposa Serra do Sol.  Em relação à cosmovisão dos índios, acha-se pouco relevante considerarem o Monte Roraima o lugar da origem do mundo
Raposa Serra do Sol. "Em relação à cosmovisão dos índios, acha-se pouco relevante considerarem o Monte Roraima o lugar da origem do mundo"

por Marina Silva
De Brasília (DF)

É muito especial para mim estrear no território dos internautas, por meio de Terra Magazine, a quem agradeço pela oportunidade. Espero dedicá-la a um bom diálogo com as críticas e idéias de todos vocês. Também é especial por acontecer num momento novo, no Brasil e no mundo, que exige conhecimento, sensibilidade e intuição para identificar, na massa impressionante de informações que nos chega, a profundidade dos fatos e processos, a conexão entre passado e futuro, enfim, o nosso espaço de escolhas reais, sejam individuais ou coletivas.

Veja também:
» Você concorda com Marina Silva sobre a questão indígena? Opine aqui
» Senadora Marina Silva estréia em Terra Magazine

Faz parte desse espaço uma interpelação ética da qual não podem fugir nem os países desenvolvidos nem os em desenvolvimento, entre eles o Brasil. A Amazônia, com sua incomparável floresta tropical, sua biodiversidade e sua diversidade social, talvez seja o maior símbolo dessa interpelação. Para os países desenvolvidos, a pergunta que se faz é sobre seu passado. Destruíram sua biodiversidade, arrasaram os povos originários dos lugares conquistados e provocaram, a partir da revolução industrial, alterações ambientais tão extensas que levaram à atual crise ambiental global, em cujo centro estão as mudanças climáticas.

Embora pareça paradoxal, nossa situação é bem melhor porque somos questionados sobre o futuro. Quando somos perguntados sobre o passado, estamos diante do quase irremediável. Sobre o futuro, temos a chance de projetá-lo. Isso implica dizer o que vamos fazer com nossa biodiversidade, porque temos 20% das espécies vivas do planeta; com nossos recursos hídricos, porque temos 11% da água doce disponível, 80% dos quais na Amazônia; com a maior floresta tropical e com a maior diversidade cultural do mundo. O Brasil ainda tem cerca de 220 povos indígenas que falam mais de 200 línguas.

Essa é uma poderosa interpelação porque permite escolhas e, portanto, exige que estejamos à altura da oportunidade de optar. A discussão é de caráter civilizatório, não se esgota em circunstâncias ou polêmicas pontuais. O Brasil é uma potência ambiental e humana e não pode se conformar em querer, séculos depois, a mesma trajetória que fez dos países desenvolvidos, ricos, porém com graves desequilíbrios ambientais. Nossa meta deve ser: desenvolvidos, porém por meio de caminhos diferentes.

A diferença está, em primeiro lugar, em aceitar a interpelação ética a que me referi, sem tentar lhe dar respostas banais e evasivas. A falsa polêmica em torno da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, resume a radicalidade exigida por essa interpelação.

Como ministra do Meio Ambiente enfrentei, ao lado dos ministérios da Justiça e do Desenvolvimento Agrário, uma situação no Pará em que um grande grileiro apossou-se de 5 milhões de hectares na Terra do Meio. Conseguimos criar nessa área a maior estação ecológica do país, com 3 milhões e 800 mil hectares. Vi a Polícia Federal implodir 86 pistas clandestinas usadas para tráfico de drogas e roubo de madeira. E nunca ninguém disse que aquele grileiro era ameaça à soberania nacional. Mas os 18 mil índios de Roraima são assim considerados por alguns e muitas vezes tratados como se fossem mais estrangeiros do que os estrangeiros, porque sequer são reconhecidos como seres humanos em pé de igualdade com os demais.

Um exemplo: o mundo ocidental tem em Jerusalém um ponto de referência do sagrado para inúmeras religiões de matriz judaico-cristã. Ficaríamos chocados se alguém quisesse destruí-la e a defenderíamos como algo que é constituinte essencial de nossa cosmovisão. No entanto, em relação à cosmovisão dos índios, acha-se pouco relevante considerarem o Monte Roraima o lugar da origem do mundo.

Pode parecer, para quem acompanha o caso de Raposa Serra do Sol, que a criação da reserva indígena foi um procedimento autoritário e injusto, que desconsiderou direitos dos não-índios. Não é verdade. A legislação brasileira define detalhadamente critérios para demarcação. O contraditório é garantido por decreto, exigindo que sejam anexados, ouvidos e examinados os argumentos contrários. Manifestam-se proprietários de terra, grileiros, associações, sindicatos de trabalhadores ou patronais, prefeituras, órgãos públicos estaduais e federais, apresentando tudo o que considerem relevante. Por isso, a demarcação física das áreas leva, em geral, muitos anos, o que elimina quaisquer possibilidades de açodamento.

Roraima tem cerca de 400 mil habitantes num território de cerca de 225 mil quilômetros quadrados. A população rural não chega a 90 mil pessoas, das quais 46 mil são indígenas, ou seja, 52% do total, ocupando 47% das terras. Raposa Serra do Sol ocupa 7,7% da área do Estado e abriga 18 mil índios. Por outro lado, seis rizicultores ocupam 14 mil hectares em terras da União. Em maio último, o Ibama autuou a fazenda Depósito, do prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero, por ter aterrado duas lagoas e nascentes, além de margens de rios, e por ter desmatado áreas destinadas à preservação permanente e à reserva natural legal.

Em 1992, quando foi homologada a reserva Ianomami, seis vezes maior do que a Raposa Serra do Sol, houve muito estardalhaço, alimentado pela acusação de que isso representaria ameaça à soberania nacional e grave risco de internacionalização da Amazônia. Passados 16 anos, a reserva abriga 15 mil índios em área de fronteira e não se tem notícia de que tenham causado qualquer dano à nossa soberania e muito menos que pretendam ser uma "nação indígena" separada do território brasileiro, como diziam à época os opositores da homologação.

Estamos perto da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação contínua de Raposa Serra do Sol. Será um grande desafio para a instituição e para todo o País, num momento que o mestre Boaventura de Souza Santos chama de bifurcação histórica. Diz ele que as decisões do STF condicionarão decisivamente o futuro do país, para o bem ou para o mal. Que esta decisão seja parte da resposta que devemos dar à interpelação ética sobre nosso futuro.


Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.

Fale com Marina Silva: marina.silva08@terra.com.br

Fonte: Terra Magazine
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UM LIVRO IMPERDÍVEL SOBRE TORTURA MADE IN USA

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por Luiz Carlos Azenha

Advogados, promotores, procuradores, juízes e leitores interessados em questões legais: leiam The Dark Side, da jornalista Jane Mayer, recém-lançado nos Estados Unidos. O livro demonstra como um grupo de fundamentalistas seqüestrou o processo político americano depois dos atentados de 11 de setembro, usurpou poderes do Congresso e dos tribunais e subverteu todo o arcabouço legal construído depois da Segunda Guerra Mundial, inclusive a Convenção de Genebra, para instituir um sistema de tortura e, para todos os efeitos práticos, desaparecimento de prisioneiros.

O livro não deixa nenhuma dúvida de que integrantes do governo Bush correm sério risco de sofrer conseqüências legais. A jornalista demonstra que quase todos os responsáveis pelo sistema - que inclui prisões secretas e o seqüestro de suspeitos - deixaram o governo, com a notável exceção de Cheney. Demonstra que o uso da tortura não foi um acidente de percurso, mas resultado de uma série de passos oficialmente endossados pela opinião legal de advogados a serviço do governo. E que o sistema só não foi desmantelado porque isso pode implicar na condenação daqueles que ajudaram a implementá-lo.

Além disso, Mayer também demonstra a origem de "provas" que mais tarde se tornaram embaraçosas, especialmente para o ex-secretário de Estado Collin Powell no famoso discurso em que ele tentou justificar a invasão do Iraque diante do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Na ocasião, Powell se referiu a um integrante de "alto escalão" da Al Qaida que teria confessado saber de ligações da rede com Saddam Hussein. A confissão, prova a jornalista, foi obtida sob tortura e não passava de fantasia do torturado para se livrar do tratamento cruel.

Mas o que mais me chamou a atenção foi como a receita para expandir o poder presidencial já existia antes mesmo dos atentados. É como se a extrema direita americana estivesse apenas esperando o ataque de 11 de setembro de 2001 para colocar em prática seu projeto de poder. O livro identifica a Romênia e a Polônia como sedes de "prisões fantasmas" da CIA. E diz: "A ironia dos Estados Unidos recompensarem democracias - que foram estados policiais - pela ajuda em interrogar prisioneiros sem proteção legal não foi considerada". A respeito, diz um integrante da CIA: "Prometemos ajuda para que entrassem na OTAN se nos ajudassem a torturar".

Fonte: Vi o Mundo

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POST: ACABOU UMA ERA DO CAPITALISMO AMERICANO

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por Luiz Carlos Azenha

Surpreendente encontrar uma afirmação destas na mídia americana. Mas, sob o título "Dê Adeus à Mão Invisível", é isso o que diz Steven Pearlstein no Washington Post de hoje.

"Não faz muitos anos gente respeitável concordava qual a direção que o mundo ia tomar. O comunismo tinha sido derrotado pelo capitalismo e uma espécie particular de capitalismo - o tipo empreendedor, de mercado, encontrado nos Estados Unidos e Reino Unido - tinha provado ser superior ao mais corporativo e estatista praticado no Japão e na Europa Ocidental", diz o articulista.

Agora, afirma, o consenso acabou. "The current era of free-market capitalism seems to be giving way to something else", diz o articulista. Ele acha que o colapso das negociações comerciais em Genebra é o marco desta mudança.

Diz que não adianta culpar os protecionistas. "A culpa é da comunidade de negócios que continua a apoiar políticos republicanos que se negam a aumentar impostos para levantar o dinheiro necessário à rede de proteção dos trabalhadores americanos que uma economia de livre mercado não criou e não vai criar", diz ele.

Ele aponta três setores em que a "mão invisível" fracassou: no sistema de saúde, nos mercados de energia e nos setores financeiro e imobiliário. Ou seja, praticamente em tudo o que diz respeito aos seres humanos, diria eu.

Nesse contexto, é curioso que uma das propostas do candidato republicano John McCain para reduzir o preço da gasolina seja autorizar a perfuração de petróleo em alto mar - que, de acordo com os economistas, terá um impacto apenas marginal na produção mas trará grandes riscos para o meio ambiente.

A maioria dos eleitores parece acreditar que esta seja uma saída e McCain embarcou na proposta para horror dos ecologistas e vibração das petroleiras. A Exxon Mobil acaba de obter o maior lucro de uma empresa americana em um trimestre - 11,6 bilhões de dólares. Se fosse um país a Exxon estaria em décimo oitavo lugar em PIB do mundo, com 138 bilhões de dólares.

A anotar, ainda, a festa que acompanhou o desembarque, na Índia, do negociador comercial daquele país, apontado como o homem que jogou duro e não cedeu diante das pressões dos Estados Unidos e da Europa. Presumo que o chanceler Celso Amorim, que durante as negociações recebeu a ordem do presidente Lula para "flexibilizar", não tenha tido a mesma recepção. Os tempos são mesmo outros.

Fonte: Vi o Mundo

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A EXTREMA-DIREITA, ASSANHADÍSSIMA, AMEAÇA E BATE O PÉ

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por Luiz Carlos Azenha

A extrema-direita no Brasil é ruim de voto. Mas é boa de propaganda. Conta com gente importante na mídia, como o diretor de Jornalismo da TV Globo, Ali Kamel e porta-vozes espalhados pelos grandes jornais. Além de militares de pijama, também conta em sua "base" com os ruralistas. Quando eu estive em Roraima para gravar um documentário sobre a disputa por terra na Reserva Raposa/Serra do Sol entrevistei o prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero, do DEM. Muito articulado. Ele figura com destaque no documentário. Na entrevista o prefeito revelou que a estratégia da oposição à reserva, que conta com o apoio de militares ligados aos antigos serviços de informação, era empurrar o caso para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Notem que o processo de demarcação teve andamento no governo de Fernando Henrique e foi completado no de Lula. Sem votos no Congresso ou controle do Executivo, a saída foi empurrar o assunto para o STF, onde os opositores da demarcação supõem contar com a simpatia do presidente do tribunal, Gilmar Mendes. Eles também contam com o apoio do ex-juiz e atual ministro da Defesa, Nelson Jobim. Não sei se avisaram ao ministro, mas ele é visto pela extrema-direita como uma "saída honrosa" na sucessão de Lula.

A extrema-direita brasileira não é articulada em um partido político, nem tem posições uniformes. O nacionalismo tacanho faz com que ela às vezes se confunda com setores da esquerda brasileira. Os militares, respeitosos da hierarquia, são os mais suscetíveis ao discurso do "nós contra eles", que coloca do lado de lá "traidores da pátria" - todos aqueles que não concordam com suas posições - e do lado de cá os "salvadores da pátria". É curioso notar como o Estadão e as Organizações Globo abrem suas páginas para a extrema-direita. Saudade do regime militar?

O que essa gente quer é ter uma presença política desproporcional aos votos nas urnas. Repito: a extrema-direita brasileira só elege síndico de prédio na Urca. Mas pretende obter, gritando na mídia, o que não consegue eleitoralmente. A articulação noticiada pelo Estadão faz parte dessa gritaria. É a tentativa - que nem sei se já não foi bem sucedida - de dar um abraço de urso no governo federal:

Militares reagem a Tarso e criticam ''passado terrorista'' do governo Lula

Oficiais vão patrocinar seminário na quinta para discutir o que consideram "conduta revanchista" do ministro

Christiane Samarco, BRASÍLIA


Os militares decidiram dar o troco ao ministro da Justiça, Tarso Genro, por causa da audiência pública convocada por ele na semana passada para debater a punição de "agentes do Estado" que tenham praticado tortura, assassinatos e violações dos direitos humanos durante o regime militar. Revoltados com o que consideram "conduta revanchista" do ministro, oficiais da reserva, com o apoio de comandantes da ativa, patrocinarão uma espécie de anti-seminário no Clube Militar do Rio de Janeiro, na próxima quinta.

Em recente conversa com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, disse que é preciso "pôr uma pedra sobre este assunto", até porque o tema está saturado e o objetivo da Lei da Anistia foi encerrar um debate que "abre feridas e provoca indignação". Um general da ativa que acompanha a movimentação dos colegas reformados disse ao Estado que os militares vão se manter calados, mas avisa que a reserva se manifestar.

Segundo este general, o objetivo do seminário de 7 de agosto é debater o que consideram "passado terrorista" de autoridades do governo Lula e de personalidades do PT, discutindo, inclusive, se não seria o caso de puni-los pelos excessos cometidos na luta armada. O que mais irrita oficiais das três Forças é o fato de a maioria deles ter recebido indenizações. A queixa geral é de que eles também mataram e seqüestraram e agora querem provocar os militares.

No seminário, uma das idéias é aproveitar a estrutura do Clube Militar, como agremiação que desde a República Velha vem funcionando como uma espécie de porta-voz do setor, para exibir uma série de slides com fotos e uma biografia resumida de ministros de Estado e petistas ilustres. A lista começa pelo ex-ministro José Dirceu e tem o próprio Tarso Genro em quinto lugar. O segundo posto é dado à ministra da Casa Civil, Dilma Roussef.

O ministro da Comunicação, Franklin Martins, aparece em quarto, logo atrás do deputado José Genoino (PT-SP). Mais atrás, estão os ministros do Meio Ambiente, Carlos Minc, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi.

"Será que quem seqüestrou o embaixador norte-americano e o prendeu, dizendo todo dia que ia matá-lo, não cometeu ato de tortura igualmente condenável?", questionou o presidente do Clube Militar, general da reserva Gilberto Barbosa de Figueiredo, em recente entrevista ao Estado. Ele não mencionou Franklin como um dos idealizadores do seqüestro, mas antecipou o tom do seminário.

LULA "CERCADO"

O general defende a tese de que, se for para julgar quem torturou, como sugeriu Tarso, o julgamento deve ser estendido a todos, incluindo os que estão na cúpula do governo. A lista já circula entre oficiais da ativa e da reserva por meio de mensagens pela internet. Nela, os militares se queixam de que o presidente Lula governa "cercado por remanescentes da luta armada".

Um dos mais criticados é o secretário de Direitos Humanos, acusado no texto de "agir com muita liberdade e desenvoltura na defesa de posições revanchistas" no desempenho de suas funções. A mensagem conclui que a Secretaria dos Direitos Humanos "foi criada para promover o revanchismo político, afrontar as instituições militares e defender organizações de esquerda".

Na biografia de Dilma, a mensagem diz que ela "participou da organização de assaltos a bancos e quartéis, foi condenada em três processos e ficou presa no presídio Tiradentes". Em tom irônico, lembra o depoimento dela ao Tortura Nunca Mais, em que ela relatou ter sido torturada por 22 dias. "U
m caso raro que não se sabe por que não foi incluído até hoje no Guinness, pois conseguiu sobreviver durante 528 horas aos diferentes tipos de tortura a que alega ter sido submetida."

Fonte: Vi o Mundo

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Reserva Indígena Raposa Serra do Sol: Nas Mãos da Justiça

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por MARINA SILVA


Nas mãos da Justiça

HÁ COISAS em nossa casa que prezamos muito. Mas, se um incêndio ameaçá-la, deixamos tudo de lado e nos agigantamos para chegar até o quarto e salvar os filhos.
Alguns temas da vida nacional são comparáveis ao quarto dos filhos porque guardam o fundamento, o profundo, o que separa o essencial do apenas importante. Às vezes não é fácil percebê-los, pois falta sensibilidade e sobra pragmatismo. A diversidade cultural é um deles. Está no cerne da identidade brasileira e, de alguma forma, nos orgulhamos dela e a exibimos em expressões artísticas, esportivas, em imagens, natureza e história.
Em algumas situações, porém, acaba-se salvando o enfeite da sala em prejuízo do quarto dos filhos. E, nesse passo, vamos comprometendo nossa continuidade, perdendo elos que nos tornam únicos e definem nosso peculiar pertencimento no mundo. Digo isso a propósito da proximidade de momento de enorme significado para o país: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol em área contínua. Não nos iludamos; está em jogo não apenas uma pendenga entre índios e não-índios na sociedade de Roraima. Quem está na berlinda são todos os brasileiros, em sua capacidade de proteger, pelas mãos do Estado, a preciosa esfera dos valores culturais e imateriais da nação.
A população de Roraima não chega a 400 mil habitantes. Para os cerca de 350 mil não-índios há quase 11 milhões de hectares de terras disponíveis, diz estudo do Instituto Socioambiental. Comparando, Pernambuco tem 9,8 milhões de hectares para cerca de 8 milhões de habitantes.
A defesa das nossas fronteiras na Amazônia sempre receberam grande contribuição das comunidades indígenas. Por exemplo, pela incorporação de seus jovens ao Exército para ações em áreas aonde ninguém quer ou sabe ir.
Assim, não há razão concreta, de natureza social ou de segurança, para desconstituir a terra indígena Raposa Serra do Sol. A decisão do Supremo, seja qual for, dirá algo relevante sobre o compromisso do Estado na defesa de uma das principais raízes de nossa identidade cultural, e sobre seu dever de protegê-la, mesmo contrariando interesses ou remando contra marés de incompreensão momentâneas.
O Estado brasileiro vem a duras penas tentando dar conta de seu dever na questão indígena. A Constituição de 1988 foi o grande teste do Legislativo. O Executivo vem tomando medidas importantes, embora acumule enorme passivo.
Agora, está nas mãos do Judiciário. Este é, talvez, o teste mais importante até aqui porque ratificará o que foi alcançado ou abrirá um caminho de grave retrocesso.

Fonte: Folha de São Paulo

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sábado, 2 de agosto de 2008

Balada para torturadores?

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Bastou que dois procuradores da República pedissem à Justiça que responsabilizasse os acusados de tortura, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar, para a blindagem jurídico-midiática reaparecer com disposição conhecida e os argumentos recorrentes.

"A tortura política em nenhum caso é mero procedimento técnico, crispação de urgência numa corrida contra o tempo, destinada à coleta fulminante de informações. Expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, ela visa à destruição do sujeito humano, na essência de sua carnalidade mais concreta." Hélio Pellegrino


Volta e meia, como os personagens do romance "Incidente em Antares", os cadáveres insepultos dos porões voltam à cena para desespero dos coveiros em greve. Bastou que dois procuradores da República pedissem à justiça que responsabilizasse os acusados de tortura, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar, para a blindagem jurídico-midiática reaparecer com disposição conhecida e os argumentos recorrentes.

O apoio dos ministros da Justiça, Tarso Genro, e o da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, bem como os sólidos argumentos de ambos, foram imediatamente rechaçados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello e por Nelson Jobim, ministro da Defesa para quem " a Lei da Anistia, de 1979, já atendeu a seus objetivos, já realizou seus efeitos e não pode ser alterada". Mas em que momento se pediu sua alteração? A alegação de Genro é que ela não contempla crimes de tortura.

Desnecessário dizer que o discurso da imprensa seguiu na mesma toada, como isolamento acústico de um tempo que só será superado quando revisitado a contento. Sombrias são as dúvidas que, episódios como esse, lançam sobre a democracia que desejamos ter. Há uma correlação de forças que impede a apuração de crimes ou vivemos a plenitude de um Estado Democrático de Direito? Há no comando das Forças Armadas alguém com as mãos sujas de repressão ou nossos oficiais, por estarem plenamente integrados a um regime democrático, nada têm a temer?

Há quatro anos, uma matéria publicada no Correio Braziliense gerou o mesmo tipo de reação. Vale a pena relembrar o fato para observarmos como os sofismas não se alteram, existindo apenas um rodízio de quem os enuncia. Em nome de quem? Em nome de quê?

A penúltima semana de outubro de 2004 começou com três fotos e um fato. Se a vítima das fotos não era, como se chegou a supor, o jornalista Vladimir Herzog, o fato não perdeu em densidade política e importância jornalística. Pelo contrário, a primeira nota emitida pelo Exército lhe servia como legenda em preto e branco. O que víamos, independentemente de quem era o homem humilhado, é a tortura em estado bruto. Crime tão imprescritível quanto perene é a convicção dos que o perpetram. Não pode ser objeto de esquecimento, pois, como destacou Herbert Marcuse, "esquecer é perdoar o que não poderia ser perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem".

O trabalho dos jornalistas Rudolfo Lago e Erica Andrade mereceu destaque pelo que representou. Em tempos de produção de esquecimento, a matéria do Correio Braziliense reafirmava a memória como instrumento indispensável à consolidação democrática. Não seria fechando os olhos a crimes documentados pelos órgãos de repressão da ditadura que estaremos livres de recaídas autoritárias.

Pelas reações causadas em diversos setores, uma certeza se impôs: é necessário investigar os arquivos dos porões. Tanto os que guardam registros do regime militar quanto os que, certos da impunidade, reiteram que "as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas". O aspecto mais inquietante dessa nota diz respeito ao sensível ponto da hierarquia no estamento. Afinal, o comandante da arma, à epoca, general Francisco Albuquerque, foi conivente com seus autores ou por eles atropelado?

Muitos foram os temas levantados pela matéria. Se as fotos, e aqui pouco importa se de Herzog ou do padre canadense Leolpod D´Astous, foram garimpadas numa pasta que se encontrava dormitando havia sete anos na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, qual a vontade política daquela Casa em apurar os fatos? Mais, por que não avançaram as investigações sobre a guerrilha do Araguaia? Parafraseando versos conhecidos: "Quantas guerras teremos que esquecer por um simulacro de paz?"

Preocupantes, também, foram as declarações do então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Edson Vidigal, ao participar, sexta-feira (22/10), de cerimônia na Base Aérea de Brasília:

"Anistia é esquecimento. Não ajuda em nada agora mexer nessas fissuras. Essa história já foi sepultada. O povo foi às ruas, lutou pela anistia, pelo retorno dos brasileiros no exílio. A lei valeu para todo mundo. A agenda dos países é outra. Temos que avançar".

Será que o magistrado, assim como fazem agora os ministros da Defesa, Nélson Jobim, e do STF, Celso de Mello, julgava que a Lei de Anistia, de 1979, nada diz sobre tortura? E, como lembrou Paulo Sérgio Pinheiro, em seu artigo de quinta-feira (21/10), na Folha de S. Paulo, "para a Convenção Internacional contra a Tortura (da qual o Brasil é signatário) os crimes de tortura são imprescritíveis e a impunidade dos agentes de Estado torturadores e responsáveis por execuções sumárias pode a qualquer momento ser colocada em pauta".

Encontrará a interpretação do Sr. Celso de Mello, acolhimento entre seus pares? Eis uma questão da mais alta relevância.

Se for verdade que o diabo mora nos detalhes, nas redações jornalísticas, deve se sentir à vontade em editoriais ambíguos. Em sua edição de 21 de outubro de 2004, o jornal O Globo aconselhava em pouco mais de 550 caracteres, com espaço:

Fora do tempo
"Melhor teria sido que a primeira nota ficasse inédita. Já que foi divulgada, pelo menos o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, colocou a questão nos devidos termos: a Força lamenta a morte de Vladimir Herzog e a nota, lembra que um alto oficial foi punido por causa do crime e reafirma o compromisso do Exército com a democracia. Merece aplausos. Não faz qualquer sentido voltar-se a um tempo que ficou na História. A agenda do país é outra e dela não consta o retorno à radicalização ideológica".

O que vem a ser uma agenda? Quem a define? E em que termos? Estes são pontos que precisavam, e ainda precisam, de melhor esclarecimento. Se os destinatários do artiguete são os autores da nota do Exército, o jornal manifestava sincera preocupação com movimentos antidemocráticos. Deveria, porém, tornar a interlocução mais clara para o público-leitor. Se o endereçava a grupos de direitos humanos desejosos em aprofundar a investigação, fazia papel de um conselheiro de passado suspeito. Por que não faria sentido acertar as contas com um período recente da história? Ao não fazê-lo, o jornal não continuaria excluindo do espaço discursivo os que foram massacrados na ditadura?

Certamente haveria receio fundamentado. Um retorno ao que aconteceu naquele período poderia revelar como o Globo agiu quando as liberdades civis foram suprimidas. É provável que, em papéis amarelados, reaparecessem editoriais raivosos contra os oponentes do regime militar. Imprecações contra o Comitê Brasileiro de Anistia. Condenações sumárias aos movimentos sindicais e estudantis. Era a "agenda" da época. E nela, as Organizações Globo transformaram o chumbo, elemento metálico azulado, no ouro do império. A grande imprensa foi pródiga em alquimias do gênero.

Parece que a concentração informativa leva ao monopólio da significação. Agenda, governabilidade, revanchismo são palavras de uma novilíngua. Ocultam a própria origem e substituem vocábulos incômodos. Como se vê, foram múltiplos os questionamentos produzidos a partir da matéria publicada pelo Correio Braziliense, naquele outubro de 2004 . Daria um amplo leque de sugestões de pauta.

É fato que veio a segunda nota do Exército. Nela lamentava-se a morte de Herzog e havia reconhecimento de que a nota anterior, publicada no domingo, não condizia com o momento histórico. Mas esta foi produto de pressão governamental. A primeira, sem dúvida, é mais significativa. Diz muito sobre as especificidades de nossa fauna. Se, em países frios, durante o inverno, animais que se alimentam de frutas e sementes entram em estado letárgico, aqui quem hiberna são os gorilas. E o fazem por mais de quatro décadas.

Já passou da hora de aprofundar o debate.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.

Fonte: Agência Carta Maior


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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Reserva Raposa Serra do Sol: A guerra colonial no século 21

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do site do Luiz Carlos Azenha

Brasil - Raposa Serra do Sol: a guerra colonial no século XXI


Paulo Maldos *

Adital

"O índio avulta em nossa frente, como um enigma cuja decifração tem o poder de revelar o nosso rosto. Este rosto é, com freqüência, feio, mesquinho, arrogante, ambicioso, impessoal, violento. Diante daquilo que é diferente de nós, somos obrigados, em termos de existência, a questionar nossa ilusão de onipotência e a mentirosa hegemonia que nos transforma em usurpadores e falsos senhores do mundo". (Hélio Pellegrino, a partir de conversas com Noel Nutels, em Lucidez Embriagada, Editora Planeta, São Paulo, 2004).

Relatos recentes das comunidades indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol dão conta de incursões naquela área de extensas caravanas de fazendeiros em caminhonetes "off road", protegidas por batedores armados em motocicletas. Estas caravanas adentram a região e se detêm em lagos, cachoeiras e outros lugares sagrados dos povos indígenas, aparentemente para conhecer, filmar e fotografar. Entre os participantes dessas caravanas exploratórias estão os arrozeiros invasores, principalmente seu líder, Paulo César Quartiero.

É importante lembrar que estes invasores andam anunciando planos de ampliação da invasão da terra indígena, tendo Quartiero anunciado, em mais de uma ocasião, que já comprou e estocou 8 mil estacas de cerca com o propósito específico de ampliar sua invasão, tão logo seja possível. Em mais de uma ocasião esse invasor também avisou que não vai aceitar um resultado negativo para os seus negócios por parte do Supremo Tribunal Federal. "Vou aceitar ser roubado sem reagir?, responde ele (Quartiero) ao ser perguntado o que fará se o Supremo confirmar que os fazendeiros devem sair" (jornal Valor Econômico, 30/05/2008).

Está claro que a disputa por aquela terra indígena é vista pelos fazendeiros do agronegócio e por seus fiéis aliados políticos e militares como uma continuidade da guerra colonial em nosso país. Trata-se de conseguir voltar a "reduzir o gentio" em favor da grande empresa econômica neo-colonialista, permitindo a continuidade da marcha "inexorável" do desenvolvimento capitalista até as últimas fronteiras da região amazônica.

Como, do ponto de vista teológico, nos séculos XVI e XVII se discutia se os índios "tinham alma", hoje esta discussão está recolocada sob o disfarce ideológico de se os índios têm condições ou não de defender a soberania nacional na faixa de fronteira. Na verdade, a discussão subliminar é se os povos indígenas possuem a nossa mesma "alma nacional", verde-e-amarela, branca e ocidental e se são, portanto, confiáveis à nossa sociedade e ao nosso Estado.

O que os invasores de Raposa Serra do Sol esperam, com sua eventual vitória no Supremo Tribunal Federal, é uma espécie de "atestado" da Suprema Corte da Nação afirmando simbolicamente que os povos indígenas "não possuem a nossa mesma alma nacional, não são confiáveis" e que devemos, portanto, retomar a guerra colonial para a sua redução e dominação definitivas. Tal guerra colonial começaria pelo não reconhecimento de seu território tradicional -base e fonte primeira das sociedades indígenas, de suas memórias, de seus mitos, de suas religiões e de suas culturas.

Esse "atestado" deverá ser eficazmente utilizado por invasores em todo o país, para multiplicar as contestações e anulações de processos administrativos de identificação, de demarcação, de homologação e de registro de territórios indígenas já realizados. Ao todo, 464 terras indígenas já foram identificadas, demarcadas ou homologadas no Brasil. Ações judiciais buscando retomar essas terras para o mercado deverão proliferar, com vistas a um verdadeiro 'Eldorado' para o agronegócio, além de novas fortunas para os grandes escritórios de advocacia.

Fazendeiros de várias partes da Amazônia, do Mato Grosso ao Pará, estão preparando caravanas de caminhonetes "off road" até Roraima, tendo anunciado que irão se reunir em Pacaraima (RR), onde Paulo César Quartiero é prefeito, no dia 11 de agosto próximo, para exigir um posicionamento favorável aos seus interesses por parte do Supremo.

Este gesto da classe proprietária rural tem claramente um objetivo: anunciar para a sociedade brasileira que a guerra colonial está prestes a ser retomada, com a esperada decisão do Supremo Tribunal Federal. Esta decisão seria uma espécie de "senha", que sinalizaria para a ampliação sem limites desse agressivo "movimento neocolonialista" agrário brasileiro.

As diversas caravanas de fazendeiros em caminhonetes "off road", no interior como fora da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, anunciam que as "entradas e bandeiras" voltaram, desta vez modernamente motorizadas, partindo de Juína (MT) e outros municípios amazônicos e chegando a Pacaraima (RR); partindo das fazendas ilegais de arroz e chegando aos lugares indígenas sagrados, lagos e cachoeiras, determinados a atropelar, na sua passagem, os direitos constitucionais dos povos indígenas do Brasil.

Afinal, acima de tudo, os fazendeiros do agro-negócio não admitem serem "roubados pelo Supremo Tribunal Federal".

Brasília, 30 de julho de 2008.

* Assessor Político do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Fonte: Vi o Mundo

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Coletivo Makunaima Grita

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Makunaima Grita


O coletivo Makunaima Grita, formado por integrantes da sociedade civil, vem a público manifestar o seu apoio à luta dos povos indígenas da TI Raposa Serra do Sol pela garantia de seus direitos constitucionais.

A Constituição completa 20 anos em outubro e a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso da Raposa Serra do Sol precisa honrá-la, resgatando a dignidade aos povos indígenas, fortalecendo nossa democracia pluralista e o Estado Democrático de Direito no Brasil.

O nome do grupo faz homenagem a uma figura central nas cosmologias e mitologias desses povos: Makunaima, o herói criador. Suas peripécias deram origem, entre outras coisas, à paisagem, às formações rochosas da região e ao majestoso monte Roraima - o berço da humanidade.

Não deixe que os direitos constitucionais no Brasil sejam desrespeitados. Assine a petição de apoio aos Ingarikó, Patamona, Makuxi, Taurepang e Wapixana, legítimos habitantes da TI Raposa Serra do Sol.

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Makunaima Grita
cidadania com respeito à diversidade


O coletivo Makunaima Grita lança em seu site http://www.makunaimagrita.com/ campanha de apoio à manutenção da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Entre e assine a petição que será encaminhada aos ministros do Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pelo julgamento do caso da Raposa, previsto para o mês de agosto.

Sua adesão é muito importante, pois o que está em jogo, não é somente a demarcação de uma terra indígena, mas a garantia dos direitos territoriais de todos os povos indígenas no Brasil e, além disso, o respeito à Constituição e à democracia pluralista de nosso país.

Se você não está por dentro do caso, acesse o site e encontre, além da petição: resumo do caso, artigos, documentos, notícias e vídeos.

Lute pelo Brasil que você acredita!

contato@makunaimagrita.com

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Raposa Serra do Sol

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol fica no nordeste de Roraima, tem uma área de 1.747.464 hectares e é habitada por 18.992 índios das etnias Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona. O processo de reconhecimento dos direitos territoriais de sua população indígena começou em 1917, com a edição da lei do estado do Amazonas n° 941. A partir daí, diversos grupos reconhecidamente anti-indígenas iniciaram ações voltadas para a liberação da área da Raposa para a exploração econômica.

Em dezembro de 1998, o Ministério da Justiça declara de posse permanente indígena a TI Raposa Serra do Sol, demarcada em área contínua. Essa ação deu continuidade ao processo de identificação e delimitação, realizado segundo os ditames legais, garantindo, inclusive, o direito a todos que se sentissem lesados a contestação da medida. Mais de 40 contestações foram apresentadas em 1996 e rejeitadas por meio do despacho no 80, assinado pelo então ministro da Justiça Nelson Jobim.

Em 15 de abril de 2005, após a reedição da portaria declaratória de posse permanente indígena pelo Ministério da Justiça, o presidente Lula homologa a demarcação da Raposa e é iniciado um lento processo de negociação com ocupantes não-indígenas a fim de indenizar a quem era de direito e retirá-los da Terra Indígena, como determina a Constituição. A grande maioria desses ocupantes se retira da região, mas seis dos maiores fazendeiros instalados no interior da TI recusam-se a sair. Esgotadas todas as possibilidades de negociação, em abril de 2008 a Polícia Federal envia 150 homens a Roraima para executar a Operação Upatakon III, voltada a retirar definitivamente os invasores da Raposa.

Ações violentas são praticadas pelos opositores da população indígena, que abertamente afrontam o Estado Brasileiro, utilizando-se até mesmo de táticas de guerrilha para evitar a ação da Polícia Federal. Devido a tensão na região, no dia 10 de abril de 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspende a operação de retirada e abre um novo período de tensão e violência na Terra Indígena.

Dias depois, 10 índios são feridos à bala por pistoleiros e o debate sobre a demarcação da TI ganha repercussão nacional, servindo de pretexto para a reaparecimento de discursos xenófobos e de todo tipo de preconceitos na tentativa de influenciar a opinião pública contra os ditames da Constituição Federal, sobretudo o artigo 231 que dispõe sobre os direitos indígenas.

Em agosto próximo, o STF deve se pronunciar sobre a questão, decidindo o destino de mais de 18 mil índios da Raposa Serra do Sol, cuja conseqüência influenciará o futuro das demais terras indígenas do Brasil.

Mapa Raposa Serra do Sol

Fonte: Instituto Socioambiental

Saiba Mais

Documentário do Luiz Carlos Azenha sobre a Raposa do Sol


Quem apóia

Aliança pela Infância - Brasil

Associação Escola da Cidade – Arquitetura e Urbanismo

Associação Saúde Sem Limites (SSL)

Centro de Trabalho Indigenista (CTI)

Comissão Pró Índio de São Paulo (CPI–SP)

Comissão Pró-Yanomami (CCPY)

Espaço Cultural Resistência e Ousadia

Greenpeace

Instituto Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação em Educação indígena

Instituto Pólis

Instituto Socioambiental (ISA)

Núcleo de Etnologia, Meio Ambiente e Populações Tradicionais (NEMA) - PUC SP

Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII-USP)

Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI-UFRJ)

Prêmio Culturas Indígenas

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