sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Argemiro Ferreira: a Casa Branca que os escravos construíram

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Lembram-se do pedreiro Waldemar, que construía edifícios nos quais não podia entrar? Eu me lembrei dele ao ler um artigo da jornalista Amy Goodman, responsável nos Estados Unidos por um tipo diferente de jornalismo alternativo. Hoje ela tem um programa diário de rádio e TV, Democracy Now!, ostensivamente de esquerda, com pouco ou nada a ver com a rotina dos espaços jornalísticos audiovisuais.

Por Argemiro Ferreira, em seu blog

Entrevistados ouvidos por ela nesse programa só raramente — ou quase nunca — são convidados também pelas grandes redes abertas de TV ou mesmo pelos canais de cabo totalmente dedicados ao jornalismo. É o caso de Noam Chomsky e outros como ele. Mas Goodman os entrevista com freqüência, sempre que se torna relevante ouvi-los sobre alguma questão.

Apresenta reportagens, entrevistas e notícias que só aparecem ali. No dia da visita do presidente eleito Barack Obama à Casa Branca, uma residência construída pelos escravos, ela falou com Alice Walker, autora de A Cor Púrpura, um livro que lhe deu o prêmio Pulitzer. “Escravos a construíram, acorrentados, em desespero, tristes. E era para ele (Obama). (…) Um dia isso tinha de acontecer”, disse Walker.

Uma diferença para o país

Daí a lembrança do nosso Pedreiro Waldemar, o sucesso musical de Wilson Batista e Roberto Martins, gravado por Blecaute em 1949. Os escravos podiam não sonhar que a Casa Branca que construíam seria um dia a residência de Obama, sua mulher Michelle e as filhas Sasha e Malia. E que o chefe da família, hoje presidente eleito, ainda levará para as crianças um cachorrinho — “mestiço como eu”, conforme ele explicou.

Filho de pai queniano com uma branca do Kansas, no coração dos Estados Unidos, Obama não é descendente de escravos. Mas Michelle — como as filhas — veio de uma família de escravos da Carolina do Sul. O avô da futura primeira dama foi um dos que saíram do sul à procura de vida melhor no norte — mais especificamente, Chicago, no estado de Illinois.

“É espantosa a diferença para o nosso país”, explicou a Goodman a professora Melissa Harris-Lacewell, que ensina política e assuntos afro-americanos na Universidade de Princeton. “Duas crianças negras vão crescer no número 1600 da avenida Pensilvânia. Não será o fim da desigualdade racial. Não significa que tudo melhora para as do lado sul de Chicago, do Harlem, ou as latinas. Mas significa que algo é possível aqui”.

O peso do trabalho escravo

A construção da Casa Branca começou em 1792, com o arenito extraído por escravos em Aquia, na Virgínia, transportado pelo rio Potomac e, depois, levado por escravos até o local da obra. A Associação Histórica da Casa Branca relaciona nomes de alguns: “Tom, Peter, Ben, Harry e Daniel, três de propriedade do arquiteto responsável, James Hoban”.

Havia cortadores de pedras e serralheiros nas folhas de pagamento do governo. Nomes como “Jerry”, “Jess”, “Charles”, “Len”, “Dick”, “Bill” e “Jim” eram certamente de escravos alugados por seus senhores. Randall Robinson, autor de The Debt — What America Owes to Blacks (A Dívida — O que a América Deve aos Negros), também citado por Goodman, refere-se ao trabalho escravo na construção do Capitólio.

O relato de Robinson sugere muita semelhança com as tarefas da Casa Branca. Conforme a explicação dele, o trabalho mais pesado e perigoso ficava sempre para os escravos, desde o início, dentro e fora da escavação, nas fundações, e na edificação posterior. De qualquer forma, é ainda sintomática a participação de trabalhadores imigrantes — e o fato de ter sido o projeto original muito alterado nos anos seguintes.

Uma penada contra a tortura

Com apoio na própria história da construção da residência presidencial e da participação de escravos, Goodman cita o esforço atual de grupos de direitos humanos para que sejam fechados o campo de prisioneiros criado pelo governo Bush em Guatânamo, território cubano sob ocupação, e ainda os black sites da CIA pelo mundo, onde a prática da tortura é comum.

Ela lembrou que quando o abolicionista Frederick Douglass era jovem, foi escravizado numa plantação do litoral leste de Maryland chamado Mount Misery (Monte da Miséria) — propriedade de Edward Covey, celebrizado como especialista em “dobrar” os escravos rebeldes mediante tortura física e psicológica, para torná-los dóceis e submissos.

A mesma propriedade pertence atualmente a um ex-secretário da Defesa de Bush, Donald Rumsfeld, um dos arquitetos do programa executado nos campos de prisioneiros dos Estados Unidos pelo mundo, onde ainda se tortura. Para a jornalista, com uma penada Obama poderia proibir a tortura, revogando os pareceres dúbios do governo Bush. Seria um tributo àqueles escravos que construíram a Casa Branca e o Capitólio.

Fonte: Vermelho

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