terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Pena de Morte - por Marcelo Carneiro da Cunha - fonte: http://terramagazine.terra.com.br

Pena de morte, desde que para os outros
Quinta, 24 de janeiro de 2008, 08h03
Marcelo Carneiro da Cunha
Reuters

A pena de morte é inaceitável porque irreversível, diz colunista



Eu vejo o pessoal se inscrevendo na loteria para o Green Card americano, a porta da felicidade e penso que eu nunca, nunca mesmo, iria querer ser cidadão de uma sociedade que, em sua maioria, apóia e deseja a pena de morte aplicada mais e mais, para mostrar a esses mortos-vivos nos corredores da morte que o crime não compensa.

Isso quer dizer que eu nunca iria querer ser cidadão chinês, iraniano, árabe-saudita, iraquiano, ou sudanês. Diferentemente dos demais países nesta lista da barbárie, os Estados Unidos nunca pousaram de bárbaros. Ao contrário - desde sua invenção eles se consideram um farol do Iluminismo, um paradigma de nação construída para ser de todos, por todos, para todos, mesmo quando isso era, evidentemente, tão real quanto uma boa nota de três dólares.

O que traz os americanos para a ilustre companhia entre as nações bárbaras listadas acima, não é o fato de eles terem se barbarizado no caminho para o século 21, mas tragicamente não terem seguido o caminho de todas as outras nações que resolveram, ao longo do século 20, que permitir ao Estado o assassinato civilizado dos seus criminosos - enforcando-os, eletrocutando-os, decapitando-os, envenenando-os - não era assim uma coisa tão civilizada. A vasta maioria das nações, ao menos neste aspecto, se humanizou. Os Estados Unidos, não.

É difícil compreender o que faz um país moderno acreditar na pena de morte. Mais difícil é compreender que este mesmo país não perceba o que este sistema faz com todos, não apenas os condenados. A escravidão era particularmente horrível para com os escravos, nenhuma dúvida quanto a isso. Mas ela contaminava a alma e os corpos de TODOS que eram forçados, com ou sem prazer na relação, a conviver com ela. A pena de morte faz o mesmo com a sociedade onde ela é aceita. Se a pena de morte existe e é aplicada, então todos são carrascos, no mínimo, por permitirem que aconteça.

Eu escrevo estas mal traçadas porque li hoje que os condenados à morte no bravo estado americano do Missouri querem saber os nomes dos seus carrascos. Querem nomes, querem currículos. Isto porque, ao que parece, um jornal revelou que um médico que fazia a mistura de venenos para as execuções (e se presume que este espécime tenha feito o juramento de Hipócrates) era disléxico. A lógica, em toda a sua perversidade, é: se alguém é condenado à morte, e o executor tem a obrigação de tornar esta morte algo humano, no sentido de ausência de crueldade ou dor desnecessária; os condenados devem ter o direito de avaliar a capacitação deste executor de realizar a sua tarefa de maneira competente.

Eu fico apavorado, nauseado, desanimado, paralisado, todos os "ado" que vocês conseguirem adicionar a esta lista, ao pensar em um sistema que deve produzir mortes humanas de forma industrial e humanitária. Isso é simplesmente uma ofensa a mim, ao senhor aqui ao lado, ao universo inteiro, em sua beleza e existência para o nosso bem. Quando os nazistas fizeram isso, foram chamados de nazistas, e eram. O que devemos chamar esta gente que insiste no mesmo conceito, com métodos levemente diferentes, em nossos tempos, em nosso mundo?

Eu, um ser nada cristão, me sinto profundamente ofendido com a idéia de que cristãos convictos se sintam confortáveis em um sistema tão profundamente anti-cristão. Me sinto ofendido com a existência de sádicos que usem a sua condição de médicos ou carrascos para matar outros seres humanos de maneira humana. Me sinto profundamente ofendido com tudo isso, como me sinto ofendido como ser humano ao ver os instrumentos que eram usados para manter os escravos na condição de escravos - e isto tudo há apenas pouco mais de cem anos, um nada na nossa existência como sociedade.

Meu pai, desembargador aposentado, tinha um argumento muito curto e simples para explicar porque a pena de morte era inaceitável. Ele dizia que os erros judiciais acontecem, vão acontecer, têm que acontecer. E que nenhuma sentença, nenhuma, deveria ser irreversível. Porque bastaria um erro, uma vida, para tudo se tornar injustificável.

Eu vou mais longe. Eu sou contra porque a existência da pena de morte ofende a todos nós. E pode ser pior. Num sistema desses qualquer um de nós pode ser a vítima de um erro, especialmente os mais pobres, mais negros, mais fracos, mais violentos, mais visíveis. E basta um erro, um apenas, para o mundo se encerrar para um ser humano. E mesmo quando o ser humano é condenado sem que haja erro, manter todo um sistema desenhado para matá-lo legalmente, é uma aberração que não pode ser aceita por nenhum ser humano que não use um bigodinho esquisito e não odeie a humanidade como um certo tipinho nascido na Áustria, tão exemplarmente, soube fazer.


Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que será publicado em setembro pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe".

Fale com Marcelo Carneiro da Cunha: marceloccunha@terra.com.br
http://terramagazine.terra.com.br


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