terça-feira, 2 de setembro de 2008

MEIRA: ÍNDIOS GUARDAM A FRONTEIRA

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por Luiz Carlos Azenha

Viomundo: Por que fazer a demarcação em terras contínuas e não em ilhas?

Márcio Meira, presidente da FUNAI: Porque toda terra indígena é contínua, porque nós precisamos garantir a sobrevivência física e cultural dos índios. No caso da Raposa/Serra do Sol são 5 povos, 19 mil índios, são 194 aldeias, que têm entre si uma relação social forte, de casamento, religiosa. Então, se forma ali uma teia social muito forte entre essas aldeias. Se a gente colocasse isso separado correria o risco de nós rompermos inclusive relações históricas que existem lá na comunidade. Por isso a TI tem essa característica de continuidade. Todas elas têm isso, tanto a Raposa/Serra do Sol como todas as outras.

Viomundo: O general Figueiredo, ex-comandante militar da Amazônia, disse que os antropólogos -- e mencionou a FUNAI nisso -- são muito sonhadores em relação ao futuro dos indígenas. Disse que, na visão dele -- e ele falou em nome do Exército -- os indígenas eventualmente serão assimilados pelo Brasil. Como é que o sr. vê isso?

Márcio Meira: Eu acho que é uma visão romântica sobre os índios. Eu acho que é uma visão dos índios do século 16, uma visão de que os índios para serem índios devem andar pelados, andar de pluma. Eu tenho uma visão diferente, uma visão realista. Os índios brasileiros têm um lugar no passado do Brasil e têm um lugar no futuro do Brasil, principalmente no futuro do Brasil. Como toda cultura, é um processo dinâmico de valorização, revalorização. Eu costumo dizer que a cultura é um manancial de símbolos reciclável e reaproveitável, sempre. No caso dos povos indígenas a cultura -- o que ela precisa ter e manter sempre é o seu vínculo, seu fio condutor com a história de seus antepassados pré-coloniais. Esse fio condutor é o fio-terra. Ele não pode ser rompido. A própria cultura, o próprio povo sabe como se transformar e atualizar, se reciclar, mantendo esses vínculos. Portanto, é muito importante que a gente considere sempre que os índios têm capacidade, têm habilidade para produzir cultura, no sentido pleno do termo. Produzir economicamente, politicamente, se integrar do ponto-de-vista cultural ou político ao conjunto da nação brasileira sendo diferentes, sendo indígenas, mantendo seu vínculo histórico com os antepassados pré-coloniais.

Viomundo: Parece haver uma diferença entre a Constituição e o Estatuto do Índio. A Constituição pregando que o Estado deve garantir a preservação cultural das etnias e o estatuto falando em assimilação...

Márcio Meira: O Estatuto do Índio foi aprovado em 1973. Uma lei que é fruto daquela época. Vivíamos em um regime militar e havia uma idéia generalizada no governo brasileiro de que os povos indígenas iam sumir, eles iam desaparecer. Naquela época a população indígena chegou a ter menos de 200 mil habitantes no Brasil. Então, dentro dessa perspectiva, nesse contexto, o Estatuto do Índio considerava que inexoravelmente os índios ou iam desaparecer fisicamente ou iam ser assimilados ao conjunto da sociedade brasileira, ou seja, iam virar brancos, para usar um termo bem simples. Ocorre que em 1988, o ano em que a nova Constituição foi aprovada, ficou claro que aconteceu o contrário. A população indígena tinha crescido, os índios não tinham desaparecido e nem havia perspectiva deles desaparecerem, pelo contrário, eles estavam se reafirmando culturalmente, se manifestando publicamente, participando da vida política e social brasileira.

Então, nesse sentido, o que aconteceu foi o que ninguém esperava nos anos 60, nos anos 70. O que está expresso na Constituição é isso. Hoje, depois de 20 anos, vemos que aquilo que se notou em 1988 se acentuou ainda mais. Hoje nós temos uma população de cerca de 1 milhão de índios no Brasil, pelas estimativas do IBGE de 2001. Destes, cerca de 550 mil vivem em aldeias, 450 mil vivem nas cidades pequenas e médias, principalmente na Amazônia. Portanto, são muitos e estão crescendo. A população indígena cresce 6 vezes mais que a população nacional. Estão aí claramente explicitando sua vida, sua existência, sobretudo no Brasil do futuro. E querem ter seus direitos reconhecidos. Tudo aquilo que o Estatuto do Índio fala e não contradiz a Constituição está válido. Então o texto constitucional é o principal. Por isso esse conceito de assimilação que está no Estatuto foi subsumido no texto constitucional, que reconhece a diferença, que coloca o Brasil na situação de um país pluriétnico, ou seja, reconhece que o Brasil é um país da diversidade cultural, não só indígena, mas de outras culturas que participam do concerto de nossas nacionalidades.

Viomundo: O general Figueiredo nos disse que, depois da reserva Raposa/Serra do Sol será possível questionar a reserva dos ianomâmis. Como vocês encaram essa possibilidade?

Márcio Meira: Todo o processo administrativo de identificação e de homologação da Raposa/Serra do Sol foi cumprido na íntegra. Todo o processo. Ele dura desde os anos 70, no final dos anos 70 começou a luta pela demarcação. O processo administrativo vem, então, dos anos 80, final dos anos 80. A terra foi reconhecida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que fez inclusive a demarcação -- homologada no governo do presidente Lula. Portanto, não é uma ação de governo. É uma ação do estado brasileiro, respeitando aquilo que está na Constituição. A Constituição é nosso guia. Nós acreditamos piamente que o processo foi cumprido. Em todas as terras indígenas, inclusive a ianomâmi. A terra ianomâmi foi homologada pelo presidente Fernando Collor. Na época o ministro da Justiça era o Jarbas Passarinho, que vem das Forças Armadas. Portanto, são provas, são elementos que demonstram que as terras indígenas são uma ação do estado. Todas as terras indígenas do Brasil têm a assinatura do presidente da República. O presidente Lula já homologou mais de 10 milhões de hectares de terras indígenas no Brasil e tenho certeza de que ele se orgulha muito disso, como todos os outros que lhe antecederam.

Viomundo: E a argumentação de que a terra indígena ameaça a soberania nacional?

Márcio Meira: A terra indígena é propriedade da União. O constituinte de 1988 foi sábio, nesse sentido. Os índios têm apenas a posse e o usufruto da terra, a terra indígena é um ato de soberania do estado. E pela própria Constituição as terras indígenas em faixa de fronteira têm permissão constitucional para a presença lá das Forças Armadas. Tanto que do Oiapoque até o Pantanal, seguindo a linha de fronteira do Brasil, você vai encontrar mais de 20 pelotões de fronteira que estão dentro de terras indígenas ou não. E a maior parte dos soldados -- por exemplo, na terra indígena Alto Rio Negro --, mais de 70% são indígenas que se alistam no Exército, lá mesmo na região. Portanto, terra indígena na fronteira, como terra do estado, é um ato de soberania do estado, uma reafirmação de nossa soberania. Não há contradição.

Historicamente nunca houve um conflito nesse sentido. Em me lembro de quando eu era criança, eu sou de Belém, conheci o brigadeiro Camarão e o brigadeiro Protásio. Eram da FAB e desenvolviam o trabalho de vigilância das fronteiras nos anos 70. Eram muito famosos. E eles tinham essa visão muito generosa, militar, brasileira, que é uma tradição importante de nossas Forças Armadas, que vem do Rondon, que vem de outros integrantes das Forças Armadas, no sentido de que os próprios índios são agentes importantes da proteção do território brasileiro. Eles diziam isso, eu me lembro que eu era criança, meu pai tinha uma relação de amizade muito grande com o brigadeiro Protásio, que dizia isso, que os índios eram aqueles que estavam lá protegendo nossas fronteiras. Eu creio que a tradição generosa das Forças Armadas precisa ser valorizada, reconhecida, mostrando essa relação que sempre houve, que remonta ao general Rondon. A população brasileira não precisa ficar com medo, pelo contrário. Precisamos ficar tranqüilos de que essas terras estão protegidas, estão plenamente integradas ao território brasileiro, como terras da União, do estado brasileiro.

Viomundo: Na questão da Raposa/Serra do Sol há a acusação de que as ONGs internacionais estariam protegendo o território para que fosse apropriado no futuro por uma potência estrangeira, de olhos nos recursos minerais. Existe isso?

Márcio Meira: Todas as terras indígenas, mas também as não indígenas, têm minerais no subsolo. Esses minerais pertencem à União, já que as terras são da União. O subsolo mais ainda. Por que? Aos índios cabe a posse e o usufruto dos lagos, do solo, do subsolo não, o subsolo é exclusivo da União. Falta regulamentação constitucional para exploração de minerais em terras indígenas. De qualquer forma, no futuro, qualquer exploração mineral em terra indígena será submetida à União.

Eu acho que a cobiça, se há -- e temos que ficar preocupados -- é de nós mesmos, brasileiros. Estamos vendo desmatamento na Amazônia. Feito por quem? Por brasileiros ou então por grandes empresas internacionais da Malásia. Essas sim, eu creio, são muito perigosas. São agentes internacionais que estão destruindo a nossa floresta. O que sobra em termos de desmatamento, de mineração ilegal, criação de gado ou avanço do agronegócio... quem são essas pessoas? Brasileiros brancos. Então nós temos sim que ficar preocupados com nós mesmos. Nós mesmos não estamos dando o exemplo de que podemos cuidar da Amazônia, protegendo a Amazônia para o futuro. Os índios estão cumprindo o seu papel. Hoje foi divulgado pelo INPE o dado de desmatamento de toda a Amazônia. Os estados de Roraima e Mato Grosso são os campeões. Mato Grosso em primeiro, Roraima em segundo. É o avanço do agronegócio em cima da floresta, do cerrado. Então, nesse sentido, os índios têm protegido a terra, já que as terras indígenas são as únicas áreas de cerrado ainda existentes em Mato Grosso. Esses 13% do território nacional que ficaram para os índios são os lugares de floresta, cerrado, mata atlântica mais garantidos, do ponto-de-vista ambiental.

Viomundo: Eles estão preservados?

Márcio Meira: Para o futuro do Brasil isso é muito importante. Para o futuro do planeta isso é muito importante. Eu creio que nós temos que aprender com os índios, mais do que ensinar para os índios. Nós temos é que aprender com eles. O que é mais moderno, mais contemporâneo ou pós-moderno, no século 21, do que cuidar do meio ambiente, evitando o aquecimento global? Nós temos é que aprender com eles. No caso do Brasil nós temos a generosidade e o reconhecimento da dívida que nós temos no passado, pelo que aconteceu, o genocídio. De, pela Constituição de 1988, destacar parte de nosso território para esses povos sobreviverem física e culturalmente e eles podem também nos ensinar como podemos proteger aquela parte do território brasileiro, ou seja, os 87% que são de todos nós brasileiros. E que junto com os índios possamos produzir um tipo de exploração que seja respeitoso com o meio ambiente. É uma questão de futuro, de como nós vamos construir o futuro do Brasil.

Fonte: Vi o Mundo

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