quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Que preço se pode pagar pela vitória?

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por Maria Inês Nassif, no Valor.

"Assim como na política, falar na hora certa (na psicanálise) é fundamental. Quando o paciente não está preparado para uma interpretação do analista, não pode se apropriar dela nem usá-la para seu crescimento. A interpretação pode simplesmente se perder ou ter um peso errado. Na política, falar demais pode produzir um dano maior. Eu ainda escorrego". Esta é Marta Suplicy, por ela mesma. Está no livro "Minha vida de prefeita: o que São Paulo me ensinou", lançado pouco antes do início oficial da campanha eleitoral para a prefeitura, que ela agora disputa, em segundo turno, com o atual prefeito da capital paulista, Gilberto Kassab (DEM).

Marta Suplicy falou demais pela boca alheia, de locutores da propaganda eleitoral no rádio e na televisão, por dois dias desta semana. E escorregou. As peças de campanha insistiram muito para que o eleitor fosse atrás de informações sobre a vida pessoal de seu adversário. "É casado? Tem filhos?", pergunta o locutor. "Será que ele esconde mais coisas?", perguntou a voz masculina em outro comercial. Marta negou, em sabatina na 'Folha de S. Paulo', que sua campanha insinuava que o atual prefeito seja homossexual. "É uma pergunta como qualquer outra", disse a candidata do PT.

Não é uma "pergunta qualquer". Kassab é solteiro, não tem filhos - e se insinua que ele está escondendo alguma coisa, certamente não é sobre o seu estado civil, que, aliás, ele nunca escondeu de ninguém. A campanha de Marta também não disse qual a importância de o eleitor saber detalhes da vida pessoal do candidato - o conhecimento da vida pública já é o bastante para que se saiba se ele é honesto, ou competente, ou ambas as coisas, que é o que importa na escolha do voto. Não consta que ter uma mulher ou filhos o credencie a ser prefeito. O deputado Paulo Maluf, por exemplo, tem mulher, filhos e netos e foi fartamente processado por corrupção em todos os cargos públicos executivos que ocupou. Em nenhum momento a campanha da petista perguntou claramente se o candidato do DEM era homossexual, mas suas insinuações deixaram os jornalistas bastante à vontade para fazer essa pergunta a ele. E isso virou conversa de botequim. Uma certa fonte da campanha disse em off, para o jornal O Globo: "A idéia era a de desestabilizar o Kassab no debate [da TV Bandeirantes] e tivemos sucesso. Ele ficou perdido nos dois primeiros blocos". E, sobre a acusação de "baixaria", afirmou "um dos coordenadores" do staff de Marta: "Não tem essa de não poder bater. Em 1989 [Fernando] Collor bateu em Lula em todo o segundo turno e ganhou".

A declaração da intenção está aí. Vale ela, mesmo em off. Faltou a fonte lembrar que Lula, mesmo engolindo uma devassa em sua vida privada em 1989, e mesmo sendo acusado de coisas que ele não fez, recusou-se a usar dessa mesma arma contra Collor. Sua campanha tinha elementos fartos para isso. Essa foi a norma usada por Lula em todas as campanhas posteriores à Presidência - 1994, 1998, 2002 e 2006 - e, com toda certeza, o fato de não ter usado golpes baixos garantiu que conseguisse baixar, a cada eleição, a resistência dos eleitores ao seu nome e às suas posições pessoais e políticas.

A derrapada de Marta, aliás, foi inexplicável. Ela sempre bancou, às custas de perder muito voto, sua posição favorável à união de pessoas do mesmo sexo; assumiu-se como sexóloga numa época que não havia nenhuma tolerância a isso, nem se aceitava essa especialidade como científica - era interpretada mais como uma perversão do que como conhecimento; bancou a separação com o senador Eduardo Suplicy quando era prefeita, e fez pública a sua cerimônia de casamento com Luis Favre. Nem indo tão longe, no mês passado a candidata a prefeita foi num encontro com batistas, que queriam saber sua posição sobre uma proposta em tramitação na Câmara que pune a homofobia. Ela colocou todos os votos batistas lá presentes em risco ao responder, com todas as letras: "Minha posição é que (o homossexual) não pode ser desrespeitado. Se for para xingar, dizer que é doente, sou contra".

Entre os defeitos apontados por marqueteiros de campanha em Marta, um deles era uma qualidade: ela nunca, até então, havia aberto mão de uma convicção pessoal para ganhar um voto, mesmo quando os assuntos colocados em debate eram espinhosos, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo. A candidata, assim como Lula, sempre impôs limites a concessões que poderia fazer para ganhar a eleição - um deles, a sua própria privacidade e o respeito à privacidade dos adversários; o outro, não abrir mão do que pensava. Espera-se que a candidata, ao fazer uma autocrítica, não tenha justamente eliminado de sua biografia uma qualidade: a aversão a invasões de privacidade e baixarias na campanha. Mesmo na política, existem limites - e o limite pessoal numa disputa é não pagar qualquer preço por um voto. O voto que vale é aquele dado em biografias e convicções, não o obtido à custa de biografias e convicções.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras no Valor.

Fonte: Blog do Nassif

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