sexta-feira, 17 de outubro de 2008

O motorista árabe, o Yom Kippur e como incendiaram Acra

::

O motorista árabe, o Yom Kippur e como incendiaram Acra

© The Independent, UK,15/10/2008. Donald Macintyre, de Acra[1]

Tradução Caia Fittipaldi

Os israelenses gritam slogans contra os árabes durante um protesto em Acra, depois de vários dias de tumulto que já ameaça explodir as relações comunitárias, nessa cidade mediterrânea portuária co-habitada por várias etnias.

Tudo começou com um motorista árabe que atravessou, de carro, quarteirão predominantemente israelense, durante os solenes feriados do Yom Kippur. Disso brotaram os mais violentos confrontos entre israelenses árabes e judeus, dos últimos oito anos.

Deputados árabe-israelenses alertaram ontem que o encarceramento do motorista, Tawfik Jamal, poria a perder todos os esforços empenhados para conter as manifestações, depois de quatro dias de confrontos que tornaram ainda mais precária a precária paz na Região.

Os confrontos de rua começaram há uma semana, depois de Jamal atravessar de carro uma área cujos habitantes não usam carros nos dias santificados, um costume religioso, sem qualquer validação por lei. O motorista árabe foi perseguido, cercado por uma multidão de furiosos judeus ali residentes, atacado a pedradas e seu filho sofreu ferimentos leves.

Imediatamente espalharam-se boatos de que Jamal estava morto. Judeus ali residentes dizem que, imediatamente, centenas de árabes – muitos dos quais mascarados – invadiram aquela região da cidade, quebrando vidros de lojas de judeus, depredando carros estacionados e atacando a pedradas residências e moradores.

Nas três noites de violência que se seguiram, durante as quais foram presas 64 pessoas, grupos de judeus atacaram e queimaram várias residências de árabes na cidade, abandonadas quando os moradores fugiram. No domingo, o prefeito, General Shimon Koren, comandante da polícia da área norte, disse que os tumultos parecem ter sido gerados por provocadores judeus, que pareciam ser "maioria dominante" nos tumultos, em vários pontos da cidade.

Presença massiva de policiais ajudaram a evitar novos confrontos no domingo e na 2ª-feira. A Polícia teve comportamento de contenção, depois de ter sido criticada no inquérito da Comissão Or, por excessiva violência, em 2000, em ações nas quais foram mortos 13 manifestantes árabes.

Yossi Beilin, da ala esquerda do Partido Meretz, disse que "nada foi feito" para implementar as recomendações da Comissão Or, para prevenir atos de discriminação econômica e social. Para muitos líderes comunitários na Região, os confrontos dos últimos dias são, mais uma vez, efeito da prática continuada dos mesmos atos de discriminação.

Enquanto isso, Mohammed Ahmed, 54, que vive há anos em boas relações com seus vizinhos judeus, no setor leste da cidade, bem distante da rua conflagrada, conta que sua esposa, Berta, fugiu de casa na 6ª-feira com os dois filhos, ao ouvir contar que residências árabes estavam sendo atacadas. Ahmed, pedreiro, que está com uma perna quebrada, recusou-se a fugir com ela. Conta que estava assistindo à televisão, às 23h45, quando alguém jogou um coquetel molotov contra sua janela. "Corri para apagar o fogo, e gritei "O que está acontecendo?! Vivo aqui há 25 anos e nunca incomodei ninguém!"

A família de Ahmed, que diz que permaneceram em silêncio, em casa, durante o Yom Kippur, em respeito aos vizinhos, chamou a Polícia alguns minutos depois de perceber que uma multidão de agitadores cercava sua casa. A polícia chegou 45 minutos mais tarde, e retirou todos da casa, para segurança dos moradores. A multidão então avançou e pôs fogo na casa.

Refletindo as emoções confusas que reinam em Acra, essa semana, a Sra. Ahmed, atualmente hospedada numa pensão nos arredores da cidade, disse que soube do incêndio em sua casa – que os bombeiros controlaram – quando uma vizinha, de uma família de judeus, "telefonou-me, pelo celular, porque estava preocupada. Ela viu o incêndio e pensou que estivéssemos lá." Perguntada sobre se voltaria a morar no mesmo bairro judeu, respondeu: "Sim, sim, é claro que sim. Não posso culpar todos pelo crime de um só."

Sua filha, Kahraman, contou que muitos de seus vizinhos judeus participaram de sua festa de casamento, mas que, em anos recentes, têm-se repetido os confrontos violentos. "Sente-se, só de andar na rua, que eles têm medo de nós, porque somos árabes", disse ela.

Ofer Roth, 44, judeu, dono de um restaurante, disse que sempre há incidentes menores, mas que "vivemos em boas relações, todos, aqui. Quando há problemas, nós sempre conseguimos acalmar os ânimos."

Os residentes judeus, insistem na versão de que Jamal cruzou a área em alta velocidade na 5ª-feira à noite, com os vidros abertos e música alta no toca-fitas do carro – o que Jamal nega. Sobre a posterior 'invasão' do bairro, por árabes de toda a cidade, Shimon Lasmi, 48, disse: "Você nasce e vive num local. De repente, chega alguém e destroi tudo o que você construiu. Como você espera que os árabes reajam?"

Os deputados árabes, no Parlamento, declararam que a prisão de Jamal, seis dias depois do incidente, acusado, dentre outros crimes de "ofensa de caráter religioso" foi ato arbitrário, que visou, apenas, a satisfazer os judeus extremistas. Para um daqueles deputados árabes, Abas Zkoor, que promoveu uma reunião de conciliação, cuja conclusão foi um manifesto contra a prisão de Jamal, "Estamos trabalhando muito para conter o lado árabe, tentando promover a paz". Mas, advertiu, "não temos como impedir a prisão de Jamal, que é decisão do governo de Israel."

O prefeito, Shimon Lankri, candidato à reeleição nas eleições de novembro próximo, já cancelou o festival anual de teatro, que traria para a Cidade Antiga, em Acra, milhares de visitantes, o que interessa muito aos comerciantes árabes. Para um deles "Depois dos tumultos de 2000, os líderes árabes controlaram os seus extremistas, lembrando a eles que 'atos desse tipo ferem também os árabes. Espero que repitam o argumento, também agora."
Acra é um novo pavio aceso, em Israel

* Localizada na atual região norte de Israel, noroeste da Galileia, Acra é uma das cidades mais antigas do Oriente Médio, habitada, no mínimo, desde 1500 AC. A cidade abriga sítios arqueológicos romanos, dos cruzados, mamelucos e otomanos. A Cidade Antiga é tombada pela Unesco, considerada patrimônio cultural da humanidade.

* Em tempos mais recentes, houve ali uma prisão famosa por só receber prisioneiros judeus.

* Acra (em hebraico, Akko) foi ocupada pelo exército de Israel em maio de 1948, depois de a maioria dos habitantes ter deixado a cidade. A população árabe que permaneceu recebeu ameaças de que a cidade seria destruída "até o último homem", se não se rendesse.

* Cerca de um terço dos 45 mil habitantes da cidade são árabes, mas apenas cerca de 15% são remanescentes das famílias que ali viviam antes de 1948.

* A maioria dos árabes habita a região da Cidade Antiga e arredores.

[1] Na internet, em http://www.independent.co.uk/news/world/middle-east/the-arab-driver-yom-kippur-and-how-a-city-was-inflamed-961410.html . Tradução de trabalho, sem valor comercial, para finalidades didáticas. Copyleft.

Fonte: Vi o Mundo

::


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: