sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Crise, que crise?

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Um iceberg flutua na baía de Kulusuk, na Groenlândia, perto do Círculo Polar Ártico

por Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo

Povo de Sucupira. Não sei o que vocês acham, mas eu não consigo entender o que essa crise atual tem de tão crítica que outras crises não tenham sido igual ou piores.

Crise, pra mim, tem que ser bíblica. Algo do porte da explosão de um vulcão em Sumatra, uns 70 mil anos atrás, coisa feia, de não sobrar nem barata em Sumatra e pouca coisa mais no resto do planeta. Ou algo talvez tão grave, como o Gremão perdendo o Mundial de Clubes em Tóquio, 95. Ou mais sério, como Hitler convencendo o povo alemão de que ele era o cara, e que tudo ia ficar bem, podem crer.

Eu vivi várias crises que me pareceram bem malvadas, e eram. O Collor testou meu sistema imunológico até o limite, por exemplo. Sarney testou a nossa paciência até bem mais longe do que isso. O regime militar testou a nossa capacidade de agüentar aquele mau humor da caserna por mais de 20 anos, e cá estamos nós, firmes e fortes, se bem que mais calvos.

Lembro de épocas bravas, nos anos 80. Recessão de a gente não sentir vontade de respirar para economizar pulmão. Lembro dos anos malucos de hiperinflação, e nada - fora os militares e aqueles olhares deles, de quem viu a bomba e não achou graça - me pareceu tão mau. Lembro de ter conhecido a Europa Oriental nos tempos do Muro e aquele mundo e aquela vida que as pessoas eram forçadas a levar eram mesmo terríveis. A crise de falta de vida que começou com o sistema repressivo na Rússia, que se estendeu com os alemães durante o nazismo e com os japoneses botando pra quebrar na Ásia foi mesmo de outro mundo, só que nesse.

Em comparação com essas crises do século 20 e com coisinhas como a peste negra no século 14, estamos até que bem, não acham?

Ok, uns bancos quebraram e os executivos só levaram centenas de milhões em bônus, em vez dos bilhões que esperavam? O dólar caiu na real em cima do real, e ficou ao redor dos 2 pra 1. Crise? Se governos de diferentes partes do mundo dispõem de bilhões e trilhões pra colocar as coisas no lugar, o mundo mudou muito mesmo, e, ao que parece, para um lugar mais distante daquele movido a crises, desde o nosso passado remoto até o recente e breve século que acabou de acabar.

Por enquanto, crise é a da Marta, com esse comportamento absurdo na campanha que vai perder para o inacreditável Kassab. Crise é a do Fluminense, indo da final da Libertadores ao fundo do poço do Brasileirão em poucos meses. Crise é a do sistema político americano, que consegue tratar com falsa seriedade uma piada irrisível como a Sarah Palin.

Porque o mundo, esse mundão que a gente vê aí fora, não parece dar muita bola pra o que acontece a banqueiros e investidores da Bolsa. Esses são poucos, e mesmo que ricos, menos influentes do que no passado recente. O mundão parece estar se reordenando em torno de outras prioridades, tais como a descoberta da cura para doenças eternas, para a sobrevivência do ecossistema, e da descoberta de que tipo de ser é afinal a Jessica Alba, com sérias dúvidas sobre ela ser mineral, animal ou vegetal.

Crise mesmo, se vier, vai ser mais adiante do que o atual degelo do sistema financeiro da Islândia (alguém aí sabia que havia banco na Islândia, ou mesmo qualquer coisa além da Bjork?). Crise mesmo vai ser a da hora em que a Groenlândia tornar os mares algo on the rocks e o nosso litoral submergir. A costa da Inglaterra, as praias de Santa Catarina, o litoral da Califórnia, tudo isso pode ser destruído pelas águas ascendentes. Humm, claro que isso quer dizer também que a Barra da Tijuca, esse paraíso arquitetônico, pode ser alagada. Mas isso é apenas prova de que em todas as crises e mesmo nas piores, algo de bom pode até acabar acontecendo.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe".

Fonte: Terra Magazine

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