sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Capitalismo de face humana ?!

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Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.

É provável que a Europa perca tempo debatendo a governança global das finanças. Será um desperdício de energia intelectual

Por Alon Feuerwerker
alonfeuerwerker.df@diariosassociados.com.br

Eduardo Gianetti escreveu anos atrás um belo livro chamado Auto-engano. Eu soube aliás que o Gianetti, um liberal convicto, anda incomodado com o fato de o mercado agora gritar por socorro do Estado, bem agora que se trata de ver quem pagará o prejuízo causado pelas estripulias dos capitalistas. É dura a vida dos liberais convictos.

Por que as bolsas e o mundo financeiro estão derretendo? Porque a riqueza em papéis (expressão meio antiquada neste nosso planeta digitalizado) não tem correspondente no mundo real. Ou seja, ela rigorosamente não existe com seu valor de face. Uma hora o ajuste viria, necessariamente. E os patos ficariam com o mico na mão. E os mais patos ainda iriam para o cadastro do seguro-desemprego.

Acumulação de riqueza sem dispêndio de suor (ou a criação de valor sem o consumo de tempo de trabalho) é como o sujeito tentar se levantar apenas puxando os próprios cabelos. O diabo é que isso pode acontecer por um tempo no mundo financeiro. A natureza da engrenagem permite, já que se trata de antecipar a alguém dinheiro correspondente a um valor que ainda será criado. Uma expectativa de valor.

Mas a coisa costuma acabar mal de tempos em tempos, naturalmente para os patos, que são a maioria. Cesar Benjamin explicou por quê, em didático artigo faz menos de um mês na Folha de S.Paulo. O título é auto-explicativo: [Karl] Marx manda lembranças. Há século e meio o alemão já escrevia sabiamente — hoje até George Soros admite— sobre as conseqüências de o dinheiro gerar dinheiro como se fosse por mágica.

Eu estava dias atrás no dentista quando ouvi dele, boquiaberto, o veredicto de que o capitalismo não sobreviverá, pelo menos nos moldes atuais. Perguntei por quê. “Porque não é possível nem razoável que gente que não faz nada, não gera um emprego, não produz nada, não é normal que tais pessoas fiquem com a parte do leão da riqueza da sociedade.”

É possível que essa profecia do senso comum tenha mesmo algo de apocalíptico, dado que o capitalismo já passou por outras crises graves e não acabou. Nem vai acabar por conta própria. Tampouco é razoável pensar num mundo sem mecanismos de alocação dinâmica de capital. Mas também é verdade que o edifício mental erguido sobre os escombros do Muro de Berlim acaba de desabar, com espetáculo e estrondo.

O sintoma mais nítido do desastre ideológico dos liberais pode ser reconhecido no comportamento dos políticos, seres que detectam sangue na água melhor até do que as piranhas. Vejam a frase do presidente francês, Nicolas Sarkozy: “É necessária uma refundação global do capitalismo, baseada em valores que ponham as finanças a serviço dos negócios e dos cidadãos, e não vice-versa”.

Os anos 60 do século passado celebrizaram a expressão “socialismo de face humana”, do tcheco Alexander Dubcek. Agora, procura-se pelo visto um “capitalismo de face humana”, no qual os financistas sirvam disciplinadamente à sociedade e lucrem com moderação. Será mesmo um espanto se Sarkozy e seus colegas conseguirem dizer como realizar a façanha. Infelizmente porém, mais provável é a Europa gastar algum tempo nesse debate sobre a governança global das finanças até finalmente descobrir que a idéia é inexeqüível. Será um desperdício tipicamente europeu de energia intelectual. E o mundo voltará ao normal. Ou quase.

Digo quase porque parece inevitável (êta palavrinha arriscada) que os Estados Unidos saiam menores da crise do que entraram. Aliás, mora em Washington o responsável principal pelas dimensões do terremoto econômico global. Quando estourou a primeira bolha da internet, na passagem do século, parecia que a “exuberância irracional” seria finalmente contida. Mas aí Osama bin Laden derrubou as torres gêmeas em Nova York, George W. Bush obteve legitimidade interna e pôs para andar a maior e mais poderosa máquina bélica do planeta. Para isso, e para não deixar a economia “pousar” numa situação de guerra, fez explodir a dívida pública americana. E também a dívida privada, na farra do crédito fácil que agora derruba o mercado financeiro como uma fileirinha de peças de dominó.

Esta coluna começou falando de auto-enganos. Onde está o auto-engano nesta crise? Está em imaginar que o governo dos Estados Unidos vai se submeter ao “capitalismo de face humana” de Sarkozy. Isso não acontecerá. Nas situações de necessidade, a superpotência continuará mobilizando, de um jeito ou de outro, toda a poupança mundial disponível. Real ou fictícia. Tudo para se manter no topo. Será assim até o dia em que deixe de ser a única superpotência. O que vai acontecer em algum momento deste século. A dúvida é se o ocaso imperial será digerido pacificamente na grande nação do norte ou se das ruínas nascerá, como em filmes de terror (ou ficção), um monstro ainda mais agressivo e predador.

Aliás, é isso que está em disputa na sucessão de Bush.

Fonte: Blog do Alon

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