segunda-feira, 20 de outubro de 2008

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Além de recuperar o Estado como elemento interventor na Economia, a presente crise trouxe palavras curiosas à tona. Uma delas é a “Economia real”. Fala-se de uma “Economia verdadeira”, e de uma “outra Economia”. Que diabos quer dizer isso?

Desculpem o gauchês lascado. Bailanta quer dizer um “grande fandango”. Não me ocorre outro nome para falar de novo dessa crise financeira que se abate sobre nós com a fúria somada do dilúvio universal, da chuva de fogo sobre Sodoma e Gomorra no Velho Testamento e das trombetas dos Cavaleiros do Apocalipse.

“Ciranda financeira” é pouco. Dá idéia de uma roda onde tudo dança, é verdade. Mas o que está acontecendo é uma espécie de “tontería” universal, para usar uma outra palavra “de los vecinos” do Prata. Todo mundo dança, mas a dança é algo caótica como numa bailanta, que é, sem dúvida, a melhor tradução para a metáfora (ou será alegoria) da Noite de Walpurgis, no Fausto, de Goethe. A fantástica dança noturna e demoníaca onde tudo roda e se transforma já foi lida por certa crítica como uma alegoria do capitalismo emergente no século XVIII. “A Bailanta de Walpurgis”: que alegoria para descrever o círculo de perdas e derretimentos monetários a que fomos levados pela incúria dos mercados!

Uma medida disso é a desmedida dos números e a correria das palavras para tentar descrever o que está acontecendo. Vejam só: imitando seu colega inglês (de posto, não de partido) Gordon Brown, a primeira-ministra alemã Ângela Merkel colocou no seu pacote de socorro aos bancos em risco de insolvência medidas moralizadoras. Os bancos deverão cortar bônus e prebendas normalmente pagas a seus executivos e membros do “Board”.

Além disso, nenhum desses cargos poderá ser agraciado com mais de 500 mil euros de salários anuais. 500 mil euros! Um milhão e meio de reais, mais ou menos! Não, leitoras e leitores, não pensem que estou me atirando a observações moralistas! A vida é assim, desigual. No meu tempo de criança, a desigualdade era da vontade de Deus; hoje é da vontade e da natureza dos mercados, esses novos Molochs que devoram tudo em seu fogo predador, o que dá mais ou menos no mesmo. Convenhamos: os motivos de antanho eram igualmente ideológicos, mas mais nobres. O que me espanta é que tanta gente, pelo mundo a fora, tenha ganho anualmente muito mais do que isso apenas para despejar sua arrogância, sua sobeja incompetência na bailanta dos mercados!

Em julho de 2007 este pobre escriba da Carta Maior já escrevia que a bolha imobiliária dos EUA iria estourar. Não sou economista, mas os passarinhos de arribação já tinham piado no meu ouvido que a coisa ia de mal a pior. E desde então, para citar velho ditado do pago, lembrado pelo Luís Augusto Fischer no seu Dicionário de Portoalegrês, “a coisa ficou feia e veio se debruçando”. E esses magos da pelota mercadeira, o que fizeram? Nada, essa é que a verdade. E agora toca todo mundo a correr atrás de seus magros haveres que, como não são sólidos, posto que se transformaram em inversões “tóxicas” numa “bolha de mercado”, desmancham no ar muito mais depressa do que aquilo que sólido é, parafraseando Marx.

Daí passamos ao reino das palavras, onde a bailanta é maior. Além de recuperar o Estado como elemento interventor na Economia, a presente crise trouxe palavras curiosas à tona. Uma delas é a “Economia real”. Que diabos quer dizer isso? Bem, olhando-se as declarações dos líderes e economistas, a “Economia real” é aquela que produz bens e serviços. Mas aqui há um delicado problema semântico e ético. É que a nossa – brasileira da língua portuguesa – “Economia real” é uma tradução do inglês “real Economy”. “Real”, em inglês, tem uma conotação moral. Quer dizer, na verdade, “verdadeiro”, ou “verdadeira”. “Real”, no nosso sentido, é “actual”.

Ou seja, fala-se uma “Economia verdadeira”, e de uma “Outra Economia”, como se durante algumas décadas, duas, para ser mais preciso, a Economia, ou “o Economia”, para ficar numa metáfora machista que convém mais a esse universo, tivesse pulado a cerca e fosse se divertir com a “Outra”, ou uma ou várias “Outras”, na bailanta das mercês, prebendas e sinecuras em que ganhar dinheiro se transformou. De novo, ninguém pense que estou a descarregar moralismos sobre a vida dos outros. Só me espanta que tanta desfaçatez, tanto descaramento e tanta incompetência sejam tão bem remunerados, e tenham sido tão bem aquinhoados com adjetivos melodiosos por toda a nossa imprensa conservadora que não cansava de incensar os mercados, com a mesma cara de pau que agora pede, exige, implora pela intervenção imediata e moralizadora de seu antigo Leviatã, o maldito Estado.

Voltando aos números: uma das realidades emergentes nessa crise de realismo (socialista?) que se abateu sobre os mercados e seus sacerdotes, é que a China tem um terço de suas reservas monetárias investidas em letras do Tesouro norte-americano. Quanto é isso? As reservas chinesas são da ordem de 1,7 trilhão de euros. Ou seja, mais ou menos 5,1 trilhões de reais. Um terço disso dá 1,7 trilhão de reais, um PIB brasileiro mais uma soma que deve equivaler ao que se sonega na nossa economia. Caramba!

Além disso, a China era uma investidora pesada na Fannie Mae e na Freddie Mac, as duas primeiras empresas de crédito imobiliário a quebrarem recentemente e darem início à presente Bailanta de Walpurgis.

Esse foi um dos fatores que levaram aos sacerdotes fundamentalistas do mercado, nos Estados Unidos, a intervirem no sistema financeiro, contra sua vontade. O bafo do tigre chinês estava muito perto, não sob a forma de alguma ameaça militar, mas sob a forma de uma quebradeira maior ainda se os chineses resolvessem de repente “realizar seus ativos”, ou seja, retirar seus investimentos nos Estados Unidos.

Aí sim a bailanta ia pegar fogo. Como ainda pode pegar, porque nessas bailantas, todo mundo sabe como a pancadaria começa, mas ninguém sabe quando e onde vai terminar.

*Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.

Fonte: Agência Carta Maior

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